Esta ausência bem suportada não é outra coisa senão o esquecimento. Sou momentaneamente infiel. É a condição de minha sobrevivência; se eu não esquecesse, morreria
Werther, em Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes
Celui qui regarde en arrière n’y découvre pas ce qu’il désire ou ce qu’il cherche: il s’y laisse surprendre par ce qui l’attendait depuis toujours, et cette surprise est de l’ordre de l’épouvante. (…) c’est le fait même de retourner sa pensée qui provoque la vision de l’épouvante. (…). La pensée, en tant que réflexion, est fille de la peur.
Jean Clair, Méduse
“No princípio era o Verbo, e o Verbo se fez carne”. Esta sentença iniciática do quarto evangelho (sim, o joanino) oblitera o essencial, aquilo a que nossos hábitos e desábitos estão acostumados a considerar como o meio de barbárie indispensável à percepção fantasmática que se tornou nosso lote de modernos, psicoticamente modernos; foram, aliás, os mesmos judeus que precederam e inspiraram em suas linhas messiânicas a boa Nova evangélica que já nos disseram tudo, uma vez que anterior ao ruído articulado do Verbo que se fez carne (ou da carne agora semiótica, regrada e coordenada por conjugações, etc.), existia o que em hebraico se chama tohu bohu, ou “ruído primordial”; sim, antes da nomeação de cada ente pelo Deus criador e nomeador pairava sobre a face da terra um murmúrio indistintamente sinistro, que a onomatopéia hebraica tão sumamente qualifica em sua natureza incomensurável de pesadelo: tohu bohu.
Em Suspiria (1977), Dario Argento nos adverte desde a extraordinária abertura desta anterioridade significativa do ruído à palavra, do imbroglio do som ao Nome designativo como da profundeza terrífica à superfície límpida, mas vai além: um verdadeiro espetáculo de féerie grotesca se descortina aqui, com estas portas simultâneas do aeroporto que se abrem e fecham, a lufada de vento que tudo arrebata, as luzes que piscam na noite, a corrida do táxi pela floresta, e finalmente o par de mulheres assassinadas, par que corresponde simetricamente às duas palavras pronunciadas apesar da tempestade e da treva que sobre tudo assoma: Segredo, íris. “Uma Escuta do Totalmente Outro” faz sua rentrée na ausculta do som, lugar exangue de deságue do extracampo que povoa o filme de fantasmas pertencentes a múltiplos códigos de alteridade fabular demoníaca, dos contos de duendes e fadas perversas (à la João e Maria) aos mitos primevos de reelaboração narcísica, como o Orphée (Orfeu, 1950) de Cocteau que foi “parar” no espelho habitado pelo Diabo demiurgo no Prince of Darkness (O Príncipe das Trevas, 1987) de Carpenter: é vasto e ressoante, embora estreita a porta (e aqui recaímos novamente na letra evangélica) a porta que nos conduz a este caleidoscópio mundano de fantasmagorias, atuais e virtuais: trata-se de um Verbo bifurcado em dois substantivos, ou um par de nomes (Segredo, íris), ouvido por Jessica numa noite de tempestade, que serve precisamente para embaralhar o Nome, para relançá-lo na ronda equívoca da onomatopéia e da cacofonia, para retirá-lo do domínio do Logos e atirá-lo obscenamente no da anamorfose por analogia. Antes, porém, de prosseguir, um parágrafo sobre o Argento em geral e Suspiria em particular.
O cinema de Dario Argento é este Grand Guignol de esqueletos no armário, de traumas e violações muito antigas mas que foram esquecidas pelo mundo, e portanto demandam reparação pelo sujeito espoliado: a Natureza é vingativa, sobretudo se a trancaram num palazzo maneirista quando criança; o oikos de Antígona é o seu fado; prima-donna ressentida, ela exige sempre uma espetacular vendetta. Argento, barroco até o paroxístico ponto de saturação caligrafista, será o metteur en scène demoníaco que, como o prestidigitador mítico Cagliosto ou sua encarnação mais arrematada na história do cinema – o arrivista mestre de cerimônias de Lola Montès (Lola Montês, 1955) -, vai dar a esta dama os meios para uma triunfal e sempre fatal rentrée. Suspiria é talvez o filme suntuoso dentre os suntuosos, onde se encena esta cerimônia de fatale beauté, como dizia o Godard de um capítulo da Histoire(s) du cinéma (1989-1999), e tanto ou mais que a imagem, – repleta de dobras e de ressonâncias como aliterações – é o som o mestre de cerimônias deste festim iniciático.
Se a superfície da imagem, sob a condição de ser adequadamente lida, é agora este “Abre-te Sésamo” para a reemergência de um passado violentado, justamente ressentido por “ter sido esquecido no armário”, é porque Argento, com a clarividência intuitiva que é peculiar ao artista, captura e figura, com seu gênio sintético e sincrético, a ideia, encenada pelo mito “escópico” da Medusa e traduzida modernamente por Jacques Lacan, de que o trauma é um “arrêt sur l’image”: aliás, haveria melhor expressão para falar de Síndrome de Stendhal, seu enciclopédico estudo figurativo no qual na importância do icônico para a gênese da psicose aparece de forma reveladora o que está em jogo em sua obra? O que se deve reter deste insight de Lacan como no bloco mágico de Freud é que o passado traumático não passa, ele permanece presente na camera obscura da memória da vítima, e pontualmente impresso em uma imagem – empreinte agora de fantasma, não mais de verdade baziniana -, caixa de Pandora no fundo da qual espreita o onipotente monstro que, segundo a lógica reincidente da pulsão de morte, sempre voltará. Mas antes precisemos com escrúpulo o processo: não é que o trauma retorne, como pensou o Freud da primeira teoria das pulsões (1912), ingenuamente anterior à descoberta decisiva da pulsão de morte; na verdade, ele nunca saiu dali, porque imprimiu-se em uma imagem para o sujeito, desde então aprisionado no presente indicativo deste flash, condenando os filmes a estas Summas de faux-raccords do passado onde o afásico espectro foi aprisionado na imago; daí a serialidade dos crimes; não é que sejam crimes em sequência, mas um desdobramento dialético, onde a onipresença tentacular deste Mesmo diabólico se apossa da série e domina o filme inteiro: o tempo não passou, pois a Diferença aparente dos crimes não é nada senão o refrão do Mesmo, que embala a mesma criança. As mises en scène à parte dentro dos filmes em que Argento nos descreve sensualmente o manejo dos artefatos do crime são figurações desta subsunção absoluta dos meios ao Princípio metafísico do fantasma traumático. Estes suntuosos assassinatos rituais de que são prenhes são, à semelhança de obras de arte agora engendradas pela psicose, conjugações de matérias excremenciais e de fantasma, mas é o olhar traumático quem orquestra estes conluios psicossomáticos: é em cenas-chaves como a criança deformada ao espelho em Phenomena (1985) ou a cantora de olhos transfixados por agulhas em Opera (Terror na Ópera, 1987) que a natureza demoníaca do olhar-mediador aparece exemplarmente.
Mas descrevamos outros cristais de significantes tétricos, onde a Verdade se incrusta na imagem e liquida o seu “imediato indeterminado” hegeliano, convertendo-a agora em oráculo de conhecimento, diferindo-a para uma antiquíssima e tortuosa história, que o filme vai nos encarregar de decifrar, incorporando à atualidade da diegese; estes são legião em sua obra, como memoráveis em nossa cinefilia.
Em Suspiria, como em Profondo rosso (O Mistério da Casa Assombrada, 1975), temos um movimento análogo de revelação que trabalha a superfície trompe l’oeil em nome de uma profundidade esta sim significativa; e talvez não por acaso Argento mobilize aqui outra atmosfera de cromo, de clichê que, como em Profondo rosso, deve vir a ser esconjurado pela aparição de uma autêntica Veritas ou Aletheia: é agora o conto de fadas que solicita esta desconstrução violadora da inocência pelo conhecimento, e institui o romance de formação de um significante; em Suspiria, somos levados a desvendar uma profundidade mais impessoal e requisitados por uma hermenêutica menos psicossomática que arquetípica, pois o Bildungsroman que se oculta sob a centelha imagética é o da Branca de Neve, menina que aprende a ver o “invisível sob o visível” de Helena Markos, e assim pode partir a princípio despreocupada, com este riso leve mas tingido de mortuário do final que, como no Mozart que Pasolini ouvia, é talvez “mais santo que a santidade canônica”, pois fruto de uma aprendizagem, de uma carne iluminada pelo Verbo. Suspiria pega, por sua vez, um arquétipo cinematográfico para “trabalhar” o arquétipo iconográfico pop, e assim temos a retomada desses filmes de pensionatos para moças que eram comuns no cinema italiano dos 30; some-se a isto o imaginário caligrafista dessas cores hiper-saturadas e deste décor bigger than life, a esses trompe l’oeils que se multiplicam e saciam nosso horror vacui de espectadores tardios (um pouco cansados da austeridade clássica “dos Pais”), as presenças de musas – respectivamente, de Lang, Walsh e do cinema caligrafista italiano, de Castellani e Soldati a Visconti – Joan Bennett e Alida Valli e temos uma verdadeira boneca russa de releituras arquetípicas, envelopadas umas sob as outras: Hollywood, Branca de Neve, Mario Soldati, Goblins, parafernálias de cartoon, comparecem para esta Summa de mises en abîmes, verdadeira teia fantasma de refrações genealógicas.
Se Marcus de Profondo rosso “agora pode ver” com o auxílio, devida e abundantemente codificado, de uma imemorial cognição, que a pintura, “por onde a verdade e a beleza do mundo visível nos foram, através dos tempos, reveladas” (Rohmer), inventaria para ele e para nós, a heroína de Suspiria tem de reivindicar uma mediúnica vidência, uma afetiva inervação, pois não há imagens para decifrar: ela vê no vazio da fonte invisível, mas prenhe de presença, do som, e talvez por isto mesmo já veja mais e mais fundo, pois é o seu ouvido que a orienta: a um arquetípico mais vasto e “impessoal” (Branca de Neve), uma percepção igualmente on, geral e indeterminada; se em Profondo a visão que reconhece a Verdade do trauma de Carlos chega lá auxiliada pela cadeia de mediações da história da pintura – e pela diferença genealógica decisiva introduzida pela fotografia, a que faz alusão a reprodução mimética do espelho – , aqui é a oposição, por exemplo, mais mítica entre o “Escuta Israel” da sapiência invisível judaica e a manifestação escópica do “Esta é a minha carne” cristã que é solicitada: é o som que é decisivo na orientação do sentido; ver melhor é ver também com a intercessão do invisível, da potência, da mediação feita som: Jessica precisa lembrar do que lhe gritara a colega no dia de sua chegada à escola de dança para suscitar o “Abracadabra” da figuração de Markos. E as reverberações desta Revelação mais originária, mais orientada pelo estereofônico sagrado do som, serão tão devastadoras que reservam para o final de Suspiria um apocalipse figurativo que é profundamente dialético, na medida em que nos reconduz ao tohu-bohu gutural dos primórdios, anterior à criação do sentido pela nomeação de Deus, ao Fiat lux! (agora, tenebrae). Mas uma rima neste dialeta genial é sempre objeto de uma diferença, de um trabalho do tempo sobre o sentido: se este apocalipse pode ser comparado à tempestade que inicia Suspiria, é sob a condição exclusiva de atentarmos para o fato de que ali era a Natureza que era abalada sismicamente pelo demoníaco, e ao final é a Cultura – e portanto trata-se de um Fiat tenebrae completamente inventado cinematograficamente, como a batalha em Chimes at Midnight (As Badaladas da Meia-Noite, 1965), sem cuidados com o verosímil: esta grande mansão atulhada de tropos dos “séculos que nos contemplam”, agora devidamente restituídos ao presente sob a máscara do pastiche, do cartoon, da retórica tardia: do Mundo para o Ego (o mundo agora para-si), como já está em qualquer fase da Fenomenologia. Hegel teria se divertido com Suspiria, como Tex Avery também.
O visível invisível, a presença ausente da fonte do som (Helena Markus), intermitência entre neutra e lancinante, entre Mesma e Outra com que o espectador é solicitado a se defrontar, feito co-partícipe agora da operação eminente de leitura possibilitada pelo extracampo: de leitura sim, pois ao mesmo tempo em que atinge o plexus intestinal, e portanto a dimensão emotiva do humano, o ouvido também é Espírito, espaçamento de leitura, diferença do signo (da carne, da profundeza insondável, do Mesmo pelo Outro da escritura, pelo menos como promessa do significante); ele possui esta duplicidade constitutiva, ele se nutre de uma ambivalência de intervalo, de interstício: é o cúmulo do mimetismo, mas por isto mesmo, por causa e razão deste nec plus ultra atingido é que se pode descortinar um horizonte para o pensamento, se desvelar um objeto cristalino para a reflexão, mesmo que o cristal aqui seja, não rachado para o Deleuze que releu Renoir, mas coagulado de sangue; e a lição a se tirar desta viagem iniciática pelas trevas que é Suspiria é que a clareza, a limpidez, a beleza do mundo das aparências nada seria sem a opacidade e a escuridão que lhe subjaz, que não há fadas sem bruxas, entes criados sem Criadores demiurgos, nem os ritornelli de valsas que servem de fundo musical para os números de balé (belamente coreografados segundo um princípio de semicolcheia de ocupação do espaço em scope), não existiriam sem o contraponto dos rugidos das bruxas, fora de campo bigger than life and death que, como no filme de Ray e para além do expressionismo narcisista de Ray, quebra o espelho da subjetividade para, dos estilhaços recolhidos, alcançar o cristal fabular de uma superfície gloriosa, efeito especular de uma profundeza vertiginosamente maldita: a “Escuta do Totalmente Outro”.