Tróia. 1985. Em pleno passeio nocturno com os meus pais, acabei no fundo de um buraco de esgoto, sem que a minha ausência fosse de imediato notada. Esse mergulho na escuridão (que não poderá ter durado mais de cinco/dez minutos, mas que soube a uma eternidade) foi o suficiente para reavivar as memórias traumáticas do filme que acabara de me aterrar – Idi i smotri (Vem e Vê, 1985), obra-prima de Elem Klimov e visão desesperada do inferno da guerra, em competição no Festroia desse ano –, com a sucessão de horrores apocalípticos a que tinha assistido a desfilar-me pelos olhos, qual “teatrinho de sombras”, até me virem resgatar. Essa espécie de sala privada foi palco de uma experiência que, aos sete anos, me deixou marcas profundas (muito para além das mazelas sofridas na queda), a do cinema enquanto espaço de assombros e encantos, selando um pacto de amizade que conhecera outro momento decisivo meses antes: Natal em Lisboa e ida com os meus primos ao Roma ver o Gremlins (Pequeno Monstro, 1984) de Joe Dante, a pequenada deliciosamente amedrontada, entre o impulso de nos escondermos debaixo da cadeira e a vontade de espreitar só mais um pouco, num deslumbramento análogo ao que esses monstrinhos anárquicos sentem ao serem confrontados com a Branca de Neve e os Sete Anões (cena antológica, claro).

Novo flashback e raccord com a minha primeira memória cinematográfica, precisamente esse clássico da Disney no eterno Caleidoscópio, momento fundador de tudo o que se seguiu: Bud Spencer e o Xerife Quebra-Ossos, Terence “Trinitá” Hill; os paradoxos temporais do Back to the Future (Regresso ao Futuro, 1985) a empalidecer perante a recordação de um episódio particularmente assustador do Plastic Man, mesmo antes de sair de casa; Jack Burton nas garras de um perverso mandarim no Londres e a descoberta de um amigo para a vida, John Carpenter; o sleep all day, party all night dos The Lost Boys (Rapazes da Noite, 1987) com uma bobina projectada “de cabeça para baixo” (outra vez Tróia), como convém a qualquer filme de vampiros que se preze; “Conan” e “Kalidor”, o “Micro-Herói” e o “Labirinto”, “Gelado de Limão” (20?) e “Invasão EUA”, “Força Delta” (pobre Lee Marvin…) e o “Capitão América” de Albert Pyun e o seu escudo de borracha – uns vistos e outros sonhados, cortesia daquelas telas gigantes que nos chamavam, irresistíveis, das fachadas coloridas de um Éden ou Império (e o Estúdio lá no alto, sempre tão perto e inacessível); os corredores do King (pré-Paulo Branco), autêntica meca da fancaria made in Cannon, do decano Charles Bronson (e os seus incontáveis death wishes) ao barbudo e granítico Chuck Norris, passando pela “jovem guarda” da arte da pancadaria, Michael Dudikoff, Van Damme ou Lundgren; os vislumbres surripiados à TV, repulsivos e cativantes, da nova carne de Cronenberg [o estômago-vagina de Videodrome (Experiência Alucinante, 1983)] e da carne trucidada de Verhoeven [a trepidação grand-guignolesca de RoboCop (Robocop – O polícia do futuro, 1987)]; as férias de Verão na Foz do Arelho a pensar nos filmes que ainda conseguiria cravar o meu avô a ir ver no regresso a Lisboa, a mesma bulimia responsável pelas sôfregas pilhagens aos videoclubes espalhados por essa cidade fora…
Para mim, o “sexto sentido” é o sentido da imaginação e, por inerência, do próprio cinema, como o comprova este breve resumo do percurso formativo da minha cinefilia. Ou seja, não tanto um sinónimo de intuição [tradicionalmente declinada no feminino e que muito bom proveito trouxe a tantas heroínas do cinema clássico, como a Joan Fontaine do Rebecca (1940) de Hitchcock e do Secret Beyond the Door… (O Segredo da Porta Fechada, 1947) de Lang ou a Ingrid Bergman do Gaslight (Meia Luz, 1944) de Cukor], nem tão-pouco relacionado com percepções extra-sensoriais e demais fenómenos psíquicos, que nos levariam forçosamente para o campo do thriller sobrenatural, terreno fértil em visões, médiuns e capacidades telecinéticas: os extraordinários Don’t Look Now (Aquele Inverno em Veneza, 1973) de Nicolas Roeg e Profondo rosso (O Mistério da Casa Assombrada, 1975) de Argento, os canónicos Carrie (1976), de De Palma, ou The Haunting (A Casa Maldita, 1963), de Robert Wise, e os mais secretos The Fury (A Fúria, 1978), também de De Palma, ou The Legend of Hell House (A Lenda da Casa Assombrada, 1973), de John Hough, além de uma obscuridade como o belo Sette note in nero (The Psychic, 1977) de Fulci.

Entendido então como aquilo que nos permite ver e sentir para lá do que os nossos sentidos apreendem de forma directa, o “sexto sentido” remete-nos para o cinema enquanto sortilégio, cenário de um devir inesgotável, onde tudo se encontra interligado e as possibilidades de maravilhamento são infinitas, onde a história “oficial” esconde uma série de outras, “subterrâneas” e paralelas. Desde logo, ao lado do dito cinema “legítimo”, corre toda uma realidade alternativa, espelho invertido a reflectir também os seus clássicos e modernos, iconoclastas e malditos, réis e meteoritos. William Castle a construir-se como um Hitchcok da série B, decalcando não só o universo fílmico como a persona do mestre do suspense, ou a brutalidade revolucionária do terror dos 70s (Carpenter, Romero, Craven ou Hooper) a servir de “submundo” para o risco e o arrojo mais sofisticados da Nova Hollywood; a blaxploitation do orgulho negro, repleta de (anti) heróis e heroínas que não são mais do que a versão cool e muito hip de modelos anteriores [Richard Roundtree como um detective à la Bogart híper-sexualizado e a exalar street knowledge por todos os poros; o díptico Black Caesar (1973)/Hell Up in Harlem (A Cidade do Crime, 1973) do enfant terrible Larry Cohen a homenagear os filmes de gangsters da Warner dos anos 30; Pam Grier, deusa e star incontestada, em tempos capaz de encher tantos cinemas como Barbara Streisand ou Liza Minnelli]; e toda a indústria italiana no seu período de glória, com aquela lógica de rapina e um rol de seres sobre-humanos mais ou menos mitológicos, de túnica e sandálias, cowboys solitários e enigmáticos, polícias desencantados de tendências fascizantes e guerreiros bárbaros em paisagens pós-apocalípticas.
Se nos deixarmos guiar por este “sexto sentido”, cairemos alegremente pelo buraco do coelho como a Alice de Lewis Carroll rumo ao nosso próprio país das maravilhas e descobriremos que o cinema não é mais do que um fluxo que tudo engloba e engole, parecendo caber nele o que bem quisermos, onde o delírio tem carta-branca e variações dos mesmos corpos, rostos, enquadramentos ou planos se repetem uma e outra vez, num turbilhão de imagens interminável. É pensar na revisão do policial americano por Melville, depois glosada por Walter Hill no fantasmático The Driver (O Profissional, 1978) e retomada mais tarde em Hong Kong, com traços melancolicamente românticos, pela mão de John Woo, para o círculo se fechar por fim (?) com a ida deste para Hollywood. É olhar para essa verdadeira criatura frankensteiniana que é o western spaghetti, composta a partir das memórias abastardadas do género americano por excelência, filtradas através da irrisão e do niilismo (a violência excessiva e… “peckinpahniania”, parecendo até que, a dada altura, Leone e Peckinpah estariam a “dialogar” um com outro, sem que se percebesse bem quem respondia a quem ou comentava o quê), e levando essa natureza de “manta de retalhos” até às últimas consequências, com os seus vários filões (onde cabiam até cruzamentos com outros géneros de má fama, não só a blaxploitation como também os filmes de kung-fu) e vedetas que carregavam já as marcas de uma duplicidade (Franco Nero ou Tomas Milian, saltitando entre o cinema popular e a arte e ensaio, e “expatriados” de outras latitudes e tradições, como Clint Eastwood, Lee Van Cleef, Jack Palance ou Klaus Kinski). Como não podia deixar de ser, toda esta história acaba, noutro exemplo de “círculo perfeito”, com Sam Raimi, já nos 90s, a copiar a cópia (por assim dizer) num The Quick and the Dead (Rápida e Mortal, 1995) ainda “mais papista que o papa”…
Ed Wood e Russ Meyer como émulos de Orson Welles ou John Cassavetes? A independência autorística não conhece fronteiras, nem a série Z pode funcionar como uma barreira a esta licença para fantasiar. Que inclui também os elos invisíveis (ou nem por isso) que unem George Romero e John Carpenter, cineastas políticos, subversivos como poucos, e “gémeos siameses” separados à nascença, mas sempre a pensar um no outro [a fusão maravilhosa do Rio Bravo (1959) de Hawks com o Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968) de Romero plasmada no Assault on Precinct 13 (Assalto à 13ª Esquadra, 1975) ou a sombra do Ghosts of Mars (Fantasmas de Marte, 2001) de Carpenter a pairar sobre a ferocidade da fábula proletária Land of the Dead (Terra dos Mortos, 2005); e isto para não falar nas vicissitudes de carreira comuns, a começar pelo fatídico encontro com os grandes estúdios…]. Carpenter que foi, aliás, com o seu Halloween (Regresso do Mal, 1978), o “pai” – involuntário, é certo – da febre slasher dos anos 80, que na volúpia estilizada do gore macaqueava também os códigos do giallo italiano, já de si indelevelmente inspirado no Psycho (Psico, 1960) de Hitchcock e no Peeping Tom (A Vítima do Medo, 1960) de Powell. É reconhecer no minimalismo quase abstracto do Escape from Alcatraz (Os Fugitivos de Alcatraz, 1979) de Don Siegel, um primo da austeridade depurada do Un condamné à mort s’est échappé ou Le vent souffle où il veut (Fugiu um Condenado à Morte, 1956) de Bresson; é ver no clássico de rape & revenge de Wes Craven, The Last House on the Left (1972), um remake sub-reptício d’A Fonte da Virgem (1960) de Bergman, cujos ecos, desta feita por via d’O Sétimo Selo (1957), estão também bem presentes no The Masque of the Red Death (A Máscara da Morte Vermelha, 1964), a obra-prima de Roger Corman; Corman que, recorde-se, através da sua New World, fábrica de inúmeras jóias do mais puro trash, foi o responsável pela distribuição americana de variadíssimos títulos do cinema de autor europeu, de que a nouvelle vague terá sido o expoente máximo, com a sua releitura dos ensinamentos do cinema clássico americano à luz de uma modernidade transbordante, a mesma que tanto encantou os movie brats da gloriosa década de 70 (muitos saídos da escola Corman) e os inspirou na síntese inultrapassável entre as diversas hipóteses de free cinema e o património da época de ouro de Hollywood. E como esquecer figuras da estirpe de David Carradine, excelso representante de um clã não menos ilustre (encabeçado pelo enorme John Carradine), que foi a todas – da TV ao mainstream mais boçal, da marginalidade independente e autoral a um sem-número de dejectos straight-to-video – e filmou com todos, dos maiores (Bergman, Scorsese) aos abaixo de cão (Ciro Santiago, Fred Olen Ray), parecendo personificar tudo aquilo de que falamos?

Tudo reenvia para tudo, num loop constante que se experimenta com o torpor sorridente do De Niro do final desse fresco portentoso e reflexão melancólica sobre o tempo e a memória, Once Upon a Time in America (Era Uma Vez na América, 1984). O cinema como mundo antropófago, autocanibalizando-se vorazmente, de que talvez o maior exemplo actual seja o pós-modernismo de Tarantino (outro mini aparte biográfico: a felicidade que foi descobrir, aquando da estreia do Reservoir Dogs [Cães Danados, 1992] num King já bem diferente, um “espírito irmão” a tecer loas a tanta coisa de importância capital no início da minha adolescência, dos tais rapazes da noite vampirescos aos comics da então sacrossanta Marvel), numa actualização do amor assolapado às imagens que Joe Dante e John Landis nunca se cansaram de pregar. Mais duas “almas gémeas”, unidas por laços de amizade, obras que se tocam e relacionam e uma crença inquebrantável na magia do cinema (reza a lenda que, até não há muito tempo, iam ver juntos todos os filmes que fossem lançados). De resto, convém não esquecer que o primeiro é responsável por um dos dois picos de paixão cinéfila das últimas três décadas, Matinee (Pânico em Florida Beach, 1993), sendo o outro o Last Action Hero (O Último Grande Herói, 1993) de John McTiernan (curiosamente, ambos do mesmo ano: 1993). Nessas belíssimas e tocantes elegias pela sala escura (sobretudo, as velhas e enormes) enquanto local de comunhão e prazer individual, realidade e ficção confundem-se e contaminam-se até já não ser possível distinguir uma da outra.
No fundo, a lição que aprendi com Landis, provavelmente o realizador que mais vive e respira cinema, obcecado como nenhum outro com o seu fascínio e poderes transmutativos. Mordido pelo “bichinho” desde cedo, abandonou o liceu a tempo de testemunhar a desagregação do studio system, distribuindo o correio na Fox, e foi moço de recados e duplo nos spaghettis rodados em Almería, o que talvez explique que se tenha tornado uma enciclopédia ambulante da sétima arte (quem mais se lembraria de, num documentário dedicado ao hombre lobo Jacinto Molina, vulgo Paul Naschy, referir… Satyajit Ray?). Sob a capa do mero “entretenimento” (já de si uma gesta mui nobre e complexa), não tem feito outra que não cantar esse seu “amor de perdição”, desde logo no alucinatório Into the Night (Pela Noite Dentro, 1985), cartografia da mitologia cinematográfica da “cidade dos sonhos” que é Los Angeles, mas também em objectos supostamente menores e que se revelam quase “teóricos” – o “cartoonesco” ¡Three Amigos! (Três Amigos, 1986) ou o “derridiano” The Stupids (Os Estúpidos, 1996) – na celebração do cinema como algo capaz de condicionar e alterar a realidade, sobrepondo-se pela sua força, mais real do que a própria vida. A land beyond beyond de que fala Giulia D’Agnolo Vallan no tomo indispensável que lhe dedicou e de que me apropriei (com a devida vénia) para o título deste texto.
Para aceder a este território esfuziante e comovente, basta ter os sentidos disponíveis e deixar que o sexto faça o resto. Mais provas? O som de um metro ou comboio a rasgar o silêncio, transportando-me para as fantasias nocturnas e urbanas do Walter Hill dos The Warriors (Os Selvagens da Noite, 1979) ou Streets of Fire (A Estrada de Fogo, 1984); o cheiro a maresia e o embalo das ondas, ora acolhedoras (“When we see the ocean, we figure we’re home. We’re safe”), ora intimidantes (“It’ll be a swell so big and strong, it’ll wipe clean everything that went before it”), que me atiram invariavelmente para as ruínas de Coney Island [The Warriors outra vez, pois claro; já agora, Carpenter e o seu emblemático Escape from New York (Nova Iorque 1997, 1981) devem-lhe muito] ou para os pores-do-sol californianos do Big Wednesday (Os Três Amigos, 1978) de John Milius. Um filme mental e ininterrupto de que não se pode nem quer sair nunca.
Vasco T. Menezes
Tradutor. Ex-crítico de cinema do jornal Público e proprietário da finada Cinecittà, loja de cinema e cultura pop.