There are still the others.
Deborah Kerr em The Innocents (Os Inocentes, 1961)
Quantos são os filmes na história do cinema que hoje invocamos em conversas de café através de pequenas frases ou interjeições? Não ouso responder a isso, mas talvez a mais famosa frase pertença a Casablanca (1942): “I think this is the beginning of a beautiful friendship.” O rei dos one-liners Arnold Schwarzenegger ficou para a história com o seu “I’ll be back”, expressão amplamente reproduzida nomeadamente em cartazes afixados nas portas de lojas, indicando a hora de almoço. Engraçadinhos. No campo do terror – aquele que nos vai ocupar mais ao longo deste texto -, porventura a mais popular “tirada” de todas seja a musicalmente longilínea “HEEEEEEERE’S Johnny!” de The Shining (Shining, 1980). Parece-me que todas estas “frases imortais” têm fundamentalmente uma coisa em comum na relação com os seus filmes de origem: se não vimos as obras que as geraram, dificilmente conseguiremos desenrolar, a partir delas, a série de acontecimentos mais ou menos extraordinários reservados às personagens que as proferiram. Portanto, o mais contemporâneo “I see dead people” de The Sixth Sense (O Sexto Sentido, 1999) contém uma certa anomalia, por efectivamente ter a capacidade de ir além naquilo que é a proposta narrativa ou até conceptual que enforma a cerca de hora e meia de filme. Ver gente morta – apetece acrescentar: “com estes olhos que a terra há-de comer” – significa dar conta de um mundo intangível, que não nos pertence, a nós, os vivos.
Alguém dizer que vê gente morta significa que aquela fronteira estável – e aparentemente inexpugnável – que separa mortos e vivos terá sido violada. E a grosseria dessa revelação aumenta quando nos lembramos – e isso é inevitável mesmo para quem conhece mal o filme de Shyamalan – do rosto virginal de quem produziu tão inacreditável afirmação: uma criança de nove anos interpretada por Haley Joel Osment, o puto que, aos 11 anos, recebeu a sua primeira e, até ver, única nomeação para o Óscar de Melhor Actor Secundário. Quanto mais desenrolamos a frase, mais nos aproximamos do núcleo do filme e dos segredos – não são assim tantos, mas fizeram muitos espectadores esfregar as mãos no rosto tal a incredulidade.
Não há, no entanto, nada de extremamente refrescante na intriga thrillesca e paranormal de The Sixth Sense. Desde filmes como Children of the Damned (Uma Aventura Fantástica, 1964), The Innocents e The Omen (O Génio do Mal, 1976) que o cinema de terror tem procurado fazer da criança um privilegiado canal de ligação com o além-vida. Esta costuma ser a entidade no filme que revela o mundo assombrado ou danado que nos cerca; um mundo que está aí, mas que nós, adultos, não conseguimos enxergar.
Sobre o papel das crianças no seio de toda esta grande narrativa perceptiva, não precisamos de ser tão radicais e soturnos: um filme mais antigo do que todos os que acabo de citar, The Boy with Green Hair (1948) de Joseph Losey, mostra-nos como uma criança, padecendo de uma estranha condição nomeada no título do filme, pode ministrar uma lição de humanismo a uma sociedade de adultos consumida pelas suas inseguranças e medos – estávamos na América sob os primeiros efeitos da Guerra Fria. Portanto, sim: no cinema, como eventualmente na vida, a criança costuma ver – e por vezes saber – mais além. E vê – e sabe – aquilo que os adultos ou não conseguem ou, pior, não querem ver. Mas nesse ano de transição para o novo milénio, Cole Sear, a personagem encarnada por Haley Joel Osment, viu, ou melhor, confessou que viu o que mais ninguém consegue ver. E confiou essa confissão a um adulto, o psicólogo Malcolm Crowe, interpretado por um Bruce Willis onde ainda conseguimos vislumbrar sobre o escalpe uns quantos fios de cabelo.
O filme de Shyamalan guarda, de facto, alguns segredos. Mas o principal, curiosamente, não é revelado por essa condição especial que aflige a criança – a de ver e conviver com os mortos -, mas antes radica no interlocutor, enfim, em quem escuta a confissão. Malcolm Crowe é um médico, um “curador” – sabemos como boa parte dos filmes de Shyamalan lida com uma qualquer forma de cura, física ou psicológica, ansiada por personagens que desesperam pela sua salvação neste mundo, apesar de si mesmas. O verbo de acção que contém a receita milagrosa – uma forma de crença, religiosa sem dúvida, em forças maiores – é um: “curar”. Apenas outro cineasta contemporâneo, amante de intrigas fantásticas, mas em paisagens remotas e ainda mais misteriosas, tem este verbo como “nome do meio” – falo de Apichatpong Weerasethakul, filho de pai médico. Shyamalan partilha desse mesmo ADN – pais médicos e uma vocação para acreditar num mundo que nos escapa aos sentidos, lugar a partir do qual recebemos visitas mais ou menos desejadas de fantasmas magoados. O “alien” nem sempre é mau em Shyamalan – a ninfa providencial de Lady in the Water (A Senhora da Água, 2006) chega-nos ferida proveniente de uma terra mágica, mas acaba por curar o coração de uma comunidade de humanos real, demasiado real. Em The Sixth Sense, “o estranho” que assombra pode estar tão danado – e, com isso, constituir uma ameaça para os humanos de carne e osso, vivos e palpáveis – como vulnerável – alguém que grita por socorro ou estende o braço em busca de alguma forma de ajuda apontada para “o lado de cá”.
A importância que devemos colocar no interlocutor da tal confissão representa o nó essencial do filme de Shyamalan, no sentido em que a história de uma espécie de cura impossível além-vida se vai sobrepor, em ritmo lento, às promessas de um horror show exibido ao público através dos olhos iluminantes (cheios de shining) da tal criança prodigiosa. Esta conclusão disse pouco, muito pouco eventualmente, ao espectador que assistiu em 1999 a este filme de um realizador desconhecido à época, ainda em fase de apresentação ao público.
Revisitar hoje este filme significa podermos dar conta de duas coisas: (1) do modo como The Sixth Sense, mesmo não incorrendo nas mesmas liberdades de filmes posteriores de Shyamalan, é uma obra perfeitamente inserida no seu mundo; (2) da forma como o filme de terror não resulta mais, porquanto foi estragado pelas várias anedotas em torno daquela famosa fala, ainda que isso só tenha contribuído para aumentar o nosso espanto em relação ao ponto (1). Se o filme de terror resulta enfraquecido com o revisionamento – porque já sabemos como acaba… -, a fábula humana – sobre culpa, perda, solidão, luto e toda uma travessia em busca da cura para os males da alma – eleva-se, acabando mesmo por desfazer a convicção de que The Sixth Sense era uma obra esgotada por um gimmick narrativo de grande efeito thrillesco. Shyamalan ficou conhecido pelos seus twists – foi vítima inclusive dos flick-flacks que conseguia dar às suas estórias – mas a maior reviravolta do seu cinema tem-se dado com a matéria humana ou com a matéria de que o cinema é feito, na sua própria gramática de género.
Não sei se fomos nós que demorámos muito a perceber isso ou se só foi em Split (Fragmentado, 2016) que Shyamalan se apercebeu que o lugar do seu cinema estava no modo como dava a volta àquilo que envolve a história das suas personagens, mudando o género da história como a cobra que muda de pele. A verdade é que há um efectivo efeito-Split no meu revisionamento – e reavaliação – de The Sixth Sense, porque agora este não mais se parece com o chiller paranormal que parecia ser nos anos 90, revelando-se uma fábula sentimental algo quebradiça – para o bem e para o mal, eis uma espécie de spielberguização de melodramas clássicos envolvendo interlocutores fantasmas, também em busca de remissão, tais como The Ghost and Mrs. Muir (O Fantasma Apaixonado, 1947) ou Pandora and the Flying Dutchman (Pandora, 1951). O movimento dos fantasmas costuma ser o de um regresso ferido, torturado, como alguém que, entalado entre mundos, não aceita a dor da despedida. É preciso que este “luto do mundo” seja sarado para que a passagem aconteça. O “I see dead people” é uma confissão, mas também é um diálogo. Um diálogo entre duas pessoas quebradas, “sem rumo”, que, entaladas entre mundos, encontram “a cura” uma na outra.
A confirmação de que, afinal, não estamos num filme de terror acontece dentro do carro, na minuciosamente encenada sequência final, em que a mãe de Cole, Lynn Sear, interpretada por Toni Collette, ouve da boca do filho mensagens de conforto vindas do além. O mensageiro é Cole, a remetente é a sua avó materna, o destinatário é Lynn, sua mãe. Ainda há resquícios do cinema de terror na aparição da mulher sinistrada depois da visão descrita por Cole – um acidente lá à frente provoca o engarrafamento, sendo que o que a câmara não nos oferece é-nos dado nas palavras omniscientes de Cole. De qualquer modo, quando este fala da sua avó, é despertada sobre o tecido do drama toda uma memória afectiva, emergindo laços que estavam corroídos, uma relação mal resolvida entre Lynn e a sua mãe. Um longo historial de incompreensão e ausência de afecto ou comunicação – um dos temas fortes deste filme – ilumina-se nas palavras de Cole. Apesar da aparição fantasmática – verdadeiramente horrífica – da tal sinistrada, já não estamos de maneira alguma num filme de terror. O campo é outro: o dos sentimentos.
O psicólogo interpretado por Willis não consegue falar com a sua mulher, só consegue interagir com a criança perturbada que precisa de ajuda. Ela precisa de ajuda, claro. Mas é ele quem está perdido, porque num mundo sem amor só resta o trabalho. Malcolm Crowe está à altura dos seus pergaminhos quando pega no caso desta criança problemática que “vê mortos”. Depois do diagnóstico, dá-se a tal revelação de que o psicólogo era, afinal, a criança e que a criança – a personagem ingénua, em vias de ser “outra coisa” – era, afinal, o adulto.
Neste filme cheio de “entres” e “inversões”, isto é, repleto de uns quantos segredos capitais que fazem a narrativa girar, o objecto fotográfico entra em cena para prognosticar “a doença” reveladora de Cole. Num conjunto de fotografias dispostas na parede da broken home, a mãe de Cole surpreende a presença de um feixe de luz ao lado da figuração do filho. No terror, como sabemos, quando não é a criança a entidade omnisciente que, sozinha, acede, com os olhos ou as pontas dos dedos, a um au-delà desconhecido, esta é provisoriamente substituída – ou será apoiada – pela fotografia, pois fotografar significa também ver o mundo para lá daquilo que os nossos olhos conseguem ver (a fotografia é um shining?). O inconsciente óptico, teorizado por Walter Benjamin, seria transformado em história de terror num filme mais refinado que o de Shyamalan, lançado dois anos depois de The Sixth Sense. Falo de The Others (Os Outros, 2001), obra protagonizada por Nicole Kidman, conto gótico cheio da atmosfera vitoriana característica do já citado The Innocents. Aqui, neste filme do chileno (e, entretanto, algo desaparecida em combate) Alejandro Amenábar, também viajamos entre mundos, inseguros quanto à natureza – a solidez! – dos corpos e à profunda razão de ser da escuridão que atravessa as divisões da grande mansão. A mulher, os seus filhos e a equipa de empregados habitam-na, mas todo o filme, desde o início, acompanha o crescimento da semente da dúvida em torno de um verbo: “habitar”. A fotografia como portal para um além-vida é um tema exaustivamente tratado aqui, inclusive na circulação dos corpos entre divisões obscurecidas, verdadeiras cameras obscuras para quem padece de uma intrínseca intolerância à luz.
Sobre estes dois filmes “entalados” entre mundos, não posso deixar de imaginar um terceiro filme. Aquele que ainda não foi filmado (nem por Shyamalan, nem por Amenábar, etc.), mas que porventura permitiria tornar ainda mais abstracta – e, contudo, também ainda mais explícita – a sensação que esses “clássicos”, desse período de passagem para o século XXI, nos provocam hoje em dia: quando revisitamos estes títulos, já sabemos que os actores, todos ou alguns, interpretam fantasmas de carne e osso. Também sabemos que o filme revelará, tornando clara e inequívoca, a natureza destes corpos e suas movimentações. Já agora: uma surpreendente obra de terror bem contemporânea, The Lodge (2019), transforma o livre jogo entre vida e morte numa espécie de engodo metafísico, num child’s play verdadeiramente dantesco, em que o décor para o inferno não é tanto a casa familiar (que também tem) quanto a psique enganada relativamente à natureza das coisas deste mundo; relativamente à vividez de tudo.
Com isto, sou assaltado por uma questão: como seria um filme em que os actores interpretassem fantasmas que nunca seriam revelados – e “resolvidos” – como tal? Um filme sem twists dramáticos com fantasmas de carne e osso, presos – e nunca libertados – à carne e osso das interpretações? Como sentiríamos, deste modo, a presença dos actores no ecrã? O verdadeiro sexto sentido cinemático está por realizar neste sentido – ainda assim, talvez por saber que a fotografia do fantasma é sempre o fantasma da fotografia, Kiyoshi Kurosawa é o realizador que mais longe tem levado a mais absoluta volatização dos corpos num inapreensível estado fantasmal de existência. A audácia de Shyamalan – ou de Amenábar – mantém-se, no entanto: encarar o fantasma como um corpo que sofre. Um corpo que sofre apercebido como alguém que ainda vive, mas que não consegue comunicar com quem ama – faz sentido a vida, mesmo a vida após a morte, se desenrolada nestes termos? Os fantasmas somos todos nós. Todos nós estamos em trânsito e entalados. Há quem nos veja melhor do que outros. Foi o caso de Cole nesse já distante ano de 1999. O puto no filme tinha nove anos, Haley Joel Osment tinha 11, eu tinha 13.