1. Mais ainda do que da fotografia, podemos talvez dizer que “não vimos” uma coisa antes de a termos visto no cinema. Ver, verdadeiramente, talvez só no cinema. Algo de que tiveram perfeita noção os primeiros públicos dos filmes dos Lumière. O cinema fazia e dava a ver, por assim dizer “ao vivo” e da forma mais aparentemente imediata e simples (como se aqueles fossem os nossos olhos), os gestos e os movimentos (expressões) que até então eram feitos sem a consciência de os executar. Ali, no ecrã, sou eu a atravessar a rua, com aquele andar desconchavado, a olhar para todos os lados, ou então metido comigo, à procura talvez de uma razão que justifique ali estar naquele momento e naquele sítio. E era isso que assustava verdadeiramente Máximo Gorki em 1896, ao assistir a uma projecção de filmes numa barraca da feira de Nijni Novgorod, na Rússia: a duplicação de si (“eu” ali enquanto “outro”, autónomo de mim e com uma vida independente) mais do que o seu mero “desdobramento” (para isso já existiam afinal os espelhos). A hipótese do William Wilson de Poe agora acontecendo à nossa frente.

Béla Balázs, em 1924 [O Homem Visível (Der Sichtbare Mensch)], afirmava que, com o cinema, o homem e o mundo iam finalmente tornar-se visíveis.
Para ele, o cinema, graças à indiscrição da sua lente, ia para lá dos limites culturais do antropocentrismo (o “homem” enquanto “medida” e “destino” das coisas) e constituía a forma mais adequada para dar a “vida secreta”, rumorejante e pletórica das coisas, captando nas suas imagens a “eloquência das coisas mudas”.
O que não se encontra longe do que um seu contemporâneo, Siegfried Kracauer, escreve em 1960 (Theory of Film), ao caracterizar o cinema pela sua capacidade técnica e fenomenológica de nos comunicar uma “apreensão estética do mundo físico”. Melhor, de constituir um instrumento (dispositivo) de “repossessão do mundo”, “restaurando” as coisas na sua dimensão mais concreta e material, e de uma forma ao mesmo tempo sensível e tangível. Segundo ele, pelo cinema, as “propriedades” das coisas passariam para (e através de) nós como se tudo se processasse como numa “transfusão de sangue”.
Mas Kracauer acrescenta ainda outra coisa importante: o cinema, como a fotografia, e ao contrário de outras “artes” (a pintura e a literatura), pelo seu carácter material, seria da ordem (ontológica?) da própria “realidade”, dando a ver, e exibindo-a mesmo – e isto desde o início, com o chamado “cinema de atracções” –, a “rudeza” (grosseria) dos seus próprios materiais (a “materialidade” dos seus processos e técnica).
Daí o seu carácter eminentemente “materialista”: “o cinema, agindo de <baixo> para <cima> [ao contrário das outras artes], tem uma orientação materialista [is materialistic minded]”, sendo a sua principal função (obrigação ética? Fenomenológica?), de acordo agora com Erwin Panofsky («Style and Meaning in the Moving Pictures», 1937), citado por Kracauer, “fazer justiça a uma interpretação materialista do universo” [Princeton University Press, 1997 (309)].
Sim, fazer justiça ao mundo material, honrá-lo. Não é esse o programa do subtítulo do livro: The redemption of physical reality?
Ao fim e ao cabo, o que Joseph Conrad, no “Prefácio” de O Negro do Narciso (1897), também exigia da literatura, pondo a tónica no carácter “visionário” da linguagem: “A tarefa que procuro levar a cabo é a de, pelo poder da palavra escrita, fazer-vos ouvir, sentir – e, numa palavra, ver”.
Afirmação de que encontramos um eco na declaração de David Wark Griffith (em 1913): “the task I’m trying to achieve is above all to make you see” (sublinhamos nos dois casos).
Com efeito, o cinema não só dá a ver pela 2ª vez (e por duas vezes) como constitui sempre uma “visão dupla”, ao quadrado, melhor, “exponenciada”, quando comparada com a nossa mais pobre experiência. Mais do que “desdobrá-lo”, ou até “duplicá-lo”, o cinema, comunicando densidade e volume às coisas (ele pode contorná-las, como a escultura), realiza o real, torna o real real, numa única expressão (verbo), cria-o; captando-o no seu processo de mutação (metamorfose) permanente, ele não só o “acaba” como o apresenta (presentifica) na sua versão mais plena, magnifica-o.
Algo que compreendeu bem Saint-Pol-Roux, embora já no fim da sua vida (talvez entre 1925 e o início da década de 30 do século passado).
Para ele (Cinéma vivant), o cinema era uma “sobre” (ou “supra”) criação (sur-création) e as imagens “seres-imagem” icónicos (“idéoréalités plastiques”), semelhantes a “esculturas vivas” ou “visões [orgânicas] cristalizadas” (“pensées solides”).
Longe do modelo da “caverna escura” de Platão (República, VII), para ele o cinema tinha mais a ver com uma câmara luminosa (“ardente”, quando em acção) e a céu aberto (o Sol encontrava-se no interior da gruta e não no exterior), pela qual o “real” (o mundo) se via ao mesmo tempo “manifestado” e “engrandecido”: Le Ciné c’est Pan visible, conclui [Rougerie, 1972 (102)].
De facto, para lá dessa capacidade de nos dar a ver, revelar a coisa enquanto coisa – o que não é pouco, porque a presentifica o mais possível na sua inteireza e de uma forma nunca vista ou imaginada (Louis Delluc) –, o cinema é também um grande transmutador (não “obscuro” mas “à vista”) da realidade: algo de que tinham uma justa percepção Jean Epstein, quando se refere em Bonjour Cinéma (1921) ao poder metabolizante do “grande plano”, ou Antonin Artaud («Sorcellerie et cinéma”, 1927) ao afirmar que uma mão, no ecrã, muda de categoria zoológica (de espécie, natureza?) e se revela “garra” ou “tarântula”, uma presença com actividade própria que faz corpo com um mundo também ele transmudado.
É essa a capacidade de irradiação e mutação de um rosto, ou de um corpo, em cinema.
Com efeito, a imagem de cinema não só “compreende” (em todos os sentidos do termo) e inclui em si, com o objecto, o ponto de vista do desejo de quem olha (vê) como, super-expondo e oferecendo-nos um corpo como manjar = espectáculo, capta o momento (alterado, febril) de intersecção (contacto mesmo) entre a abertura (despojamento obsceno do objecto) à visão e a trepidação (desejante) do olhar que nele se projecta e deposita. A imagem fixa não só a realidade aparente, fenoménica, do corpo mas, com ela/nela, também a (ir)realidade aurática (imaginária) do corpo espectral (mas não menos real) do “fantasma” que a ela se acrescenta e a engrandece (nomeadamente por meio desse decalque, efeito de relevo e de iconicidade do imaginário).
Os “gregos”, na sua teoria da visão (a que devíamos talvez dar mais atenção saindo do modelo, mais “cerebral” do que “cósmico”, da Dióptrica de Descartes), aludiam à capacidade de irradiação do objecto – de emissão de pequenas partículas, corpúsculos, grãos (lamelas) de simulacros que se soltam dele e se propagam no espaço –, propriedade que relacionavam com o efeito de intersecção no ar (agora entendido não como um “diáfano” neutro, mas uma “matriz” prenhe da imagem) desses “corpos-emissários” (“avant-corps”[Schefer]) dos objectos com os “espectros” que partem de um olhar que como que se adianta à percepção.

Esse “novo ser”, carácter “mutante” da imagem (“A imagem mostrou-nos que somos uma espécie mutante”, escreve também Jean Louis Schefer em Du monde et du mouvement des images [Cahiers du Cinéma, 1997 (21)]) constitui o novo real [“sur-création” (Saint-Pol-Roux)] que simultaneamente dá a ver e produz (realiza) o cinema.
As imagens, por si, não só acrescentam matéria ao mundo, funcionando como uma espécie de segunda (ou nova) criação, como, o que é decisivo, nelas o elemento criado não reproduz o real (modelo) tendo antes a ver com um real alterado no processo e captado na sua diferença. Daí, também, o carácter tangível do “olhar” que é, claro, exponenciado pela fotografia e sobretudo o cinema: é possível, assim, tocar pelo (no) olhar, de acordo com uma noção de “visão” entendida tanto como “penetração” (Valéry) como “con-tacto” [tuchè (Lacan)].
O corpo, deste modo, assemelha-se a uma placa (película) foto-química sensível dada, por onde quer que ela circule, num estado de emulsão permanente com o meio.
É esse o estatuto do corpo de Elle Faning (Jesse) em The Neon Demon (The Neon Demon – O Demónio de Néon, 2016) de Nicolas Winding Refen: um corpo entre a “folha branca” (vazia) de papel (de baixa granulagem) e o “cristal” (“um diamante num mar de vidro”, como diz dela outra personagem do filme, a maquilhadora Ruby).
Para Lacan [L’Éthique de la Psychanalyse (Séminaire VII)], a “arte” (se quisermos, a “forma”) consistia em bordar à volta de (e sobre o) “vazio”, ou seja, o real (propriamente dito) [Seuil, 1986 (155)]. Elle Fanning é esse “bordado”: por um lado, muito preciso nos seus traços (a filigrana do rosto) mas, bastando para isso um efeito de luz (na cristaleira da imagem), sempre a ponto de desaparecer, desvanecer-se – ainda que dela permaneça em nós, e na imagem, o decalque tanto da “ideia” (da “forma”) como da “objectividade” (realidade?) do seu desenho (traçado). Um contra-relevo (Tatlin) do vazio, como o “branco” é o lugar onde todas as cores se encontram e anulam.
Com efeito, com 16 anos e virgem (o seu astro é a lua), ela configura-se como um “espelho” = “ecrã” para a vinda = reflexão dos “fantasmas” dos outros – e só num segundo momento, violento [que evoca Cat People de Paul Schrader (A Felina, 1982)], de si própria. Quando se “despe” para o fotógrafo, no negro da câmera (instalação) do plano, ela é a “chapa” a impressionar mas também o princípio (activo) de fantasmização de todas as imagens (e teatros do imaginário).
Já em Faa yeung nin wa (Disponível para Amar, 2000) de Wong Kar-Wai há um momento em que, no ralenti (adormecimento) do plano, como que se produz um efeito de aceleração do movimento da mão da Srª Chan (Maggie Cheung) que galga e agarra o braço do Sr Chow (Tony Leung) comunicando-nos uma sensação de voracidade que lembra a crispação das más-formações dos novos organismos em eXistenZ (1999) de David Cronenberg (1999).

De facto, perfurando e aprofundando o campo, o ralenti cria nele o lugar onde pode vir ou em que se vem inscrever o objecto, imprimindo na bidimensionalidade do plano (do decorativo da forma) a realidade (icónica e hologramática) de uma 3ª dimensão (volume): o casulo (crisálida) da forma ou o gérmen da sua figura. É dessa “dobra” (nó do tempo), desse lugar (saturado) de contensão e de sensibilidade (crispada) da “forma” que se solta o efeito de garra em que a “forma”, encarpelando-se, vindo (veloz e selvaticamente) sobre si, adquire a materialidade (tridimensional) do físico.
Momentos de “síntese” (hibridismo) da imagem de que emerge a realidade da forma de um corpo glorioso e monstruoso (o gérmen crisálida, a abrir-se, de um novo organismo) que, porque é exorbitante em nós, nos congestiona e (des)figura.
O que dá a ver o cinema nesses momentos é não só a nossa “verdade” mas também a verdade do ver enquanto alucinação.
O cinema, assim, revela(-nos) com a verdade do “objecto” (enquanto “ser”, possibilidade de “forma” que nos é totalmente exterior e alienígena) a da nossa “visão” enquanto processo de transfiguração = transmutação (e migração) das coisas.
Afinal, como em The Power of Words de Edgar Allan Poe [pensado como cinema por Jean-Luc Godard em Puissance de la parole (1988)], tudo mundos (atmosferas) que deflagram, explodem e implodem, para depois renascer como novas “constelações”, corpos-galáxia da imagem.
Dois exemplos.
2. É reconhecida a singularidade e superioridade do pinku eiga (cinema erótico ou porno) japonês que podemos relacionar com a afirmação de Yukio Mishima (em 1968) de que “todos os japoneses são perversos” – e não só uma “perversidade” masculina (antes de mais escópica) mas também feminina já que a mulher, nesses filmes, se posiciona simultaneamente como “objecto” e “organizadora” (mais ou menos declarada) dos cenários/quadros em que é dado o desejo.
Junichiro Tanizaki, em O Elogio da Sombra (1933), desenvolve uma concepção interessante do “belo” e do “erotismo feminino”, segundo a qual o elogio tradicional da “brancura” (nomeadamente da pele) viria sempre do “fundo” e das “sombras” [pense-se na Lady Wakasa de Ugetsu monogatari (Contos da Lua Vaga, 1953) de Kenji Mizoguchi]. Assim, para ele, a cultura japonesa caracterizava-se por procurar o “belo” no “escuro”: “a nossa própria imaginação move[-se] em trevas negras como laca”, escreve [Relógio d’Água, 2008 (67)]. Daí também que haja sempre algo da ordem do “fantasma” (do “demoníaco”) na sua noção de “belo” que é trabalhada por um buraco negro (vazio): “por muito branca que seja uma japonesa, há sobre a sua brancura como que um ligeiro véu, pelo que, por muito que [elas] se branqueiem”, como as ocidentais, “nunca [conseguem] apagar o pigmento sombrio oculto no fundo da sua pele” [66] (sublinhamos).
Se o “objecto” (o corpo feminino) é constantemente trabalhado pelo princípio de “turvação” (obscurecimento) desse “vazio” (interior), o ponto de vista que lhe corresponde na percepção é ele próprio tendencialmente oblíquo (desviado): o da “perversidade” da invidia (Lacan) que se marca no próprio “enquadramento” do plano (“enquadramento”, aliás, que constitui já por si/ em si um “fétiche”) e se dá a ver seja no “desvio” do ângulo de tomada de vistas (ele próprio ”estranhante”), seja no modo (complexo) como é organizado o material do desejo dentro da “cena” (enquanto sua “dramatização”) ou no “plano” (enquanto objectivação do fantasma : fotografia do inconsciente).
Essa “perversidade” (voyeurismo), contudo, não é só a do indivíduo (sujeito) mas também a da perspectiva cultural (e ideológica) que introduz uma série de “interditos” (obstáculos) à exposição do nu e do sexo que conduzem (obrigam) a uma “cenografia” (dramaturgia) enviesada e estranhante do desejo, tendo em conta o que pode (seios, torso, pescoço, nádegas) ou não pode (pêlos do corpo, órgãos genitais – sobretudo os femininos) ser mostrado. O que vai no sentido da noção de fétiche (Freud), se a função deste for a de esconder e mascarar uma “ausência” = “falta” [a do phallus ou do obsceno (o genital)]: daí a oferta, nesses filmes, de um conjunto de adereços = próteses (flores, bibelôs, o novelo dos lençóis) que vêm no lugar da coisa em falta e a que se acrescentam efeitos formais de esbatimento (flou) das imagens (os chamados bokashi).
Compreende-se, portanto, o carácter teórico deste cinema – o seu erotismo é sempre de 2º ou 3º grau -, quer quanto aos cenários do desejo, quer quanto ao seu próprio dispositivo, commumente encarado como instrumento de exibição (mostração), projecção e representação (figuração) do “desejo”.
É o caso de Edogawa Ranpo ryôki-kan: Yaneura no sanposha (Watcher in the Attic, 1976) de Noburo Tanaka que adapta dois contos de Endogawa Ranpo, o mestre do chamado ero-guru-nansensu japonês dos anos 20 e 30 do século passado.
Trata-se de um filme sobre ver no cinema, cuja dimensão meta-cinematográfica faz corpo (à letra) com uma concepção de “voyeurismo” como meta-desejo [Mary Ann Doane (Femmes fatales)], algo eminentemente “mental” (cerebral) que implica tanto o distanciamento como o refinamento (perverso) dos cenários (poses) de relação com o objecto.
Assim, logo no início, antes ainda do genérico, assistimos à construção por Goda (Renji Ishibash), no sótão da casa em que vive, de um dispositivo (cinematográfico) de peep-show por onde espreita, do alto (em picado), os vizinhos. Os raios de luz que aí entram – e que incidem num dos seus olhos que surge quase sempre iluminado – fazem do sótão, para lá de uma câmera escura, uma sala de projecção (de imagens, fantasmas).
Mas não é só o “olhar” que aqui é construído/encenado, já que o próprio objecto [Lady Minako Kiyomiya (Junko Miyashita)] se dá à partida como objecto (espectáculo) para ser visto. Assim, se Goda vê o que se passa em baixo (é o contra-campo desses jogos carnais/sexuais, o seu 3.º implicado), tem-se aqui um duplo ponto de vista que se desdobra na mulher que, ao se aperceber do orifício no tecto por onde é vista, passa a agir (e gozar) em função dele.


Tem-se deste modo de uma concepção de cinema como peep-show – de acordo com o modelo de filmes do “primeiro cinema” como Ce que l’on voit de mon sixième (Pathé, 1901) – e ao mesmo tempo devaneio (sonho), realização (encenação) do “fantasma” do espectador (e talvez do próprio dispositivo de cinema, se as máquinas não se limitarem a ser “celibatárias” mas tirarem também algum gozo do que fazem). Verifica-se, aliás, uma situação de “escopofilia” generalizada no filme e se todos os personagens (Goda, Lady Minako, o seu marido e o motorista, Hiruta) montam os seus “teatros do desejo”, isso corresponde a essa ideia de cinema como teatro = encenação.
No entanto, como é comum no cinema (erótico) japonês dos anos 60 e 70 (pense-se em Kôji Wakamatsu) há aqui uma muito estreita (e batailleana) relação entre “sexo” (Eros) e “morte” (Thanatos) [vd. Ai no korîda de Nagisa Oshima (O Império dos Sentidos, 1976) ou Jitsuroku Abe Sada (A Woman Called Sada Abe, 1975), a versão que Tanaka deu um ano antes do mesmo fait-divers de 18 de Maio de 1936].
Só que essa relação assume aqui uma dimensão cósmica.
Assim, enquanto Goda e Kiyomiya fazem amor no sótão (numa atmosfera azulada, venenosa e sonâmbula), dá-se um corte para imagens (documentais) do grande terramoto Kanto de 1 de Setembro de 1923 (100 mil mortos, destruição parcial de Tóquio e fim da mais liberal era Tasho), a que se segue um plano com os dois amantes abraçados mas mortos debaixo dos escombros da casa.
Como se a “enormidade” (escândalo) do seu acto desencadeasse essa convulsão telúrica [lembramo-nos de L’Âge d’Or de Buñuel/Dali (A Idade do Ouro, 1930)] ou como se eles, no seu orgasmo, condensassem em si (e constituíssem a figura) da violência da Natureza. Algo que se continua, derrama para o plano da História com as imagens de uma mulher ainda jovem a lavar-se num poço de onde puxa a água com uma alavanca; de início a água sai branca, mas depois começa a sair sangue. O mênstruo da terra? A baba (idiota) da História?
Tem-se aqui uma concepção de História – do desejo, natureza e do próprio cinema – como crueldade.
O que pode ter a ver com o que Ranpo designava, num texto de 1936, por nostalgia da crueldade: “apenas a guerra e a arte, ainda que por meios radicalmente diferentes, satisfazem abertamente a <nostalgia de crueldade> renegada por milhares de anos [de civilização]”, escreve, para concluir: “A arte não desiste de atravessar as águas mais profundas do tabu. E então daí florescem gigantescas flores vermelhas” (apud Gérad Peloux/ Cécile Sakai [ed.], Edogawa Ranpo: les méandres du roman policier au Japon, Le Lizard Noir, 2018 [138, 140]).
3. Com efeito, todo o objecto do olhar é monstruoso.
Tod Browning, no seu filme de 1932, utiliza verdadeiros “freaks” e não actores, fazendo do filme, antes de mais, um documentário sobre “fenómenos” (seres: casos excepcionais), algo que é ainda acentuado pela literalidade do título.
Daí ter-se no filme não tanto um “efeito de real” mas de verdade, não “representação” mas um “living act”, performance. Deste modo, e de acordo com o sentido etimológico (em grego) do termo “drama” (nomeadamente na Poética de Aristóteles [III]), no filme assiste-se ao “pôr em acção” da sua condição pelos próprios indivíduos (e não “personagens”), vivendo a sua vida, problemas de relação entre si e o mundo.
Na verdade, eles não são apresentados como “atracções” (efectuando as suas proezas, números, em palco, de modo a que o seu “papel” apague e se substitua à pessoa) sendo antes filmados na trivialidade da sua vida comum, cumprindo as suas funções biológicas (comer, beber, dar à luz), de recreio (a espantosa “partie de campagne” impressionista na floresta) ou afectivas (com as suas paixões, sejam a dos anões Hans e Frida ou as das duas irmãs siamesas).
Temos aqui não o “bom objecto” (sempre “melhorado”) – aquele que devia constituir o paradigma da “mimese” para Aristóteles – mas uma estética do particular = excepcional , ou seja, não do “belo” e do “harmonioso” (do arranjo conforme das partes no todo) mas do “feio” (desagradável) e do “monstruoso” (do extra-ordinário, singular), ambos caracterizados por um “todo” sempre com partes a menos ou a mais que os reconfigura (reconverte), procedendo a novos arranjos (combinações), eles próprios elaborados em função dessa “falha” ou “excrescência”. Frances a beber (ou comer) pelo seu pé, ou o modo de fumar do “homem-tronco”, são exemplos desses rearranjos que garantem uma nova funcionalidade do corpo.

É esse o registo do Fantástico natural, ou do realismo fantástico, entendidos à letra, do filme – em sintonia, aliás, com a estética às claras do autor a que se refere Nicole Brenez («Lon Chaney and Tod Browning – Thesaurus Anatomicus» in Bernd Herzogenrath [ed.], The Films of Tod Browning, Black Dog Publishing, 2006).
A “literalidade” (do objecto, título) do filme conduz-nos de uma lógica da “representação” (= imitação) ao carácter mais deíctico (indicativo) de um “parti pris” de ex-posição = mo(n)stração, visibilização ostensiva. Deste ponto de vista, podemos interpretar o “rasgar do plano” (papel: superfície 2D) do genérico (com o título do filme) como uma espécie de “levantar da cortina” (do espectáculo: representação) que serve para introduzir directamente na imagem, sem corte, a figura do bonimenteur (apêndice das sessões do “primeiro cinema”) que faz o reclame (publicidade) da principal atracção do “show” (e do filme): Cleópatra, a mulher-galinha.
Que esse acto de “revelação”: “exposição” fique em suspenso, e só seja desocultado no fim, constitui uma espécie de entorce (perverso) ao desejo de ver do espectador: o preço a pagar pelo seu voyeurismo será o “susto”, o medo de se tornar ele próprio um “monstro” como Cleópatra. O discurso do bonimenteur (também figura do realizador), e depois o récit, constituem a mise en images (no diferimento e dilatação do tempo da “percepção” que é, afinal, o efeito do cinema) do carácter ob-sceno dessa expectativa: a revelação da 3D imaginária do cinema.
Mas Freaks – como o cinema também o é devido ao poder transfigurador do seu “olhar” – é ainda um filme sobre a monstruosidade.
Em Tod Browning, observa Nicole Brenez, os “diferentes” tendem a aproximar-se de modo a fazer emergir um fundo comum. No seu prosaísmo não-romântico e radicalidade melodramática, vai-se, no filme, da suposição de “humanidade” do “monstro” (leitura antropocêntrica e sentimental do melo: os “freaks” seriam “humanos” e estes, Cleópatra e Hércules, os verdadeiros “monstros”) à revelação de um fundo de inumanidade comum (que teria a ver com a afirmação de uma pulsionalidade = afectividade pura e desinteressada). Logo no início, aliás, o bonimenteur, refraseando uma afirmação de Diderot em Le Rêve de d’Alembert, alerta-nos para o facto da distinção entre “normal” e “anormal” depender sempre de um jogo de dados (uma combinação de fibras e átomos) aleatório à nascença. Daí o “esbatimento” tanto das diferenças estéticas e morais [entre humano/não-humano, belo/feio, masculino/feminino (de que é exemplo o corpo hermafrodita de Joseph/Josephine)], como da própria categoria de “monstro”: para Diderot, assim, “o homem talvez não seja mais do que o monstro da mulher e, esta, o do homem” já que ”qualquer coisa é sempre mais ou menos uma coisa qualquer” e “nada pertence por essência a um ser particular”.
O carnaval (saturnalia) grotesco da cerimónia do casamento entre o anão Hans e a trapezista Cleópatra (escândalo cósmico, contra-natura, que produz uma mistura e inversão das ordens) constitui afinal o momento e o lugar dessa abolição das diferenças. Presentes, os “humanos” (Cleópatra e Hércules), dado o seu tamanho, julgam controlar os acontecimentos mas, na verdade, eles são engolidos e absorvidos pelo caos proteiforme do corpo-pólipo único formado pelo conjunto dos “freaks”.
Nessa cerimónia, o ritual (de iniciação) de todos beberem por uma única taça (a “taça do amor”), sela o rito de “pertença” (inclusão) que faz de Cleópatra um membro da comunidade dos “freaks”. “We accept her as one of us”, cantam em conjunto, batendo com os talheres no tampo da mesa. Voto (processo) que é cumprido na noite de tempestade (de convulsão cósmica dos elementos) em que, como um corpo-rizoma (pólipo movido por uma única pulsão, vontade), a comunidade, de acordo com o seu “código de honra”, vinga Hans, mutilando (e redesenhando) a bela trapezista.
Reduzida abruptamente a perseguição (o filme, depois do “preview”, sofreu cortes de cerca de 30 minutos), ocorre então a revelação do corpo de Cleópatra como “monstro”: “believe it or not, there she is”, remata o bonimenteur mostrando o corpo refeito (e híbrido) de Cleópatra agora uma galinha (com penas mas sem braços ou pernas) que cacareja.

Deste modo, o “realismo fantástico” do filme de Tod Browning – passando pela paródia (crítica) dos clichés de melodrama sentimental do final acrescentado – tem a ver com a “plasticidade” e “transparência somática” (Brenez) do corpo às perturbações (acidentes) do psíquico: as imagens literalizam as emoções (o pathos), assim como os tropos de linguagem ou os cenários do “fantasma”.
Se o “corpo” em Tod Browning constitui uma matéria maleável [plasticina ou argila (Lon Chaney)] que permite uma “nova criação”, esse corpo experimental (crítico, revelador ou somático) é um corpo mutante (e “monstuoso”, pela novidade das suas combinações), afinal como a matéria (plástica, soft) do cinema.
Mais especificamente, no caso de Freaks, ele teria a ver com esse “rasgar da cortina” que, como nos Cantos de Maldoror de Lautréamont / Ducasse, abriria o caminho a uma escrita da desmesura conduzida carnavalescamente (“C’est un cauchemar qui tient la plume”, lê-se nos Cantos) pelo fulgor performante de corpos metamórficos, em constante transformação e que se redefinem, nos seus novos arranjos, para lá dos valores do “bem” e do “mal” ou da ordem do “humano”.
Algo que só nos pode dar a olhar (ver), em acto, o cinema.
4. Tudo seria mais linear se o nosso “olhar”, e o do cinema, não se aproximassem mais, pelo menos em potência, do modelo pluri-ocelar da visão de um insecto [ou de uma cremalheira de lentes (Vertov)] do que da bipolaridade frontal do “homem” segundo a Dióptrica (1637) de Descartes.
Um olhar, sim, cepadópole, tentacular e táctil [Epstein, sempre ele, referia-se em 1926 à miríade de “facetas ópticas de um imenso insecto”, cada qual com “uma perspectiva particular” (Écrits I: 136)], ao qual corresponde, por um lado, uma visão desfocada, fluxional, prismática e intersectada [a de X: The Man with X-Ray Eyes (O Homem com Raios X nos Olhos, 1963) de Roger Corman], e, por outro, uma imagem-folhada organizada como um feixe irradiante e palimpséstico de camadas e texturas de matérias e espectros (simulacros) que, pelo acto de percepção-projecção em que ele é dado, engrena com o real, produzindo nele efeitos que o alteram e transfiguram.
Trata-se não só de fechar o nosso olhar ao exterior para que em nós venha o interior – de acordo com o conhecido aforismo do pintor (romântico) alemão, Caspar David Friedrich – mas de, além disso, deixar entrar em nós o exterior para de dentro, e a partir dele (o tal “Sol na gruta” anunciado por Saint-Pol-Roux), nos iluminarmos.
Algo a que pode corresponder a imagem-vídeo mutante trabalhada por Jean-Luc Godard a partir dos anos 70 [Numéro Deux (Número Dois, 1975)] e 80 [Puissance de la Parole (1988) e Histoire(s) du Cinéma (1988-1998)].
Na verdade, à velha questão para que serve o cinema, se ele vem depois da literatura? (isto é, como sair da narrativa clássica?), podemos acrescentar outra: para que é que serve o cinema depois da TV (ou mais contemporaneamente, depois do vídeo, do digital e do 3D)?
Já em 2000, numa entrevista-livro a Youssef Ishaghpour (Archéologie du Cinéma et mémoire du siècle), Godard, nos termos apocalíptico-proféticos das últimas décadas, considerava o cinema “uma ideia do século XIX que levou um século a realizar-se” [Ferragus (86)] e à qual, di-lo-á depois a Serge Daney (“Godard faz História(s)”) a propósito de Histoire(s) du Cinéma , “nunca foi permitido [que encontrasse] a sua linguagem própria” [in AA.VV, Godard: 1985/ 1999, Cinemateca portuguesa, 1999 (39)].
Para Godard, com a “nova velocidade” da passagem e circulação das imagens (com a TV em rede, ou satélite, e os novos media), as imagens perderiam “tempo” (“duração”), “consistência” (perceptiva) e sentido, verificando-se uma necessidade de ralentissement do seu fluxo. É esse o momento da entrada do vídeo [de um vídeo-escalpelo, análise (Dubois)] no trabalho de Godard, sendo ele talvez pensado, de início, como o meio de uma possível “cura” (terapia) da linguagem, ela própria diagnosticada semioticamente em Le gai savoir (1968) (veja-se, aliás, como esta questão ressurge na sua recente entrevista, por Instagram, a Lionel Baier [7/4/2020]).
Instaura-se, assim, um processo não só de “crítica” (e aprofundamento) da “crise” do signo cinematográfico [nomeadamente pela dissociação do acordo (raccord) entre som e imagem (vd. Week End, 1967) mas também de “autonomização” (a atomização) da imagem (pela sua “fragmentação”, “des[ou sobre]semantização” e/ou exposição do caráter compósito da sua heterogeneidade através de múltiplas operações de colagem].
A imagem torna-se assim, ela própria, já a questão que interroga (critica) a “natureza” do cinema.
Chega-se deste modo à nova forma do “vídeo” entendido como uma “forma de olhar do pensamento”, um “vídeo pensante” nos termos de Philippe Dubois [«L’image à la vitesse de la pensée», in AA.VV., Godard: 30 ans après, número especial dos Cahiers du Cinéma (Novembro de 1990)].
O vídeo, pelo seu efeito de ralentissement analítico, não só critica a “ilusão de continuidade” do movimento (o seu ponto de vista é o desse “olho de caracol”, a que se referia Epstein) como “solta”/“desprende” novas unidades (por vezes atomizadas pelo efeito de freeze ou paragem na imagem) que podem configurar-se como os componentes de uma “nova forma” ou “linguagem” (sintaxe?).
Na verdade, o ralenti do vídeo não só muda a qualidade da imagem (trans-substantiva-a) como produz um efeito de arrastamento figural e matérico (de “pintura”) a que corresponde uma imagem-fluxo (feuilletée, por camadas heterogéneas sobrepostas como num palimpsesto) homóloga, ela própria, do trabalho do pensamento e em que, em consequência de uma prática quase de mixagem das formas (de variação das velocidades das imagens), se inserem/inscrevem sequências de planos-flash ultrarápidos (Dubois) que, sobrepondo-se e intersectando-se, diluindo-se uns nos outros, constroem, como já o preconizava Élie Faure nos anos 20 do século passado, “arquitecturas móveis” de formas projectando-se e circulando na atmosfera [Élie Faure, «A cineplástica» (1922), Função do Cinema e de outras artes, Edições Texto&grafia, 2010].
Daí um segundo momento da “forma-vídeo” em Godard, já nos anos 80, em que o vídeo é praticado como uma montagem pulsação = emoção orquestrada (é talvez o melhor termo devido à nova unidade fragmento-mutante de som-imagem) por sobreposição (intersecção) e fricção = fusão de planos (no sentido termonuclear e geológico-atmosférico dos termos), e isto com o objectivo de criar um dispositivo (novo órgão) electrónico-visual de vídeo-vibração (Dubois) que traz consigo uma nova imagem de “síntese” e um outro modelo de “percepção”. Ao fim e ao cabo, um cinema-projecção: um cinema (coisa) mental [neurológico, magnético, nervoso (Epstein/Deleuze)] que não só visibiliza o “intersticial” (o espaço “entre”, oculto, entre as imagens, as palavras e as coisas) como produz e inventa ideias = sensações, “mesmo onde elas antes não existiam” [Jean Epstein, Bonjour Cinéma, Maeght Editions, 1993 (115)].
Puissance de la parole (filme para a France-Telecom sobre o “conto filosófico” de Poe, The Power of Words) e Histoire(s) du Cinéma, obras em que a “forma-vídeo” se afirma de um modo já “resolvido” (“sintético”) como “molde” (talvez mais do que “modelo”) do cinema, constituem um díptico que em certa medida refunde(a) a “ideia” (e prática) do cinema do autor.
Jean-louis Leutrat e Suzanne Lindrat-Guigues (Jean-Luc Godard) encaram essas duas obras como exemplos do que designam, bem, por um cinema lucreciano, caracterizado por “engrandecimentos telescópicos e bombardeamentos de átomos visuais e sonoros, acelerações de partículas e fenómenos de reverberação e sobreposição” [Cátedra, Barcelona, 1994 (211)]. Nelas, fragmentada e atomizada, a imagem perde em qualidade epecífica (autotelismo) e torna-se sobretudo, como em Eisenstein, elemento de relação (montagem/ mixagem) tanto com outras imagens como com o próprio “real” (mundo).
Deste modo, a “forma-cinema” entreaberta pela crítica/desagregação do signo cinematográfico (casos de Week End e Le gai savoir) tem aqui a sua possível “refundação” (cura?) pela sua intermedialidade pregnante com a “forma-vídeo”. É nesse espaço entreaberto pela crítica do signo (linguagem) cinematográfico – com suspensão, pelo menos, das categorias de “representação”, “efeito de real” ou de “verosimilhança” – que, como já anunciara Epstein (“L’âme au ralenti”) a propósito de La Chute de la maison Usher (A Queda da Casa Usher, 1928), “um dia o cinematógrafo, em primeiro lugar, fotografará o anjo-humano [l’ange humain]” [Écrits sur le cinéma I, Seghers, 1974 (191)] (traduzimos e sublinhamos).
E é o que de facto aqui sucede, com Agatos e Oinos, pela mediação do texto de Poe [Neste filme, com efeito, não se verifica uma separação, corte, entre linguagem e cinema, como em Adieu au Langage (2014) sucederá, e a primeira, com a sua maior “abstracção”, pode ainda servir de enquadramento, modelo heurístico, do segundo].
Os dois planos, aliás, o “terrestre” (diegético) [com uma vaga referência a The Postman Always Rings Twice, romance de James Cain e depois noir de Tay Garnett (1946)] e o “celeste” (meta-poético) intersectam-se e são (simbolicamente) reversíveis, podendo-se mesmo ver em Franck (o garagista) uma primeira versão (encarnação) de Agatos: uma reminiscência da vida terrestre, presente nele, que não o deixa ser “totalmente” anjo, sempre ferido (vd. deploração final) pela “paixão” (e sua “mortalidade”). Uma situação, afinal, análoga à do cinema no quadro da medialidade inter-artes [linguagens: meios de (tele-)comunicação] em que ele é dado nos anos 80/90 – uma crise que o digital, com o 3D, continua e aprofunda.
Daí que a passagem do cinema pelo vídeo (nos termos do conto de Poe, da terra = vida humana para os astros, o mundo dos anjos) possa surgir com uma re (nova ou sobre) criação (Saint-Pol-Roux): ao mesmo tempo “reanimação” e “ressurreição” do real pelas (nas) imagens (e como cinema). Godard, aliás, nesses anos, gostava de citar uma frase atribuída a São Paulo: “a imagem virá no tempo da ressurreição”, acrescentando – e foi assim que de início foram recebidos os filmes dos Lumière – que “o cinema é de certo modo a ressurreição do real”.

Em Godard, como em Epstein, encontramos uma concepção animista de cinema entendido com uma “escrita terrena” (“écriture térrienne” [Epstein (I:144)]) a que corresponderia um ponto de vita “não-humano”, o dos “anjos” (Vertov diria da “máquina”) ou do “cosmos” (Deleuze).
Que assim seja, que tal “mutação” ocorra, implica também uma mutação da forma com passagem do modelo “sólido” (autotélico) da imagem-fotográfica à sua liquefação como forma-fluxo – referimo-nos, no filme, ao magma de materiais fundidos ou em laboração (tracção: compressão) geológica, que explodem e alastram, como lava, no espaço modular do mundo. Uma “forma” crítica e em crise que a experiência da 3D, com o seu efeito estereoscópico de sobreposição ligeiramente desnivelada do ponto de vista, prolonga e radicaliza (Adieu au langage).
Tem-se assim um cinema (e visão – talvez a de Roxy, o cão de Adieu au langage) pensado e praticado menos como “figuração” ou ”representação” do que como corrente (subliminar) de impressões (sensações) e estímulos (energias) (era essa a ideia de cinema de Artaud, nos anos 20 do século passado) plastificando-se metamorficamente num fluxo de formas sonoro-sensíveis ao fim e ao cabo homólogo do próprio processo da corrente do pensamento [vd. no final do filme, já com os créditos, o pulsar = desflashar de planos ultra-rápidos sobrepostos e intersectados que produzem um efeito de 3D (imaginário-plástico) na bidimensionalidade da imagem].

Chegamos assim a um cinema (e ao real, como queria Pasolini) entendido como um filme perpétuo que acontece e se dá (produz) a entretecer-se com a matéria (gasosa ou sólida) do cosmos (Poe) [vd. o cartão com a ficha de “realização” do filme em que surgem indiscriminadamente os nomes de Poe, Baudelaire, Godard ou Haroun Tazieff (autor dos filmes de onde são extraídas as imagens de vulcões), mas também a referência a umas enigmáticas, ou talvez não, Voix du Ciel que evocam essa ressonância cósmica de sons e palavras propagando-se pela atmosfera].
O cinema, com Godard – ou David Lynch (menos num plano “plástico” do que no do “imaginário”) –, entra de facto noutra dimensão: não só a 4ª (o “tempo”) mas a que lhe entreabre a inter(intra)medialidade genésica de uma visão cujo segundo par de olhos se deslocou do interior (Friedrich) e do passado (a prática da citação [talvez ainda Le Livre d’image (O Livro da Imagem, 2018)]) para um exterior que é todo o interior (Saint-Pol-Roux), o presente do futuro.