O catálogo da Filmin Portugal tem vindo, nos últimos tempos, a expandir-se significativamente. Para isso, em muito tem contribuído a disponibilização de vários títulos portugueses que nunca antes tinham entrado noutros serviços de streaming. Em particular, a recente agregação do catálogo da Leopardo Filmes, do produtor Paulo Branco, dá agora a ver uma série de filmes portugueses produzida na última década. A esta juntam-se ainda várias curtas-metragens de diversas produtoras independentes, como o catálogo quase integral da Agência da Curta Metragem. Há nomes e filmes marcantes do que foi a produção cinematográfica em Portugal, e outros mais obscuros e, até há pouco tempo, de difícil acesso. Desta feita, convidámos dez walshianos a escolherem, cada um, um e um só filme deste vasto espólio digital. Pedimos-lhes, simplesmente, surpreendam-nos! Eis o resultado, no texto com que nos despedimos dos nossos leitores para umas merecidas férias durante o mês de Agosto. Voltaremos em Setembro de energias renovadas.
Com três planos apenas constrói-se uma das mais estonteantes curtas-metragens portuguesas da última década. Um, o despertar misterioso como um nascimento, dois, o assombro e a descoberta do luto, três, a esperança, a salvação e a luz. Algures entre a reverência ritualista de Manoel de Oliveira e a transcendência cénica religiosa de Tarkovski, uma história simples (um salvamento de um homem caído num poço), filmada na fronteira limite entre um minimalismo realista e uma estranheza inquietante, assume contornos quase sobrenaturais, dominada por uma atmosfera de neblina, sons e vozes guturais que assombram e expandem a acção para fora de campo.
A solenidade com que a câmara se movimenta e filma os rostos desgastados e derrotados é a mesma exigida pela morte mas também pela fé e ressurreição, e este é também um filme de olhares e silêncios, ou seja, de emoções confinadas. Como um vislumbre de um outro mundo esquecido, Ascensão desenrola-se como um novelo que é lentamente desfiado até chegarmos ao núcleo da história, ao igual desamparo do luto e amparo do abraço maternal. Um fantasma ou uma aparição? O que interessa é a luz.
João Araújo
Será talvez uma escolha inevitável e recorrente, mas Cavalo Dinheiro constará sempre de qualquer top que faça. E consta porque independentemente de qualquer canonização ou institucionalização, quer da obra, quer da própria figura de Pedro Costa, este filme escapa a qualquer imagem cristalizada que dele queiramos fazer. Porque nenhum outro filme soube melhor invocar a natureza fantasmagórica e com esse fantasma destabilizar narrativas e construções históricas. Ventura regressa da noite, como regressa habitualmente ao meu imaginário para me assombrar, porque é uma força em constante movimento, é a imagem que supera o anonimato e o silêncio: ele existe para reclamar o lugar, para fazer existir a comunidade por vir.
É por isso que Cavalo Dinheiro será sempre incapturável, assim como a própria obra de Costa, porque quando queremos regressar a ela, ela é já outra coisa, outra história, outra imagem, outra pulsão. Talvez por isso, a análise de António Guerreiro sobre filme seja tão inteligente, porque soube, melhor do que ninguém, compreender que Ventura não faz parte da dialéctica dos vencedores/vencidos. Ventura faz antes parte de uma terceira categoria, tal como todas as personagens de Costa em boa verdade, porque não há qualquer intenção de fabricar gigantes, Ventura existe por si próprio, sem que o cineasta tenha de fazer dele herói. Não há maior radicalidade do que esta, porque mais do que resgatar da história oficial os vencidos, Costa e este filme em particular criam algo que nunca existiu, porque nunca teve a possibilidade de se construir enquanto narrativa.
Bernardo Vaz de Castro
E Agora? Lembra-me abre lento como o caracol que vemos no primeiro plano do filme, criatura fantástica como aquelas que Joaquim Pinto vai encontrar nos livros da Biblioteca Nacional de Espanha. Vêmo-lo passar gigantesco, molusco redimensionado, à semelhança dos dias que Pinto aprende a contar de outra maneira, durante “um ano de paragem forçada”, por causa de um ensaio clínico para tratamento da Hepatite C a que se submeteu.
Pinto vive há vinte anos com o VIH e a história do vírus confunde-se com a história do seu corpo, da sua vida, do seu país e de um mundo que percorreu também graças ao cinema. Realizador e engenheiro de som de uma lista extensa de obras do cinema português e europeu, faz-nos chegar as suas memórias através das imagens da feitura desses filmes, as suas vidas paralelas.
Os efeitos perversos da medicação transformam-se em visões, através de uma alquimia generosa que converte dias maus em coisas muito belas. Como num diário, o realizador e protagonista deste road movie, aponta detalhes clínicos, impressões, ocorrências quotidianas, pensamentos acerca dos corpos, da natureza, das epidemias, da relação entre os bichos e os humanos, entre a vida e a doença.
É um filme terno e triste, jovial e já muito velho, de uma atenção extrema ao mundo à sua volta, forma desusada de amor. É uma sorte tê-lo agora como parte deste catálogo. Que o aproveitem aqueles que não tiveram oportunidade de o ver quando estreou, em 2014 – os dias correm rápidos, às vezes.
Raquel Morais
Na açoriana ilha do Corvo, com uma extensão de terreno com pouco mais de seis quilómetros de comprimento e onde residem cerca de 430 habitantes, a vida adquire uma qualidade única, mística e quase palpável, que a câmara de Gonçalo Tocha, em É na Terra Não é na Lua, regista ao longo de três horas de filme.
Documentário de perfeita “catalogação” de pessoas, paisagens, animais e costumes, a sua execução formal é superlativa na captação de uma existência em total oposição ao frenesim das sociedades ditas modernas; na ilha do Corvo, e de um modo quase etéreo, o tempo tem o (real) condão de abrandar, deixando o indivíduo usufruir do seu direito ao ócio e formando um quotidiano onde os seus valores etnográficos continuam a ser perpetuados.
Paralelamente, a visão do próprio realizador a interagir com os cidadãos do Corvo, e a “sucumbir” às vivências daquele lugar (o filme não acabará até que a confecção de um típico barrete azul fique pronta), revela, também, o fascínio que “uma forma de vida mais simples” pode exercer em cada um de nós. Nos tempos incertos e de semi-reclusão em que estamos, (re)visitar É na Terra Não é na Lua pode ser antídoto e antítese para o desesperante sentimento de “vida parada”.
Samuel Andrade
Filme do Desassossego é filme-ópera. Mais do que uma leitura decorativa, o próprio filme começa com uma orquestra a afinar (onde?) no São Carlos (está claro!) e desenvolve-se em pedaços cada vez mais oníricos (qual Inception qual quê!), tendo cenas líricas interpretadas por Angélica Neto e Elsa Cortez, e participações musicais de Carminho, Lula Pena e Ricardo Ribeiro.
Tão imperfeito que até emociona: ingénuo, atrevido, experimentalista e desconexo, mas é daí que vem toda a sua força hipnótica. Sente-se uma fornalha criativa a borbulhar durante as duas horas de filme. Sente-se um prazer infinito em percebermos um filme que vive da sua multiplicidade de actores que surgem em gags mais ou menos filosóficos. De salientar a menina Wallenstein a explicar-nos a três dores pessoanas ou Miguel Guilherme e Rita Blanco a discorrer sobre a gramática em mudança ou ainda Rui Morrison a comentar o caixão de um nado-morto.
Depois, claro, há a explosão de imagens inquietantes de Botelho: um moça nua a desfilar na noite, um sapato vermelho num casaco de peles, uma lagosta a nadar, as sombras do quarto de Soares, o cinzeiro vazio (podia ser uma letra de Abrunhosa). E depois os travellings no restaurante a passear de mesa em mesa. E é Lisboa o elemento aglutinador.
Lisboa é um sentimento. Aparece-nos uma Lisboa de hoje (já passou uma década) com gajos a foderem na rua e mendigos no chão e graffiti nas paredes e Pessoa a passear-se pelo meio disto como se fosse o princípio do século. Lisboa é sensação, coisa animal e incontrolável. Enfim, ainda não tinham chegado os turistas, nem o pastel de bacalhau com recheio de queijo da Serra, nem o fabuloso mundo mágico da sardinha enlatada… Que saudades da indigência (diria, certamente, Álvaro de Campos na fila dos pasteis de Belém).
Ricardo Vieira Lisboa
A curta-metragem Fuligem é atravessada por comboios e impregnada de memória, errando, através da janela turva de um comboio, entre um passado de felicidade pueril (mas com um desenlace trágico) e a tristeza desoladora do momento presente.
Começamos num ambiente altamente cinemático, com um néon que pisca no exterior de um prédio e que vai iluminando intermitentemente o interior de um quarto. Depois iniciamos uma viagem de comboio, contemplando um homem que, em abandono total, decide sentar-se de costas numa carruagem vazia, acompanhando-o numa viagem ao seu passado e a um Portugal que se fez vazio.
A narrativa corre em dois momentos distintos, o da adolescência do protagonista e o da sua idade adulta. Podemos situar o primeiro momento no final dos anos 80, indicado pelo cartaz afixado na carruagem de comboio abandonada, numa estação de comboios desactivada, alusivo ao Mundial de Futebol ocorrido no México em 1986.
Há aqui um belo trabalho de filigrana, construído a partir destes fugidios elementos que podem perder-se num breve piscar de olhos. O filme e a sua história estão construídos em pequenos pormenores que, não sendo ostensivos, conferem profundidade à história. Atente-se nos cartazes de propaganda política que, anunciando “por um futuro melhor”, parecem escarnecer daquilo que nos é dado a ver.
O filme não dispensa também aquelas pequenas reacções muito humanas e muito insignificantes que fazem de um filme de animação algo de transcendente – veja-se o momento em que a criança, perante o barulho de uma escada de madeira que é arrastada, se encolhe em reacção ao som estridente.
Sim, uma curta deve ser isto, um pequeno pedaço de vida que ultrapassa, em muito, aquilo que é a sua metragem.
Daniela Rôla
O cinema como espaço de recriação, verdade e mentira, e efabulação, parece desenvolver-se na curta A Glória de fazer cinema em Portugal, de Manuel Mozos – encomenda lançada pelo Festival Curtas de Vila do Conde.
O realizador dá voz a uma história que começa por um coleccionador que encontra no seu espólio bobines de “fitas cinematográficas’’ com precioso material. Esta descoberta parece vir completar (dar luz a outros factos) e trazer à tona uma situação que, por seu lado, remete para outros dados desconhecidos: uma investigação a fazer. É nesta cadeia que o filme se constrói e vai unir o material num jogo de montagem, tratamento do suporte, e também num jogo com o espectador. Temos um filme de peças com filmes dentro uns dos outros, figuras reais, cartas, operadores de câmara, película deteriorada, pescadoras de negro… Arquivo, arquivo fabricado, e uma recriada mise en scène, entram numa zona de realidade e dúvida – “divertimento”, dirá Mozos, que ardilosamente montou todo o esquema, com o contributo de Miguel Dias (co-director do Curtas) e Eduardo Brito, argumentista.
Esmiuça-se a história, o conteúdo das bobines e os inéditos 4 minutos, que fornecem a base para a tese do filme, expressa numa carta. A relação é posta entre os literatos, José Régio que escreve a Alberto de Serpa, expressando a vontade de fazer cinema. O filme cresce na lógica de desvendar a proposta aludida na carta. Há que analisar o material para descobrir as presenças desta aventura, materializadas nas “experiências filmográficas”, afinal acontecidas. Por fim, para um belo remate, é referida a estreia de Douro, Faina Fluvial (1931) e Manoel Cândido Pinto de Oliveira abre a porta à glória do cinema… Um filme que brinca, extrapola, faz crescer factos e entra na experiência do cinema como campo abundante de fabricação e possibilidades expansivas com direitos próprios.
Carlota Gonçalves
Para falar dos problemas mais graves dos adultos, a câmara de António-Pedro Vasconcelos teve de estar à altura das crianças. Se Jaime (1999) é um retrato social honesto sobre o trabalho infantil, não menos é um filme ausente de moralismos sobre a toxicodependência, a prostituição ou a indigência. São essas situações que passam pelo olhar não totalmente inocente, mas também ainda não corrompido, do seu jovem protagonista. Um olhar que não julga mas apenas presenceia, aceitando a dureza das circunstâncias que testemunha mesmo não as compreendendo. Como tal, um heroinómano surge na cena a sucumbir ao vício como se se tratasse de um gesto corriqueiro, uma rapariga que conhecêramos numa fábrica aparece mais tarde a estrear-se no meretrício, e nada disto necessita de um discurso panfletário para consciencializar o espectador das realidades mais marginalizadas, excluídas e desesperançadas da sociedade portuguesa.
Mas Jaime é, acima de tudo, essa história de um miúdo rebelde, afoito, inconformado, mas de bom coração, que ao tentar reatar a relação dos pais separados aprende a ocupar o seu lugar na família e no mundo. Que é como quem diz: Jaime mostra uma jornada de amadurecimento onde o filho se torna o pai, entidade fulcral para a estabilidade familiar e seu sustento. Em qualquer cena onde Jaime esteja com a mãe, não duvidamos qual dos dois precisa mais do outro. Ela é imatura, ingénua e emotiva, uma criança frágil crescida a necessitar de cuidado, como Vasconcelos tão bem sugere naquela cena onde o petiz leva o pequeno-almoço ao seu leito.
Em pano de fundo, surge o Porto como melancólico cenário cinematográfico, com as suas ruelas estreitas, escadarias altas e edifícios amontoados, por onde o rapaz vagueia solitário e luta pela sobrevivência [como Rossellini havia feito décadas antes com Berlim, em Germania anno zero (Alemanha, Ano Zero, 1948)]. Luta compartilhada pelos padeiros, costureiras, trolhas, engraxadores, e todos os outros operários filmados que, apesar das condições precárias onde laboram, fazem intrepidamente a nobre labuta diária para ter o pão na mesa ao começo do dia e as contas pagas ao fim do mês. É deles que Jaime tentará fazer parte até ao último plano, aquele com a ponte Luiz I, cuja majestosidade marcará a conquista da sua total independência, feita de poderes, sacrifícios, responsabilidades, e tudo o mais que implica o início da idade adulta, mesmo para quem ainda só tenha 14 anos.
Duarte Mata
A adolescência é apocalíptica. Olhava para o grande espelho do cinema e “inspirava” as lições de Larry Clark e Gus Van Sant sobre esse período de violenta (auto-)descoberta, procurando encontrar pistas sobre mim mesmo: como me situar no mundo após o fim da infância e de todas as suas doces mentiras? Percebia – e revia-me – nos americanos, mas depois surgiu um pequeno OVNI nas salas portuguesas, com caras frescas e uma linguagem diferente, distante da “arte da mise en scène” dos mestres do cinema nacional.
Uma linguagem mais próxima da pele das suas personagens e em perfeita sintonia com essa paisagem interior que, afinal, não tinha de ser apocalíptica. Vagueando entre o torpor do Verão, o calor dos corpos e o ansioso desejo de ser livre, Respirar Debaixo D’água, de um realizador talentosíssimo que infelizmente perdeu a mão sobre a sua carreira, é, ainda hoje, um dos objectos mais encantadores acerca da adolescência enquanto limbo, lugar entre o Paraíso e o Inferno, entre, por um lado, o primeiro beijo, os mergulhos no mar na companhia dos amigos e, por outro, o tédio das aulas e o violento cinto do pai.
Luís Mendonça
Perto do final da travessia de Terra Franca, Albertino observa a filha recém-casada no findar do almoço de casamento e, em jeito de sussurro, comenta com Dália, a esposa, “O pior vem depois, não é Dália? E o melhor também”. O filme de Lenor Teles, primeiro passo da cineasta em longa-metragem, fê-la regressar à sua terra natal, Vila Franca de Xira. Um filme ribeirinho, mas robusto, onde Albertino Lobo vai negociando o tempo, sozinho no seu barco, entre a vida piscatória que lhe escapa e o seu lugar no seio familiar lá de casa. Tomo de assalto as palavras de João Bénard da Costa, pois Terra Franca é de facto um filme “muito lá de casa”.
Albertino é o The Quiet Man (O Homem Tranquilo, 1952) de Ford, aquele que faz uma leitura do mundo que o rodeia, através de um olhar que pensa. Se no início de Terra Franca, Leonor Teles nos presenteia com um homem em conflito, de punho, a lutar pelo seu sustento – a pesca, cuja licença perdeu -, com o correr do tempo vai desconstruindo Albertino, o homem que passa a ficar em terra e nos abre portas para algo maior. Albertino é parco em palavras, terreno. O silêncio e o intervalar dos cigarros que fuma são por si só um banquete de pensamento. Leonor não precisou de mais e nós também não. Acabamos a ser mais um membro da família Lobo, sentamo-nos à mesa sem cerimónias, a comer batatas com grelos. Estamos em casa.
Nuno Gonçalves