I think that a letter is so completely tied to its objecthood that the meaning of the object reinforces the content of the letter. And they’re completely intertwined with each other. So seeing the actual, physical objects there’s something incredibly raw about it.
Ouvimos Audrey (Deragh Cambell), protagonista de MS Slavic 7 (2019), sentada na mesa de um bar, refletindo sobre a experiência de tatear as cartas endereçadas pela poeta Zofia Bohdanowiczowa ao autor Józef Wittlin entre 1957 e 1964, arquivadas na Universidade de Harvard. Ambos os escritores foram exilados da Polónia durante a 2ª Guerra Mundial, estabelecendo-se em Toronto e Nova Iorque, respetivamente. Zofia era bisavó da realizadora do filme, Sofia Bohdanowicz, que, pela mão da personagem principal que criou, procura no legado familiar um melhor entendimento da sua identidade.

Parte da obra da cineasta canadiana gravita em torno das potencialidades materiais de uma panóplia de objetos de arquivo. Estes artefactos assumem diversas formas no seu cinema, desde cartas (MS Slavic 7), gravações de músicas [Veslemøy’s Song (2018)]) ou programas de televisão [Never Eat Alone (2016)], criados por diferentes familiares seus. As imagens concebidas por Sofia Bohdanowicz incorporam tais materiais, sujeitando-os ao toque, projeção e manuseamento, ocupando frequentemente a totalidade do plano. Audrey, personagem transversal e avatar da realizadora nos filmes supracitados, garante a subjetivação da perspetiva autobiográfica, contribuindo para o posicionamento das narrativas entre o documentário e a ficção.

Bohdanowicz segue minuciosamente a execução destes procedimentos quase-arqueológicos, detendo-se em planos de pormenor das mãos de Audrey, procurando com ela encontrar algo escondido nas entrelinhas. As cartas, a gravação musical e o programa de televisão garantem a continuidade de uma presença espectral dos seus familiares, uma existência material post mortem que estes objetos representam e cuja longevidade contrasta com a efemeridade da vida humana. É possível traçar um interessante paralelismo com o ofício de arquivista fílmico, capaz de discernir a idade da película através da análise das imperfeições e vestígios de decadência.
Outra dicotomia que vai surgindo nos filmes de Bohdanowicz é o facto de os arquivos estarem depositados em instituições, estabelecendo-se uma curiosa tensão entre público e privado. As memórias estão fora da sua posse, acentuando a alienação de Audrey/Sofia com o seu passado, já de si quase inacessível pela barreira linguística, geracional e cultural. O processo cinematográfico pretende atenuar tal desconexão, mimetizando a experiência do toque, do cheiro ou do som, revivendo as emoções associadas aos bens materiais que permaneceram.
Esta preocupação meticulosa com o processo manual encontra eco no detalhe com que a realizadora retrata a vida doméstica solitária do idoso. Momentos banais da existência como cozinhar, comer, passar a ferro ou dormir – atividades pouco exploradas cinematograficamente e que já lhe valeram comparações com Chantal Akerman ou Agnès Varda – assumem o protagonismo das suas obras. Neste âmbito, note-se o aventurar da cineasta para fora da sua árvore genealógica, nomeadamente no documentário Maison du Bonheur (2017), que acompanha o dia-a-dia da septuagenária astróloga parisiense Juliane Sellam.

As duas dimensões táteis presentes no cinema de Sofia Bohdanowicz – manuseamento de arquivos e retrato das lides domésticas – conjugam-se surpreendentemente no projeto inicial da sua carreira, a trilogia de curtas metragens sobre a sua avó materna. Modlitwa (A Prayer, 2013) coloca em cena a vivência isolada da sua parente, enquanto realiza tarefas variadas no seu lar. Wieczór (2013) passa pelos mesmos lugares da casa agora vazios, após o seu falecimento. Em Dalsza Modlitwa (Another Prayer, 2013) Bohdanowicz projeta as imagens da falecida avó (utilizadas em A Prayer), fazendo-as corresponder nos espaços desertos da curta anterior. O efeito criado é o epítome do traço autoral que a cineasta tem evidenciado desde então. Um cinema metafísico, de espaços e objetos, onde a presença e a ausência coexistem no mesmo plano.
Na última cena de MS Slavic 7, Audrey dormita na cama de hotel, rodeada pelas cartas da sua bisavó. Paira um certo tom melancólico sobre a imagem, como se a identidade de Zofia estivesse fragmentada por cada um daqueles pedaços de papel. O tato repousa, após infrutíferas tentativas de encontrar uma conexão que fosse além das palavras escritas. Talvez oniricamente seja possível ir um pouco mais longe, juntando as peças das memórias dos seus antepassados e materializando-as na sua própria individualidade.

Bruno Victorino
Cinéfilo e colaborador do site Comunidade Cultura e Arte