Tutto è marcio. La pietra è come tabacco.
Don’t Look Now (Aquele Inverno em Veneza, 1973) de Nicolas Roeg
Have you ever seen a portal?
Donnie Darko (2001) de Richard Kelly
Na pequena soirée que inicia o Mélo (1986) de Alain Resnais, depois de jantar, sob a lindíssima abóbada de madeira pintada [em 1993 faria em Smoking/No Smoking (Fumar/Não Fumar, 1993) um universo com falésias, jardins, campos de golfe em madeira e dois actores, nessa parelha de filmes que torna os raros espectadores as pessoas mais sortudas do mundo], Marcel (André Dussollier) conta a pedido do seu amigo de conservatório e da esposa deste (Pierre Arditi e Sabine Azéma) uma história a exemplo sobre um desses pequenos furtos, “de poesia e de juventude”, de que foi alvo nas suas paixões:
“Querem saber a chave principal dessa história? A decisiva? (…) Eu ia tocar nessa noite. À tarde fizemos um passeio de carro. Ao voltar ao fim do dia, com aquela luz incrível, diante daquela baía indescritível, virei-me para Helene e disse ‘Esta noite, vou tocar a 3ª Sonata de Bach para ti. Para ti sozinha. Abres a tua alma à minha? Dou-te a minha se puder, se Deus me visitar’. Helene mal tocou nos meus dedos mas corou… soberbamente” – e a seguir, já no descrito concerto, enquanto a câmara de Resnais, invisível, se move tão lentamente para Marcel, vemos, como se estivéssemos lá, a sala – “ Sabem como sou quando toco: os meus olhos estão abertos mas não vejo. (…) Ia começar a 3ª de Bach, já tinha afinado, tinha o arco pronto quando… Como? Porquê?… o meu olhar foi de novo para aquele camarote esquerdo. Um homem tinha entrado. Observei-o: baixo, moreno, bastante bonito. Encostou-se ao corrimão, tinha uma expressão tensa, sensual. Olhava fixamente para um ponto na plateia que só podia ser o lugar de Helene, ou o lugar ao lado dela. (…) [N]uma manobra imperceptível coloquei Helene no meu campo visual. Que momento estranho! Finalmente a tinha. Eu estava no palco, sozinho, com o meu violino, com todos os olhos sobre mim, a dois passos daquela mulher, cara a cara com ela e segurei-a com o olhar, mil vezes melhor do que no mais extraordinário esconderijo. Ela esperou pelas notas de abertura, e agora virava a cabeça para a sua direita, para a minha esquerda, para aquele camarote, lentamente, descansando o olhar ao de leve sobre o ombro… Finalmente aconteceu algo na cara, uma ligeira contração que eu conhecia bem, um pequeno beicinho cínico. Consigo ver tudo: a graça e a audácia do seu maneirismo. O movimento da cabeça parou, e o olhar dela e o olhar do homem tocaram-se à minha frente.”
Sabine, que não tira os olhos de Marcel enquanto este fala, (“Estava a tentar imaginar o sentimento das mulheres que estiveram apaixonadas por ti.”) abraça mais tarde o marido, trocando brincadeiras carinhosas antes de se irem deitar: “O meu Pierrot tem lindos cabelos!” – e aperta-os – “Quero fazer-te mal! Mal, mal, mal! Magoar a sério, com força!”
Anos depois a mesma Sabine Azéma, maravilhosa actriz, com Andrzej Żuławski – Cosmos (2015), o filme final do realizador, baseado no romance homónimo de Witold Gombrowicz (estreia em Novembro de 2015 no Centro Cultural de Belém e algum tempo depois nas salas; iria odiar o filme e vê-lo três vezes). Depois da morte de Żuławski fiquei, por assim dizer, com duas coisas que nunca consegui esquecer: os olhos da Sophie Marceau em frente contra aquele canto de parede no La fidèlite (A Fidelidade, 2000) (do outro lado os seus pais que aparecem, flutuantes, vestidos com cartolas e colarinhos) e o seu Witold, Gombrowicz claro, que perante uma visão de Lena (interpretada por Victoria Guerra), filha da senhoria, nua no quarto de um primeiro andar na Quinta do Relógio em Sintra (ou na Villa Roma – tentei inquirir os proprietários para este texto, mas n’importe quoi) bate violentamente com um martelo na porta do quarto dela, para furar, para entrar [e lembramo-nos do papel de parede esfolado do apartamento de Isabelle Adjani em Possession (Posessão, 1981), ela apertada contra ele, o amante Heinrich, mestre de artes marciais, apertado contra ela]. No dia seguinte, questionado (“explique porquoi je cognais”), Witold justifica-se: “pour pénètre”.
Não será exagerado dizer que foi para mim como uma pequena revelação, um antes e depois, uma dessas pequenas confidências que o cinema faz várias vezes na vida de cada um, que veio reestruturar – ou confirmar! – a minha cinefilia, o cinema à sua volta. Sentado naquela sessão de homenagem a Żuławski, com a actriz algures na sala comigo, nesse caricato prolongamento do “terceiro final” do filme, e da obra do realizador (termina com imagens das filmagens, bastidores, equipa – entre carris e projectores vozes portuguesas – para o infinito; “não há mais nada para ver”, diz-nos Léon, o patriarca).
O que quis dizer Witold? Quando Manoel de Oliveira adaptou La Princesse de Clèves (A Carta, 1999) filmou Pedro Abrunhosa e Chiara Mastroianni em sublimes silêncios entre estátuas nos Jardins do Palácio de Cristal. Na adaptação de Żuławski do mesmo livro, nesse mesmo ano, com o mesmo produtor (La fidélité), Marceau abriga-se enquanto Guillaume Canet dispara contra assassinos contratados.
Quando Witold bate na porta do quarto, a esmurra com um martelo por Lena estar nua dentro dele – que poder tem esta visão que se nos apresenta insolvável? Perante a qual não há escolha senão o impelido movimento contra, em frente, a raspar, de cutelo, martelo ou câmara na mão, para a morte “e bate, ou parte, se for de vidro”.
Atentemos na igreja de Roeg em Don’t Look Now, falso edificante, não começasse a acção presente no assombroso plano que serve de capa a este texto, onde a cor do berbequim nos mostra a jovem Christine, e o muro musguento o pântano onde ela se afoga – um filme dessa direcção em frente, para dentro, a furar, que aqui não pulsa, com a vitalidade bélica ou do sexo, mas que é final, não prenha, axiomática no seu processo – não existe outra hipótese, como vemos nas decisivas embrenhadas de Donald Sutherland, marcado para a morte, pelos becos da cidade, para mais dentro do hotel onde ouve sem se inteirar os gemidos da séance com a sua mulher – quando está para ir ter com ela ao Reino Unido ela é vista, de vestido e véu, numa gôndola para Veneza.
Em Żuławski, a seguir ao episódio do martelo, dessa visão das visões, Witold agarra no gato da família e parte-lhe o pescoço, pendurando-o no centro do quintal em evidência. Depois do pardal, das manchas no tecto, do ângulo dos ancinhos, o gato morto. Precisamente por haver um pardal, por haver manchas no tecto, por haver um lábio deformado na boca da empregada, por Victoria estar nua no quarto, partir o pescoço ao gato era a única coisa a fazer: para penetrar.
Cronenberg teria algo a dizer. O “I just want to eat you up” de Ronnie para Seth em The Fly (A Mosca, 1986) – “É por isso que as senhoras velhotas apertam as bochechas dos bebés. É a carne” – “a carne incontrolável”, acrescentaria Videodrome (Experiência Alucinante, 1983), informado pela cena de amor onde se espetam alfinetes nas orelhas um do outro. Mais tarde, um Jeff Goldblum fala na “penetração para lá do véu da carne”…
Porém, não se trata meramente de um problema da carne, para usar uma expressão cronenbergiana. Tudo é macio. A pedra é como tabaco. Sion Sono, um autor cujos filmes trabalham sobre o desejo de esticar a mão para uma cascata ensurdecedora de disrupção e entrega, como tocar na parede em movimento fora de um elevador sem porta [ou saltar para a frente de um comboio – Jisatsu sâkuru (Suicide Club, 2001)] diz-nos, em Koi no tsumi (Guilty of Romance, 2011), que “cada palavra tem carne”.
E quanto à Visão? Julio Cortázar fala-nos dela: “Por outro lado ouvi a Lila a chamar-me e fui a correr até ao alfeneiro e vi que envergava o seu vestido às bolas alaranjadas, que era o meu preferido, e o joelho ligado. (…) [C]omecei a folhear o livro, que era composto por histórias com imagens, e fiquei assombrado ao constatar que a Lila também tinha uma bela pena de pavão no livro, e que nunca me tinha dito nada. O tio Carlos estava a chamar-me para que tapasse outros buracos, mas eu fiquei a olhar para a pena que não podia ser a do Hugo mas que era tão idêntica que parecia ser do mesmo pavão, verde com o olho violeta e azul, e as pequenas manchas de ouro.” (“Os Venenos” – Final do Jogo).
É de Cortázar também o conto em que se basearia Antonioni para o argumento de Blowup (Blow-Up – História de um Fotógrafo – 1966) (o olhar, a roupa da desconhecida a dançar nervosamente Herbie Hancock com um cigarro nos dedos, as costas), uma foto que se amplia, para a qual se entra mais. Duas fotografias que se olham, em mise-en-scène, uma para a outra.
Um vestido, uma perna – em Cosmos, Gombrowicz fala-nos no prazer secreto da face interior de um joelho. Um cotovelo dobrado a segurar uma nuca. Um braço, um ombro, mas também uma carta, uma palavra! Em La prisonnière (1968), de Henri-Georges Clouzot, uma varanda, num postal para a amiga (“é aqui”, uma seta aponta para o quarto deles). Uma foto do amante. No verso: “Amamo-nos. É maravilhoso. Contar-te-ei tudo”.
Um laço, um vestido. Na solarística tarkovskiana é o segundo vestido que Hari corta, depois de voltar da morte, o segundo xaile deixado na cadeira, ao lado do seu gémeo, idêntico ao seu primeiro, deixado pela sua primeira, uma impossibilidade, um final-do-mundo que dói – “Dor!”, grita Marceau no final de Mes nuits sont plus belles que vos jours (1989), “I missed you so much”, diz Matty no The Blackout (Sentiste a Minha Falta?, 1997) de Abel Ferrara, quando chega ao estúdio a sósia da ex-namorada (Annie 2, Hari II). A visão como a experiência – confirmação – irreconciliável do outro; a penetrar, claro está, uma experiência de morte, a luz resplandecente, em epifania. Em Song to Song (Música a Música, 2017), Terrence Malick filma Ryan Gosling e Lykke Li numa cover de Bob Marley & The Wailers (que curto-circuito!): “Just because you think that you’re so smart / Going around breaking lover’s hearts / Now you’re defeated / By your own weapon…”
Lábios, uma boca. Cosmos é sobre duas bocas, dois pares de lábios: a de Lena, “pequena” imperfeita na sua perfeição, e a de Catherette (Katassia no livro), a empregada (“Vais-te rir, mas a mim é mais a Catherette que me ilumina”, diz a Witold o seu melhor amigo) com uma deformidade na boca, uma fissura, que levanta, encaracolada, parte do lábio superior. Estas duas bocas, o jogo entre elas, a relação de boca com boca, a boca de Catherette, algures na proximidade da cozinha – “perguntava-me onde, em que direcção, e a que distância estaria da pequena boca de Lena” – “boca escorregando de boca, lábios mais como lábios porque eram menos como lábios…” (Gombrowicz).
Junto à costa, Magnificat, de Álvaro de Campos – declama-o Lena:
“Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto, (le soleil brille au zénith)
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio, (le cœur bat loin de lui-même)
Impossível de escutar. (impossible à écouter)”
À luz clara das coisas: os corpos e os objectos, a evidência. O jovem Bi Gan diz-nos em Diqiu zuihou de yewan (Long Day’s Journey into Night, 2018) “Era o solstício de verão (…) hoje, o sol do meio dia está no seu zénite. Depois disso, os dias ficaram mais curtos, e as noites mais compridas.”
Um verdadeiro momento imprevisto, incalculado, aconteceu-me na preparação deste texto, enquanto revia alguns filmes. Em Peeping Tom (A Vítima do Medo, 1960) de Michael Powell, do qual me lembrava muito pouco, Mark, o perturbado focus puller com um biscate numa drogaria para a feitura de postais eróticos, está a tirar uns retratos. Além de Milly, há uma rapariga nova, e eis que:
Como é maravilhoso o cinema, as suas rimas e os seus vales. Esta visão da segunda fenda, esta segunda visão da fenda, enquanto pensava aquele primeiro sulco, sobreposto, suplantado, ao piano de Brian Easdale, epifânico, quase a dar ares à chegada de Madeleine em Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958). Claro está, Mark aproxima-se, câmara ao olho – “It’s my first time too” em frente, a direito.
Mais tarde, confrontado com os seus vícios e crimes, vai jogar-se para a tela, em desespero – este plano faz-me logo lembrar (será das cores?) um óptimo, curtíssimo momento em The Evil Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1981), com o Bruce Campbell na cave que está a ser inundada por sangue (sai das tomadas, cai nos filamentos das lâmpadas), liga-se o gramofone, liga-se o projector, e ele é apanhado like a deer in the headlights, às cegas. The Evil Dead é também, claro, o filme onde Frank o homem-coelho abre um portal na sala de cinema em Donnie Darko, precisamente “dentro” da cena de abertura incrível com o carro a deslizar. O jovem Donnie (Jake Gyllenhaal), depois de perceber como é que estas coisas funcionam, vai entrar com a cara dentro de um destes cilindros, voragem – o shot seguinte mostra-o de joelhos, abraçado ao ventre de Gretchen; Marcel, ainda no Mélo de Resnais, a concluir a história com que iniciei este texto, dirá: “E então aconteceu: mergulhei. É, exactamente: mergulhei. Afundei-me na música como se fosse no mar. Vocês sabem como é: o frescor da água, a sua densidade, o seu barulho, e a vossa memória flui com as bolhas. Eu já não existia, nem o violino, nem Bach; tudo se confundiu numa só matéria em fusão, deixando apenas a música.”
E assim se completa a minha constelação. Este texto é uma carta de amor, como acabaria por ser. Não as chamas ao largo de Orion do Rutger Hauer nem as fotografias de tanques do Kundera, mas já vi, enamorado, as flores de Stan Brakhage a dançar nas pálpebras de uma mulher. Já me deixei dormir no Apocalypse Now (1979), com o Marlon Brando a olhar para a sala no escuro e acordei no ANIM, o Manhã Submersa (1980) do Lauro António a dar na Moviola. Em criança, olhava fixamente para um ponto sem piscar os olhos até ver tudo escuro [mas imaginava – lembro-me de uma grande cópia do Die unendliche Geschichte (A História Interminável, 1984), halls de longos espelhos e tomos]. Hoje, lavo sempre os olhos antes de entrar no cinema. No fim, há a resistência que nos oferece a tela.
Em Setembro de 2017, a Cinemateca dedicou um ciclo à carreira de Luís Miguel Cintra. Parte deste ciclo foi uma carta branca. Luís Miguel Cintra escolheu dez filmes para serem exibidos. Um destes dez foi The Birds (Os Pássaros, 1963) de Alfred Hitchcock. Entre muitas outras coisas, quando a Jessica Tandy, a mãe, descobre o homem de olhos furados (furar os olhos: essa alternativa a uma visão tortuosa) em perfeito silêncio, como assusta! É uma escolha sublime. Na altura do filme em que os pássaros estão a atacar a vila, na cena da bomba de gasolina, quando esta explode numa bola de fogo, um indivíduo à minha frente jogou as mãos à cabeça, em desespero. As duas mãos, a agarrar a cabeça. Cada nervo em mim acendeu-se, ouvia gritos não sei de onde, do filme. O meu cérebro só pensava naquelas palavras do jornalista do Hindenburg, do balão. Tudo isto durou segundos. Foi a coisa mais extraordinária que já vi. E depois acabou, eu estava na sala, e a Tippi Hedren entrou no restaurante.
Rafael Fonseca
Artista visual, licenciado em Ciências da Comunicação, trabalha actualmente em Desenvolvimento de Projectos para Cinema e Televisão.