Caderneta de Cromos é um questionário breve, mais ou menos imbecil, sobre o mundo do cinema, em geral, e sobre o mundo em toda a sua inteireza, em particular. O feliz contemplado desta edição é o vídeo-ensaísta Luís Azevedo é o mais prolífico vídeo-ensaísta nacional, produzindo dos mais imaginativos nacos de crítica cinematográfica – o seu alvo favorito parece ser Wes Anderson – com imagens e sons sensivelmente desde 2016, ano em que começou a trabalhar como freelancer. Colabora para inúmeras publicações de relevo na área da exibição e crítica de cinema, tais como MUBI, Little White Lies e Fandor. A qualidade do seu trabalho é reconhecida por alguns dos principais fazedores de ensaios audiovisuais à face da Terra, começando pelo “rei dos reis” Kevin B. Lee.
1. Desde já, precisamos de saber qual o cognome que preferes: “Luís Azevedo, o Cristiano Ronaldo dos ensaios audiovisuais” ou “Luís Azevedo, o Mário Centeno dos ensaios audiovisuais”?
Não me cabe a mim aprovar ou escolher o meu epíteto, muito menos sugerir alternativas como o Leonardo Da Vinci dos ensaios audiovisuais, enfant terrible da crítica audiovisual, ou Doutor Vídeo Ensaio ou ::kogotudo.
2. Lembras-te daquela cena do Annie Hall (1977) em que a personagem encarnada por Allen chama Marshall McLuhan para desacreditar um fulano que fala sobre a sua teoria dos media? Ora bem, imagina que eu pegava agora no Wes Anderson pelo braço, ele aparecia no meio desta nossa conversa e dizia-te: “Você não sabe nada sobre o meu trabalho”. Tinhas cinco minutos para preparar uma boa resposta, que te salvasse a pele. Como seria a réplica?
Virava o feitiço contra o entrevistador e arrastava eu o Roland Barthes pelo braço para explicar ao Wes que o autor estava morto. Enquanto o Barthes o distraía o com as preparações fúnebres, eu apoderava-me do seu leitor de vinil portátil e passava uma música dos The Kinks enquanto os créditos rolavam. Caso o Barthes ainda estivesse a falar com o Joel Schumacher, não tinha outro remédio senão evitar olhar o Wes de frente e manter-me a ângulos irregulares até à sua inevitável desistência.
3. Um dos teus vídeos mais célebres versa sobre o fenómeno fisiológico das bufas. A pergunta que se impõe: para quando abordares um tema mais sério e actual, como tosse seca ou febres altas ao longo da história do cinema?
Torço o nariz à ideia de que algum tema possa exceder a seriedade do traque no cinema. Nessa mesma linha, recentemente fiz uma proposta muito séria a uma revista para abordar seriamente o papel do papel higiénico no cinema. Em inglês: The Role of the Paper Roll in Cinema. A proposta foi recusada porque outra revista tinha publicado recentemente um top 10 dos melhores usos de toalhitas na cultura popular.
4. E o acto de fazer a barba? Porque é que raramente este corre bem nos filmes, indo até ao fim, sem sobressaltos?
A minha formação na área de cinema é principalmente académica e, infelizmente, não estou familiarizado com os meandros da produção audiovisual. No entanto, no decorrer da minha pesquisa inicial para a supracitada ode ao papel higiénico, deparei-me com umas quantas histórias que podem iluminar esta questão. Cenas em casas de banho são tecnicamente muito complexas, pois trata-se de divisórias pequenas, repletas de ecos e superfícies reflectoras. Há um espaço de manobra reduzido para o realizador, o(s) actor(es), equipa de imagem, de som, de guarda-roupa, de catering, de efeitos especiais, de montagem… Há sempre uma perche a bater na cabeça, um anotador a derrubar uma luz, um electricista a queimar um fusível. No meio de um set caótico, os actores cortam-se. Como estes acidentes são inevitáveis, principalmente desde a expansão das equipas na transição do cinema mudo, surgiu a opção prática de incluir os cortes na estética do filme. Como sempre, a necessidade aguça o engenho.
5. “O cha cha não é mais ridículo que a vida ela mesma”. A frase pertence à personagem Nick Smith em Metropolitan (1990) de Whit Stillman. Mas não é esta a única frase deste filme que gostaria que comentasses. A outra que queríamos muito que comentasses – adaptando ao universo do cinema – pertence a Tom Townsend: “Não leio romances. Prefiro boa crítica literária. Dessa forma obtenho as ideias dos romancistas tal como o pensamento dos críticos.”
Concordo plenamente. A popularidade dos canais de YouTube de gamers mostra que o dizer já foi aplicado aos videojogos. Está na hora de adaptar essa doutrina à crítica gastronómica.
6. Tens de escolher entre três “chefes” muito especiais para cozinharem o teu prato favorito (que, já agora, gostávamos de saber qual é): Andrei Tarkovsky, Wes Anderson e Orson Welles. Quem é que escolhias?
Tal como a sétima arte, também a confecção de rojões à moda do minho é um trabalho de equipa. Depois de ser assegurado de que tinha final cut, o Orson começou a descascar batatas. O Tarkovsky usou as cascas para fazer vodka. O Wes Anderson bebeu a vodka e prometeu fazer um filme de terror com shaky cam, enquanto o Tarkovsky insistia que o cheiro das tripas era radioactivo.
7. Como é que te tens preparado física e intelectualmente para encarar os vários Avatars que se avizinham?
Como preparação para a chegada dos posters do Avatar tenho grafitado “descoloniza” em vários locais públicos.
8. Diz o nome de dois ou três realizadores que adoras e sobre os quais não fizeste ainda um único vídeo-ensaio e, na realidade, não sabes se vais fazer.
Pedro Costa, Werner Herzog e Rob Reiner. Existe uma possibilidade de ter feito um vídeo ensaio sobre um destes realizadores mas entretanto ter-me esquecido.
9. Uma pergunta de actualidade: Abel Ferrara, Pedro Costa e Paul Schrader. Qual destes tem pinta de não estar a usar máscara presentemente, nestes tempos de pandemia?
Acredito que os três usem máscara e que todas as máscaras sejam artesanais, feitas com muito pouco dinheiro e sem apoios.
10. Ainda sobre um tema de actualidade relacionada com a pandemia, tu que és um tipo do online, da crítica virtual e dos ensaios digitais, gostava de te perguntar em tom frio e implacável, estilo Miguel Sousa Tavares: não tens saudades nenhumas de ver cinema em sala, pois não?
Recentemente vi os últimos do Armando Iannuci e Spike Lee, os primeiros 20 minutos do Gladiator (Gladiador, 2000) e finalmente completei a ouevre do Judd Apatow.
Ainda não me sinto à vontade para me fechar num espaço escuro com estranhos, mas já começo a sentir a falta do chão que agarra à sola do sapato e as pipocas salgadas do Pingo Doce já não enganam. Mas o que falta mesmo ao cinema de sofá e pijama é o investimento, a vulnerabilidade de estar com a cabeça longe de tudo menos das imagens e dos sons. Um dos últimos filmes que adorei ver em sala foi o Vitalina Varela (2019). Hoje parece-me que se me fotografassem a ver o filme em casa poderiam usar a imagem resultante n’O Novo Manual de Tortura Ocidental.