Vous cherchez trop à comprendre ce qui se passe, cher Monsieur. C’est un grave défaut.
Jean Cocteau, Orphée (Orfeu, 1950)
Verdadeiro canto de sereia que adquire diversas vozes, misterioso, subreptício, a tremelicar por dentro e por fora, fundo, profundo e sem limites, aí está a glória do sentido acrescentado: o 6.º! Águia de múltiplas cabeças do poeta-cineasta, Jean Cocteau, L’aigle à deux têtes (A Águia de Duas Cabeças, 1948), aqui num jogo de palavras e sentidos. Drama romântico de intriga barroca, adaptado duma peça de teatro de Cocteau, transporta uma forte simbólica, de onde sai uma rainha viúva e um anarquista (que é a cópia do rei defunto). Uma história de amor e conflito ideológico, e as imponderáveis razões do coração pela mão e toque do cineasta: intemporalidade, silêncios e olhares, ambiguidades e uma profunda teatralidade, reagem num contacto extra real que se lança num derradeiro romantismo tocante.
Pela neuro-ciência passámos a ter a intuição como uma forma de inteligência, ligação privilegiada às coisas em primeira mão; impulso sedutor que aponta, sem querer, os sensores aos alvos. Uma captação supra racional com misteriosos caminhos de acesso. O cinema parece ser um maravilhoso aglutinador de intuições, vozes internas que saltam, percepções imprevistas que acontecem por vias travessas de uma ferramenta, ainda a localizar no corpo – totalmente feminino, masculino, multi-sexo.
Perscrutantes alguns filmes-lanterna, vêem-se para além de ‘’ver’’ e passam a estar num espaço de inescrutável alerta e captação. Abrem-se a um campo de percepção determinada, ou indeterminada (interessa ainda mais), através dum canal de acesso cheio de latências, que se pode encontrar na dimensão interna de construção, conceptualização ou recepção (é importante quem os assimila e interpreta).
Cocteau, na sua elevação poética e transformadora, permite pressentir e descobrir um universo em cadeia de sentidos a acender luzinhas num campo poético de sombras e luz. Deste mundo desracionalizado que pode apontar ao supra racional, ergue-se Le testament d’Orphée (O Testamento de Orfeu, 1960). Maravilhoso mundo de vida e de morte que o cineasta, poeta agraciado, nos faz atravessar sem nada querer provar. Entra no filme, qual Orfeu em trânsito, ligando-nos a uma rede de sinais a seguir, é o seu derradeiro testamento e um projectivo mundo, submundo, de possibilidades.
“O privilégio do cinematógrafo é permitir a um grande número de pessoas sonhar juntas o mesmo sonho, e ainda, mostrar com o rigor do realismo, os fantasmas da irrealidade, resumindo, é um admirável veículo de poesia” (Cocteau).
Broken Blossoms or the Yellow Man and the Girl, (O Lírio Quebrado, 1919), filme-conto, melodrama crepuscular que anuncia amor e amados, amantes, violência e lágrimas, é um verdadeiro jardim sentimental de suplícios (Mitry). O filme parece prestar-se a uma poderosa permeabilidade sensitiva, em que o espectador cambaleante acompanha gestos, olhares, esgares, passos, e vai intuindo cada coisa, em cada plano, e sub-plano, como lugar de drama, lugar de sensação e emoção. A força dramática trabalhada por Griffith, com rigorosa planificação, movimenta um mundo que se reflecte nas personagens, nos objectos, na atmosfera. A figura de Mary Burrows, interpretada pela sublime Lillian Gish, uma menina-mulher que se protege nos cantos do plano, em fuga do pai, terrível figuração da violência que atinge o espectador que também se esconde, o medo é um gigante que persegue a vítima e enche o plano. Num derradeiro momento, o “homem amarelo”, apaixonado de Mary, corre para a salvar, e faz-nos acelerar, correr com ele, pressentir a fatalidade. Elabora-se uma ligação entre o espectador-testemunha e as personagens em acção, fechadas nos planos, absorvidas no enquadramento, em absoluta sugestividade.
Podemos pensar nos luminosos e saturados (de cor e de drama) melodramas de Douglas Sirk, na sua configuração estética e dramática, a estender a mão a extraordinários níveis perceptivos que culminam com a lágrima no olho. Não acontece unicamente pelas razões narrativas, imediatas, mas pelo trabalho da mise en scène e toda a máquina formal, que acaba por desenvolver afectividades e permeabilizar emoções. E as inevitáveis e maravilhosas heroínas, que dão corpo e voz a tudo isto, possuídas pela dor e pelo amor; a filha Sarah Jane (Susan Kohner) a renegar a mãe, Annie Johnson (Juanita Moore), em Imitation of Life (Imitação da vida, 1959), estrangula-nos, o abraço, o balbuciar duma palavra e o aperto na garganta é infalível, impossível esquecer: as sensações progridem num corpo sinalizador e cúmplice.
Num pólo mais fantasmático, há Georges Franju, cineasta “maldito”, e Les yeux sans visage (Os Olhos Sem Rosto, 1960), que interessa pelo alto grau de sugestividade que desperta o realismo trágico do seu universo de horror e poesia. A figura da protagonista e o ambiente a desdobrar-se em desfasamento entre real e fantástico, provoca uma verdadeira expansão imaginária. A dimensão fantástica e poética aumenta o seu poder transmissor e parece colocar o espectador em antecipação; árvores despidas que desfilam no plano, gaiolas e cães, a repulsa filmada pelo retrovisor, o horror cirúrgico, e a mulher-menina de máscara de cera (fabulosa Édith Scob), deambulante, frágil e espectral pela casa e pelo filme.
Noutro raio perceptivo, há Tarkovski com o inevitável Stalker (1974), e a abstracção de uma parábola que penetra numa zona mental e na Zona interdita de um mundo que se explora e se interroga. Escritor, Professor e Stalker, num périplo pela zona proibida para chegar ao quarto secreto dos desejos, desenvolvem um amplo trânsito de interioridades e dúvidas. A viagem é igualmente sensorial e a experiência da lentidão que transporta o filme, enigmático e estilizado, amplia o seu carácter penetrante. E depois há a frágil e silenciosa filha de Stalker, transportada nos ombros do pai a encontrar o céu, e o seu poder de mover objectos; como esquecer a sua imagem (?) – tantas imagens a planar num cinema que medita, aí está a captação supra racional sob clima hipnótico.
Filmes, peças raras, parecem ser tocados sensitivamente, irradiando do centro para a periferia, desmultiplicando-se em níveis, ondas magnéticas fora da órbita narrativa de 1.º grau. O incandescente, Sunrise, a Song of Two Humans (Aurora, 1929), o mais belo dos belos, reserva uma força intrínseca que arrasa, desatingindo a racionalidade para encontrar as zonas duais que ocupam a narrativa, distendendo-se mais e mais. Entra-se noutras zonas de sombra e luz pela acção do “potencial emocionante”, de Epstein, que vem da definição da fotogenia própria do cinema, tamanha é a sua plasticidade; o “mergulho” no filme faz-se por obscuros desejos e uma força incandescente.
On Dangerous Ground (Cega Paixão 1951), de Nicholas Ray, é outra raridade que entra na mesma zona radiante que provoca uma cadeia subtil de sensações. Um filme em dois tempos, que se distinguem espacialmente e na lógica dramática. No primeiro tempo temos o polícia Jim Wilson, interpretado por Robert Ryan, personagem irascível e desencantada, grande, a ocupar espaço e a mover-se pela típica cidade nocturna dos universos noirs. Mas ele é mesmo mau, com as suas técnicas abusivas, e muito pouco católicas, para lidar com os criminosos. Logo será transferido para o campo, numa nova missão com vista para um Colorado coberto de neve. Será nesta paisagem que vai emergir Ida Lupino (irradiante), no papel de Mary Malden, mulher solitária e cega que vai cruzar-se com o polícia mau. O filme lança-se num décor inesperado que se distende em brancura e inquietação, sob o olhar de Ray, a juntar duas solidões, dois contrastes, dois mundos.
O segredo está na expressão imaginária de uma casa plantada numa paisagem branca, que se torna ponto de atracção e desejo, refúgio e perigo. Um belo alvo sedutor e contentor de dualidades, a casa como um casulo isolado que se descobre no seguimento da caça ao assassino pelo polícia e o pai da vítima.
É a voz de Mary que se ouve antes de a vermos, são as costas de Mary que se vêem antes do rosto e, como um milagre, Jim fica sereno (demasiado, é verdade, em contraste com a sua natureza violenta inicial), perante a presença desta mulher atípica. Subitamente aparecida por detrás de uma porta, a mover-se no interior de uma casa submersa na escuridão, com troncos de árvores na sala, espanta espíritos, plantas a pender do tecto, quadros bucólicos na parede… É o irmão dela, Danny, o perseguido, o adolescente perturbado com um mundo que não lhe sorri e tem de matar por isso. Será Danny que vai provocar o encontro entre a irmã e o polícia, vai acabar por a salvar e condenar-se a si próprio.
Filme tocado pela vidência de Rimbaud colocando-se além da aparência das coisas, unindo sentidos e espírito. Um filme raro que se projecta numa comunicação interna que circula entre as personagens que se entregam a uma força pressentida, inexorável. Abaixo do nível da consciência estão estes heróis que se cruzam para se salvar num campo magnético de imagens e sensações.