Puisqu’après tant d’efforts ma résistance est vaine, je me livre en aveugle au destin qui m’entraîne.
Racine, Andromaque
Cités de la plaine (2000), “um filme fabricado”, como reza o genérico, por Robert Kramer, Richard Copans e Keja Ho Kramer, entre outros aliados, como Barre Phillips, debruça-se sobre o percurso trágico de Ben, imigrante argelino no Norte de França, um Orestes (são múltiplas as ressonâncias mitológicas, incluindo extractos do Canto XI da Odisseia) do fim do século XX. Filme póstumo, a sua fabricação foi finalizada, após a morte, súbita e inesperada, de Kramer durante a montagem, em 1999, pelo seu produtor, Copans, e pela filha do realizador, Keja Ho Kramer. O verbo “fabricar” — e a dimensão comunitária que esse gesto assume no genérico — desde logo aponta para uma concepção materialista do cinema e dos processos de produção cinematográfica e inscreve Cités de la plaine no prolongamento de uma das tensões estruturantes da obra de Kramer, a tensão entre os pólos “colectivo” (a colectividade e, mais concretamente, o Newsreel Group, co-fundado pelo cineasta em Nova Iorque, em 1968, como modo de produção cinematográfica, assim como a vocação colectiva e relacional do seu cinema) e “subjectivo” (a afirmação de uma política da corporeidade, dos afectos, da intimidade e da sensorialidade). Ainda que atravessado por essa tensão, Cités de la plaine é um dos filmes em que mais incisivamente se afirmam as marcas “autorais” de Kramer. Filme denso e de complexa estrutura narrativa, entrelaçando espaços heterogéneos, camadas temporais múltiplas e diferentes sistemas visuais, Cités de la plaine mereceria que sobre ele fosse escrita uma inteira monografia. Este artigo debruça-se brevemente sobre os processos e sistemas de visão que o atravessam, procurando, paralelamente, inscrevê-lo na obra de Kramer.
Ao longo dos últimos anos, a obra de Kramer tem vindo a ser alvo de um crescente interesse. Cineasta quase desconhecido no seu país natal, os EUA, é, sobretudo, na América Latina — em particular, na Argentina — e na Europa — especialmente, em Portugal e em França — que o seu trabalho tem vindo a ser exibido e problematizado. Para tal, muito contribuíram, em Portugal, iniciativas como o Festival Doc’s Kingdom, assim baptizado em homenagem ao filme homónimo de Kramer de 1988, filmado em Lisboa, assim como, mais recentemente, em França, a retrospectiva que lhe foi dedicada pela Cinemateca Francesa no mês de Novembro. A semi-invisibilidade da filmografia de Kramer, filmografia que se estende ao longo de mais de três décadas, deve-se, antes de mais, às singulares declinações que nela assumem a tensão entre engajamento político e inventividade estética.
Na nota de intenções de Cités de la plaine, filme relativamente invisível, o cineasta descreve a sua praxis cinematográfica como um “militantismo modesto”[1], expressão examinada por Pierre-Damien Huyghe em Le Cinéma : avant après[2]. Segundo Kramer, o seu cinema não se “contenta com oferecer prazer”, mas “convida as pessoas a pensar”[3]. Esse convite à reflexão crítica, que atravessa o cinema de Kramer desde FALN (Fuerzas Armadas de Liberación Nacional) (1965), opera prima dedicada à luta de libertação da Venezuela co-realizada com Peter Gessner em 1965, até Cités de la plaine, não apela unicamente à constatação de um estado de coisas, princípio estrutural do cinema militante, relevando das leituras dominantes da concepção estética marxista, e à sua possível transformação, nem tão-pouco reclama — ou concretiza — estritamente uma formalização poética do “real”. Pelo contrário, o cinema de Kramer reivindica um pensamento global dos processos perceptivos, cognitivos e representativos, processos que são aproximados sem perder de vista a sua inscrição no sistema capitalista — e nos regimes visuais, epistémicos e escópicos de tal sistema — e segundo uma perspectiva abertamente subjectiva e auto-referencial.
Os filmes de Kramer rejeitam as formas disciplinadas do cinema militante, recusando também, no mesmo movimento, os valores que lhe são tradicionalmente associados, valores tais como os de pureza, objectividade e transparência, aspecto que oferece uma possível leitura da indeterminação — e da interpenetração — entre os sistemas de representação do documentário e da ficção que é própria à praxis cinematográfica do cineasta. Militantismo “modesto” em função dos parcos modos de produção; militantismo impuro e maculado em virtude da rejeição de uma racionalidade rígida e binária. Esta perspectiva abre novas pistas interpretativas sobre a obra de Kramer, apresentando-a como sendo também uma prática de investigação — e de desestruturação — dos regimes visuais, representativos e epistémicos hegemónicos. Cités de la plaine emerge, por conseguinte, como um filme sobre a história política e industrial, o presente pós-fordista e a reconfiguração urbanística de Roubaix e de Lille nos anos 90 (o filme foi produzido durante uma residência do cineasta no Fresnoy) sobre o pano de fundo das trajectórias da imigração magrebina em França e dos espectros do colonialismo francês, mas também como uma obra sobre (e além dos) os regimes de visão, representação e conhecimento dominantes — e apontando para a imbricação entre estas duas vertentes. A cegueira de Ben, a privação da vista, esse não-ver, é, paradoxalmente, uma condição da visão. Contrastando com a hiper-visualidade tecnológica “cega” dos regimes visuais modernos e contemporâneos (e dos dispositivos visuais de vigilância introduzidos no actual contexto pandémico), examinados magistralmente por Harun Farocki, o não-ver — ou o ver menos — é, no filme, um ver mais. Noutras palavras, Ben acede à visão porque enceguece. A personagem vê para dentro, vê lucidamente o passado, rememorado através dos eikons mnemónicos e de um stream of consciousness, e vê, qual Tirésias, para fora, para além da percepção natural, da vida e da morte, vê em trânsito e em devir, num modelo que apela à ontologia e à fenomenologia do cinema e à sua capacidade para restaurar as experiências do ritual e do sagrado, suprimidas pela racionalidade moderna.
Se Ben vê, para dentro e para fora, além, também é visto. É visto por Coralie, a filha, Coralie criança espreitando através das portas do bar onde o pai joga às cartas e, mais tarde, consumada já, depois da viagem à Argélia, a separação conjugal, pela janela — e é importante remarcar a função dos umbrais e das estruturas limítrofes, separadores entre o dentro e o fora e os sistemas visuais correspondentes. Noutra sequência, Ben é encarado por um dos convivas, personagem faustiana, da sua festa de casamento, olhar estarrecedor, prefigurando o seu destino trágico, reactivado — tal como, de resto, o olhar de Coralie — na sequência ritualística final. As personagens atravessam as diferentes secções diegéticas do filme, aparecendo quer nas sequências de rememoração e reconstituição do passado, no espaço do ver para dentro, quer nas sequências oníricas ou ritualísticas, terreno do ver além. Os processos de construção, organização e circulação do olhar — olhar interno e externo de Ben, olhares sobre Ben — estruturam Cités de la plaine. Quando inscritos na obra de Kramer, esses processos parecem relevar do sistema narrativo e do modelo enunciativo do auto-retrato. A este título, importa recordar o complexo sistema narrativo de Route One USA (1989), filme em que Kramer delega a sua identidade a Paul McIsaac, o Doc, resultando, porém, o tecido diegético de um processo de intercâmbio — e coexistência — entre a perspectiva intra-discursiva da personagem e a do cineasta, bem como da posterior autonomização narrativa do actor-dispositivo de visão. Neste sentido, tal como apontado por determinados autores, como Eduardo Russo[4], o também intricado sistema narrativo de Cités de la plaine revestiria uma dimensão auto-retratista (Ben como alter ego de Kramer) e premonitória, anunciando o devir trágico do próprio cineasta, hipótese reforçada pela presença de Erika Kramer, mulher do realizador, nas sequências ritualísticas, interpretando a mãe de Ben.
A sequência do anzol, a meio do filme, é paradigmática dos processos de circulação do olhar, mostrando como estes são marcados pela dialéctica entre mesmidade e alteridade própria do auto-retrato, dialéctica de um sujeito que se enuncia como “outro”. Nessa cena à beira de um rio, evocação dos rios que habitam o cinema de Kramer — o Hudson, o Tejo, o Spree, galgados por personagens heureux… comme Ulysse[5], os versos de Joachim du Bellay citados no final de Dear Doc (1990) —, Ben, jovem, recém-chegado da Argélia, toca, pensativo, o arame de uma cana de pesca para logo observar o anzol na água. Rasgando o horizonte do tempo, o tacto parece activar uma memória sinestésica invertida ou proléptica já que é a um primeiro plano de Ben velho e cego que o plano subjectivo do anzol é interligado. Desafiando a causalidade e as regras de encadeamento narrativo, os planos iniciais são vinculados à perspectiva da personagem cega, a um ver para dentro, a uma rememoração do passado. Estabelece-se um raccord que assegura uma impossível continuidade óptica e espácio-temporal. Esta singular declinação do plano subjectivo indirecto livre, forma fílmica recorrente em Cités de la plaine, instaura uma implausível simetria entre o olhar de Ben jovem vidente e a visão interior de Ben idoso invidente (e notemos que não há qualquer semelhança física entre os actores não-profissionais que o interpretam em três fases diferentes da vida) e desencadeia um fluxo de imagens-tácteis que marcam a dissimetria entre a mirada da personagem e a perspectiva da câmara. Essa circulação simétrica e dissimétrica de perspectivas evidencia uma ecologia sígnica e representativa no interior de um sistema de interacções dinâmicas.
Esse princípio de interacção e reciprocidade rege também as sequências que, iniciando-se com fundidos encadeados, terminam com uma sobreposição de primeiros planos das personagens. Num ver mais e em camadas, sobrepõem-se os rostos de Coralie adulta, arquitecta urbanista e investigadora da “Matrix”, o traçado topológico que liga as cidades e os seus espaços circundantes e intersticiais, de Ben numa idade intermédia e da sua mulher, Amélie. A montagem vertical opõe uma lógica de simultaneidade ao princípio convencional de sucessão temporal, assegurando a circulação, a equivalência e o concomitante diferimento entre as perspectivas das personagens. Através de uma singular tessitura visual, essa forma fílmica abole a separação entre o campo e o fora de campo e interliga o passado e o presente, o sono e a vigília, a vida e a morte, numa temporalidade circular e cíclica contrária a toda categorização binária. Nas sequências de montagem vertical, filmadas em vídeo, confluem espaços, tempos e perspectivas subjectivas. Se, ao longo do filme, a cegueira de Ben é sistematicamente evocada através da montagem, o princípio de sobreposição palimpséstica da montagem vertical constitui outra forma de figuração do ver mais associado à privação da visão.
Kramer opta pelo vídeo 16/9, formato ligeiro, para filmar as sequências do quotidiano, as deambulações de Ben — tal como o Doc de Route One / USA, uma personagem de ficção imersa numa realidade “documental” — pelos espaços urbanos e rurbanizados, bem como as sequências de rememoração do passado e as cenas com Coralie adulta. Na nota de intenções do filme, o cineasta afirma que a imagem videográfica 16/9 “aumenta a duração indiferente, torna o mundo simultaneamente mais rugoso, quotidiano, ordinário e familiar, raramente sedutor em si mesmo”[6]. Acrescenta que esse formato permite dar “a impressão de que as imagens foram arrancadas à solidez do mundo com uma dificuldade considerável, que, de certa maneira, foram desenterradas ou roubadas”[7]. O presente das imagens remete para a historicidade dos dispositivos audiovisuais de representação, levantando, inevitavelmente, questões sobre a dimensão ideológica do crescente “naturalismo” da imagem videográfica. Se, a propósito da imagem videográfica, escreve Philippe Dubois que esta é mais uma “imagem-presença” do que uma “imagem-representação”[8], definindo-a como um “estado” e um “modo de pensamento”[9], em Cités de la plaine, o vídeo, com as suas cores degradadas e sombrias, menor nitidez e profundidade de campo, faz presente, no tempo e na duração, os estados dos corpos-imagens e uma malaise não de todo desconhecida que, violenta e estranhamente, se comunica ao espectador e penetra no seu espaço mental. Este ricochete amplia consideravelmente o princípio de interacção e reciprocidade de perspectivas, expandindo, de maneira sensível, a experiência de cegueira vidente de Ben. Tal como Ben, com Ben, vemos para dentro, crítica e distanciadamente, vemos num espaço háptico e sinestésico, visual, auditivo (sublinhemos a densidade sonora), táctil e olfactivo (em particular, na sequência em que a assistente social lhe oferece um bouquet de flores, bouquet que reaparece na sequência ritualística final). O vídeo — e as suas especificidades ontológicas e fenomenológicas — é um modo de pensamento que permite a Kramer aprofundar a sua investigação sobre os regimes visuais, representativos e epistémicos dominantes e opor-lhes diferentes modos de apreender, conhecer, apresentar e representar o mundo visível, modos que incluem a reconstituição sensível da experiência da cegueira, os raccords insustentáveis, a montagem vertical, as imagens hápticas e tácteis.
A investigação sobre os regimes visuais, representativos e epistémicos dominantes atravessa a obra de Kramer. A narrativa de Milestones (1975) é estruturada por cenas de privação sensorial. A título de exemplo, John, o oleiro cego, interpretado por John Douglas, um dos fundadores do Newsreel Group e co-realizador do filme, manufactura habilmente objectos de barro. As sequências de privação sensorial abundam também em Ice (1969), filme que marca a cisão de Kramer com o Newsreel Group e a viragem auto-referencial do seu cinema. Se Freud entrevê o motivo mitológico e literário do arrancamento dos olhos (Édipo, Sansão, o Conde de Gloucester) como um equivalente simbólico da castração[10], inscrevendo a sua lógica moral no campo da pulsão e do interdito, numa das sequências centrais de Ice, a polícia política norte-americana castra a personagem de Robert, rosto tapado, privado de visão, interpretada pelo próprio Kramer. A violência policial — ontem como hoje — ressalta as imbricações entre política, subjectividade e sexualidade que estruturam a filmografia de Kramer. Em Cités de la plaine, as imagens negras não-figurativas, planos subjectivos de Ben cego, constituem outro modo de expressão da privação sensorial. O vazio, como lugar da imagem, não corresponde aqui a uma clausura da visibilidade. Inversamente, ao suspender a lógica representativa, a imagem negra visa figurar a infigurável experiência da privação da visão, assegurando a passagem para o ver para dentro e para o ver além, ver além no espaço-tempo do ritual, imbricado no espaço-tempo ordinário.
É em 35 mm e em estúdio que Kramer filma o espaço-tempo do ritual, o espaço-tempo do ver além que intercala a narrativa. Nesse conjunto de sequências que correspondem a sonhos ou a visões interiores, Ben vê além da percepção natural, vê intensamente, num espaço-tempo — o espaço-tempo carregado e denso de uma descida ao Inferno, ao Hades, onde, tal como Ulisses, reencontra a mãe — em que se interligam os trânsitos da vida e da morte, do passado e do porvir. Revisitações da Odisseia, mas também de Dante e de Ezra Pound, tais sequências são habitadas por espectros da história colectiva e da experiência individual — o colonialismo francês e as incursões fundamentalistas islâmicas na Argélia nos anos 90, os trajectos da imigração magrebina em França; a mãe de Ben, assassinada pelas milícias fundamentalistas islâmicas, a mulher, a filha, as personas da juventude.
Nessas sequências, filmadas num décor arenoso, evocação do deserto, encontram-se todos os actores que interpretam Ben e a sua família. O jovem imigrante argelino, operário em fábricas e matadouros (notemos a importância da representação do trabalho no filme), o homem maduro, dono de uma frutaria, e o velho cego cruzam-se com Coralie, criança e adulta, Amélie e a mãe, entre outras personagens, ao longo de itinerários que afirmam uma temporalidade circular e cíclica, a par da dimensão ritualística do cinema. O cinema oscila entre a representação do ritual e a ritualização desde a sua invenção. Ler o cinema a partir do ritual implica pensar as imagens em movimento como pontos de fixação do “real” que visam transformá-lo e excedê-lo, fazendo visível o invisível, mais do que simplesmente reproduzi-lo. O elo entre a força de transfiguração do cinema, o ritual e o mito foi abordado por diversos cineastas na sua produção teórica. A descoberta da psicologia experimental e da etnologia, em especial de L’Âme primitive (1927), de Lucien Lévy-Bruhl[11], contribuiu para a formulação das teses de Eisenstein sobre o pensamento “pré-lógico” e o pathos[12]. Também Epstein reflectiu sobre a dimensão animista de “máquina de hipnose” do cinema[13]. Para Glauber Rocha, o cinema devia “pôr tudo em transe [sic]”[14]. Em Cités de la plaine, Kramer enlaça a sua filmografia a esta genealogia, sublinhando a capacidade do cinema para reestabelecer as experiências do ritual e do sagrado. Os diferentes modos de ver, perceber e conhecer a que o filme aponta, não só nas sequências ritualísticas, mas na sua totalidade, imbricam-se neste potencial do cinema para reencantar o mundo, transfigurar o “real” e representar estados alterados de consciência, em conexão com o ritual e o mito.
Neste segundo nível diegético, opera-se não só uma representação do ritual, dos trânsitos entre a vida e a morte, como também uma ritualização da própria representação cinematográfica. Neste sentido, se o filme faz visível o acto ritual, os seus procedimentos formais — a découpage e as angulações de câmara, formalizações da temporalidade cíclica e do princípio de passagem — e a força simbólica que lhes é inerente inscrevem a mise en scène no terreno da ritualização, arrancando-a aos modelos de racionalidade e de representação hegemónicos. Os elementos do décor e as acções performativas das personagens evocam um vasto e heterogéneo mosaico intertextual — referências, como já foi dito, à mitologia clássica e às suas reinterpretações ao longo da história da literatura, juntamente com evocações pictóricas, em particular das gravuras de Goya. Convocam também todo um imaginário pré-moderno e pré-capitalista, ligado, particularmente, às concepções mágicas do corpo, dos sentidos e da Natureza que prevaleciam na Idade Média.
Na última sequência ritualística, estas concepções condensam-se no olhar de uma iguana. Esse olhar, captado repetidamente em planos aproximados, opera um descentramento da perspectiva humana e aponta para uma ecologia entre as perspectivas humanas e as perspectivas não-humanas, animais e maquínicas. O olhar da iguana, espécie da América Central, da América do Norte e do Caribe, devém o ponto cego onde confluem as linhas narrativas, as perspectivas de todas as personagens e os dois principais sistemas de visão do filme: o ver para dentro e o ver além. No olhar deste animal que dispõe de uma excelente visão, permitindo-lhe distinguir os movimentos e as formas de objectos situados a longas distâncias, convergem os princípios formais e epistémicos do filme: o não-ver como vidência sobrenatural das coisas passadas, presentes e futuras, motivo ancestral, e o ver diferentemente como condição da lucidez e da visão, em contraposição ao campo visual potencialmente ilimitado contemporâneo[15].
Se Ghosts of Electricity, curta-metragem de 1997, propunha já uma reflexão sobre a crise do observador e a crise da visão no contexto histórico de mutação de paradigma tecnológico no final da década de 90, Cités de la plaine expande — e formaliza de modo eloquente — a investigação de Kramer sobre os regimes visuais, representativos e cognitivos dominantes e a possibilidade de cotejá-los com contra-regimes feitos de elementos sensoriais, afectivos, ritualísticos e amorosos, gesto eminentemente político que atravessa toda a obra do cineasta.
Raquel Schefer
Doutorada em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Universidade Sorbonne Nouvelle — Paris 3, é bolseira de pós-doutoramento da FCT no CEC/Universidade de Lisboa e na Universidade do Western Cape, realizadora e programadora.
[1] Kramer, Robert, brochura da edição DVD de Cités de la plaine. Paris: les films du paradoxe, 2007, tradução da autora.
[2] Huyghe, Pierre-Damien. Le Cinéma : avant après. Saint-Vincent-de-Mercuze: De l’incidence éditeur, 2012.
[3] Kramer, Robert, op. cit.
[4] Russo, Eduardo A., “Notas sobre ‘Cités de la plaine’, de Robert Kramer. La última mirada”. In Dossier especial “Robert Kramer” / ed. por Raquel Schefer, La Furia Umana, nº 35, Dezembro de 2018.
[5] Du Bellay, Joachim. Les Regrets suivis des Antiquités de Rome et du Songe. Paris: Poche, 2002.
[6] Kramer, Robert, op. cit.
[7] Ibid.
[8] Dubois, Philippe. La question vidéo. Entre cinéma et art contemporain. Crisnée: Yellow Now, 2011, p. 104.
[9] Id., p. 107.
[10] Freud, Sigmund. The Uncanny. Londres: Penguin, 2003.
[11] Lévy-Bruhl, Lucien. L’Âme primitive. Paris: PUF, 2000.
[12] Eisenstein, Sergueï. La Non-indifférente nature. Paris: Union générale d’éditions, 1976.
[13] Epstein, Jean. Écrits sur le cinéma. Seghers: Cinéma club, 1975, v. II.
[14] Deleuze, Gilles. Cinéma 2. L’Image-Temps. Paris: Minuit, 1985.
[15] Crary, Jonathan. 24/7. Londres e Nova Iorque: Verso, 2014.
Todas as traduções são da autora.