Em Unheard Melodies – Narrative Film Music — o incontornável clássico de Claudia Gorbman acerca das relações entre imagem e música no cinema —, logo no primeiro capítulo, é colocada uma interrogação crucial: “Não será qualquer música suficiente para acompanhar um determinado segmento de filme? De facto, a resposta é sim. Seja qual for a música que se aplique a um segmento de filme, ela produzirá um efeito sobre ele, tal como quaisquer duas palavras que se juntem produzirão um sentido diferente do que cada uma possuía separadamente pois o leitor/espectador automaticamente impõe um sentido a tais combinações”. E, após recordar o jogo dos “encontros fortuitos” da estética surrealista, exemplifica com a forma como Jean Cocteau sonorizou alguns dos seus filmes segundo o princípio da “sincronização acidental”: “pegava na música de George Auric cuidadosamente escrita para cenas específicas do filme e, deliberadamente, aplicava a música errada às cenas erradas”.
Emancipada assim a questão do aparente “sentido único” que uma determinada sobreposição de imagens e sons haveria de fazer para todo o sempre — nenhumas imagens nasceram para se articularem inevitavelmente com estes ou aqueles sons —, não só se abre um infinito universo de possibilidades de estética combinatória como a prática crescente de sonorização contemporânea de filmes clássicos ou da época do “mudo” ganha uma legitimidade acrescida, independente de quaisquer considerações de ordem historicista ou autenticista. Poderão resultar desastradamente mal [como as partituras em piloto automático de Philip Glass para Dracula (Drácula, 1931) ou La belle et la bête (A Bela e o Monstro, 1946)] mas também podem sair-se assombrosamente bem como é o caso de Chelovek s kino-apparatom (O Homem da Câmara de Filmar, 1929), de Dziga Vertov, que, a convite do “Porto-2001”, a Cinematic Orchestra reencenou musicalmente. Se o filme se apresentava como “um trabalho experimental que pretende criar uma verdadeira e absoluta linguagem internacional do cinema baseada na total separação das linguagens da literatura e do teatro” e, ao fazê-lo, não só escancarou as portas de toda a modernidade cinematográfica posterior enquanto arte suprema da montagem como inaugurou o género do “kino pravda/cinema vérité”, a banda sonora de Jason Swinscoe e cúmplices optou inteligentemente por não se limitar a mimetizar a dinâmica das imagens mas apreender-lhes sim a matriz mais profunda.
O que no ecrã era uma fabulosa investigação acerca da realidade — um dia na vida da paisagem humana de Moscovo — como exercício radicalmente subjectivo de construção por “assemblage” errática e aleatória do olho humano ou do “kino glaz” (o olho do cinema) e não como mero efeito de reprodução mecanicamente “realista”, a Cinematic Orchestra traduz isso para o espaço sonoro em dois planos: horizontalmente, de modo ciclicamente repetitivo, assegurando a continuidade narrativa assente numa estabilidade harmónica e rítmica; verticalmente, através da acumulação de factores de surpresa melódica, momentos de improvisação e rotura, explosões de percussão e estridência tímbrica.
Não existe uma verdade única do “real”, a verdade do cinema é só mais uma possibilidade de interpretação e, no limite, de edificação de um mundo, explicava Vertov neste filme. A Cinematic Orchestra acrescenta: a modernidade de Vertov, Fernand Léger, Frank Stella, Joris Ivens, Álvaro de Campos ou John Dos Passos é tão verdadeira e urgente como a de uma música acabada de compôr para dialogar no idioma contemporâneo com um filme rodado há quase um século.
João Lisboa
Histórico crítico musical e cronista do Expresso e autor do blogue Provas de Contacto.