– Como se o observador estivesse a entrar dentro de um corpo, dentro da pele?
– Sob a pele.
Sara António Matos & Rui Chafes (in Chafes, 2015)
Prólogo
Um dos aspectos mais curiosos das pinturas e desenhos em cavernas do período pré-histórico prende-se com facto de ainda não ser certa a autoria de uma tipologia específica de imagens – as estampagens ou impressões de mãos humanas – que tanto podem ser atribuídas aos artistas como aos espectadores que passaram por tais cavernas. Estas imagens escondem algo mais que uma simples vontade de representar um mundo real ou imaginado. Elas revelam, talvez, o início de um logos, forma de estudo e teoria profundamente relacional, na qual as imagens e quem as procura são elementos consubstanciais, e não apenas correlativos, de uma mesma equação, um teatro em que o olhar, sob a forma do tacto, é símbolo da força criadora e simultaneamente princípio de inteligibilidade.
Nessas grutas, imagens e corpos estão envoltas num espaço que é simultaneamente suporte e pele de cobertura. Tais imagens – as que ficaram – escondem a história de um tipo de pele, que o cinema, qual protagonista tardio, viria reinventar.
1. Foi na Alemanha de Weimar, há cem anos, que o cinema nos envolveu com a sua escuridão. O “ecrã demoníaco” de que nos falou Lotte Eisner (1969), apesar de habitado por monstros, duplos, sombras, “paisagens da alma” e outras fantasias, ainda é, talvez, o mais táctil dos cinemas. Muito além das “visões” que emanaram desse ecrã, é com essas visões que, sobretudo se estivermos algures nas primeiras três filas de uma sala escura, se torna evidente um jogo de escala que alguns (poucos) cineastas procuraram engendrar. Nesse jogo, as imagens são como pontos nevrálgicos de uma pele maior que se prolonga pelo negrume da sala que nos envolve. Dito de outra forma: é hoje evidente que as imagens dos filmes de F.W. Murnau, Georg Kaiser, Arthur Robinson, Lupu Pick ou (embora por razões ligadas a uma ímpar invenção do cinema sonoro) Fritz Lang, entre outros, foram concebidas como se a escuridão da sala de cinema fosse uma extensão “demoníaca” do próprio ecrã. Salas demoníacas, casas negras, grutas escuras, portanto, aquelas em que passámos a poder mergulhar; lugares, enfim, onde o nosso corpo é convocado para uma pantanosa experiência do ver. Se pensarmos no cinema como lugar de acolhimento e não como mero fenómeno do que acontece no ecrã ou na nossa mente a partir desse ecrã, então, está por estudar o alcance da aproximação que alguns destes filmes devem à etimologia da palavra Théatron (θέατρον): “lugar de onde se vê”.
Nosferatu (1921) não é, pois, só mais um entre grandes filmes desse período. É, também e sobretudo, o mais simbólico dos filmes sobre um cinema que se quis fazer lugar revestido por uma peculiar escuridão envolvente. As imagens deste filme bombeiam o sangue que impregna um lugar (leia-se: uma qualquer sala escura) com condições de possibilidade que vão muito além do fascínio pelo mundo cinematográfico.
Em Nosferatu, não está apenas em jogo o corpo de um vampiro e o da mulher que por ele vai sendo atraída e desejada. Está também em jogo a paisagem envolta desse vampiro e dessa mulher. Recorrendo a cenários naturais, Murnau fez do índice fotográfico do mundo real o material de uma obscura pele cinematográfica. Fez de nós presas num jogo de sedução, de que Ellen, a mulher desejada em causa, é simultaneamente reflexo e corpo à mercê da sombra que se vai progressivamente (des)envolvendo. Este filme é forma de mediação alucinada, de que os vários sentidos humanos passam a fazer parte. Contrastando com a distância social imposta pela chegada da peste, a distância face ao objecto do desejo toma forma no encontro final a que nem o Conde Orlok nem Ellen resistem. O fundamento para qualquer fórmula de compreensão de Nosferatu reside na assunção de uma distância que é necessariamente perdida – ou, melhor dizendo, atravessada. Este “ecrã demoníaco” abria, assim, uma fenda ontológica na história do cinema. Deixávamos de habitar somente um mundo alternativo, para que ele também habitasse em nós. Isto é, o mundo deixava de nos ser meramente apresentado, para passar a constituir-se como imagem que nos deseja. Ser tocado pelo cinema poderia ser, doravante, uma espécie beijo mortal, uma espécie de morte e renascimento, “como se de uma transfusão [entre cinema e vida] se tratasse” (Kracauer, 2012).
O que em Nosfetaru se inaugurou foi a desestabilização de uma distância de segurança face ao “efeito de real” (Oudart, 1971). O filme deixou de ser mero estratagema ficcional e diegético ao qual o espectador adere, embora de longe, e passou a consistir num ambíguo gesto de contacto enlouquecido. Quando assim é, deixamos de acreditar (ou fingir acreditar) nas imagens que se nos apresentam e passamos a desejar ser perigosamente tocados por elas.
2. A experiência de enlouquecimento testemunhal, tão propícia ao cinema das sombras, é também cara a algum do melhor cinema das luzes. À noite demoníaca e centrífuga de Nosferatu sucederam as luzes centrípetas da cidade diurna, onde ocorrem todos os dramas infinitos da realidade quotidiana.
No cinema de Charlie Chaplin, agita-se no centro de cada cena um acrobata, que, com o corpo, desafia a lógica do mundo concreto de todos os dias. Se deliramos com as suas proezas mais ou menos intencionais, é porque o palco para acontecimentos invulgares é a caricatura de uma realidade tal qual a conhecemos. Objectos, lugares e movimentos são estímulos de um mundo-corpo, cuja rítmica quotidianidade é tornada visível dentro de campo. Mas, se o mundo ficcional do famoso Vagabundo funciona como uma vantajosa plataforma para as suas proezas e escapadelas, é porque o seu criador entendeu muito bem que todos os elementos dispostos em cena são cúmplices num jogo dramático minuciosamente orquestrado. Objectos e corpos no interior de cada um dos planos do cinema de Chaplin fazem parte da mesma pele; cenários, figurantes e objectos são como corpos sincronizados numa coreografia colectiva que ocorre num ecrã centrípeto, que, embora nos faça esquecer tudo aquilo que fora dele acontece, também nos convoca habilmente para a mesma dança.
À primeira vista, poderíamos dizer que nos encontramos no campo oposto de um cinema que se quer fazer pele, i.e., de um cinema que se quer fazer sentir enquanto tal. No entanto, se olharmos mais fundo, veremos que a suspensão da descrença é, na verdade, muito menos um alheamento e muito mais uma passagem para outra realidade absolutamente física (como se entrássemos em contacto com uma nova substância química, com qualidades particulares e opostas àquela em que habitamos), da qual o regresso é movimento consubstancial. Prova de que o cinema de Chaplin ainda é o expoente máximo desse “vai-e-vem” táctil é não tanto o seu talento para nos fazer crer na improbabilidade das suas acrobacias, como o de nos fazer ver, de forma renovada, o mundo das probabilidades.
A renovação dessa forma de ver faz-se através do riso – “e talvez uma lágrima”. Nalguns destes filmes, a dormência dos membros que recuperam atordoados após a anestesia provocada por um particular tipo de suspensão emocional, é um sentimento táctil (e colectivo) por excelência. Os músculos da cara que contraímos não são os mesmos que o eram antes de entrarmos na sala; no entretanto, foram tocados e modificados sem que disso nos apercebêssemos, como se tivéssemos entrado numa operação cirúrgica que nos modificou não só o rosto, mas também aquilo que ele escondia [é de testemunhos desta transformação que nos fala o belo Shirin (2008), de Abbas Kiarostami].
A famosa última cena de City Lights (Luzes da Cidade, 1931), na qual a florista, agora curada da sua antiga cegueira, reconhece o Vagabundo à medida que tacteia as suas mãos e braços, metaforiza essa lenta retomada de contacto com um real que antes não víamos, mas que esteve lá sempre. As duas legendas mais desnecessárias da história do cinema, quais bengalas explicativas de um ponto de vista dramático (“You? – You can see now?”), são, na verdade, fundamentais de um ponto de vista conceptual. Não é Virginia Cherril quem, primeiro, procura confirmar se Chaplin é Chaplin, nem é Chaplin que, depois, procura confirmar se a florista que ama está de facto curada da cegueira: é o filme que nos pergunta se somos nós, espectadores no seu interior, quem consegue ver como antes não via. A membrana que nessa cena começa por separar o Vagabundo da sua amada (uma montra transparente) desaparece logo a seguir, como se também o dispositivo cinematográfico se ausentasse silenciosamente de cena, naquele que é o mais táctil campo / contra-campo do período do “mudo”. Os últimos segundos de City Lights, talvez uns dos mais bem conseguidos na breve história do cinema, são-no porque estão já com um pé fora do filme e com outro na antecâmara da vida ela mesma. Evidenciam a modificação política que o cinema tem o poder de operar sobre nós, modificação essa tão perigosa como estimulante, e para que Didi-Huberman (2011) alerta da melhor forma:
“É que as emoções, como são moções, movimentos, comoções, são também transformações daqueles ou daquelas que estão comovidos (…). É mesmo através das emoções que podemos, eventualmente, transformar o nosso mundo, na condição, é certo, de que elas se transformem elas próprias em pensamentos e em acções.”
Se saímos potencialmente transformados de um filme de Chaplin, é porque fomos tocados pelas imagens sem que disso nos apercebêssemos. Daí em diante, um novo mundo se apresenta aos nossos músculos involuntariamente exercitados. É da transfiguração do nosso entendimento por via do riso exercitante que nos fala toda a obra de Chaplin, sobretudo City Lights – justamente uma obra sobre as luzes da cidade que antes que nos impediam de ver, um filme sobre a necessidade de voltar a (re)conhecer o mundo moderno envolvente através da revitalização táctil de um corpo que, nesse mundo, se tende a apagar.
3. De sublimidade e quotidianidade são, ainda assim, compostos os cantos desse ambivalente mundo moderno. Histórias de deambulações pelo tecido poético de todos os dias, em que os gestos e as palavras mais banais e secretas se substituem às grandes acções e grandes feitos dos heróis de antigamente. São mundos de infinitos pequenos palcos dramáticos, a transbordar de acções sem heróis, vilões ou peripécias evidentes à superfície, mas sem fim à vista em profundidade. Como sucede no mundo dos maiores cineastas da modernidade cinematográfica e no mundo dos filmes de Robert Bresson, o maior dos cineastas modernos.
O cinema de Bresson é fabricado com o mesmo pormenor da tecelagem. O cinematógrafo, essa “máquina prodigiosa” com que se ataca o real, é como uma máquina de fiar, a que só o domínio artesanal e manual do tecelão-cineasta é capaz de conferir “verdade”. Esta dança entre real e percepção acontece não só num plano ontológico, onde real e o cinema são entretecidos, mas também num plano praxeológico (de que as Notas sobre o Cinematógrafo são o mais poderoso manifesto), onde a excitação da antecipação, o momento único das filmagens e o olhar revitalizante da montagem coabitam como um só gesto, em busca de uma cinemato-grafia redentora: “Fazer ver o que tu vês por intermédio de uma máquina que não vê como tu vês”.
Na montagem de Bresson, os raccords assumem a amplitude de um quase invisível golpe cirúrgico. A medida de grandeza do mais pequeno gesto transubstancia-se em momento de tensão fulcral. Tal precisão deriva de uma ética de trabalho em que a imagem não existe senão em relação, i.e., relação em que não há cinema sem montagem, ou imagem que possamos ver senão como substância de um continuum vital, para o qual é convocado entendimento humano: “Uma imagem não tem valor absoluto. Imagens e sons deverão o seu valor e o seu poder apenas à utilização a que os destinas”.
Para Bresson, a tarefa do cineasta é fazer com que se sinta a pulsação de uma pele viva que toma o lugar da tela – “frémito das imagens que acordam” na realidade do ecrã, essa à qual o cineasta tudo deve submeter, “como um pintor submete o seu quadro à própria realidade da tela e das cores com que a cobriu, o escultor as suas figuras à realidade do mármore ou do bronze”. O que destaca este entendimento da materialidade do filme de qualquer outra teoria da montagem é o facto de estas imagens só poderem existir em função de um espaço do “entre”, um espaço que não se situa nem no ecrã, nem na mente do espectador, mas algures entre o espectador e o ecrã. Ou seja, é no espaço a meio caminho entre ecrã e espectador que o filme acontece. O cinema deixa de acontecer no ecrã; o espectador deixa de ser mero contemplador. Ambos formam uma unidade viva de criação no momento em que se encontram.
O cinematógrafo bressoniano, ao contrário do cinema do espectáculo, propicia encontros, justamente porque, “lá fora”, como nesse cinema, passámos a viver num mundo de desencontros. Eis uma grafia da relação por excelência, que redime não só a realidade física, como desejava Kracauer, mas que também nos redime a nós mesmos.
É essa dupla redenção que Pickpocket (1959), o mais táctil dos filmes de Bresson, encena. Nesse filme, o carteirista Michel pratica a artisticidade de um tipo de contacto que se tenta não fazer sentir. Orgulhando-se de tirar proveito do anestesiamento social da vida moderna, as suas mãos procuram atingir a leveza da invisibilidade. A amoralidade e a artesanalidade do roubo são os códigos de uma conduta que deambula algures, entre os átomos e o vazio que compõem o mundo moderno – ou até mesmo o antigo, se tivermos em conta o que já nos dizia Lucrécio. Perigoso limiar esse, para os humanos, o de uma realidade fugidia e indiferente, que nos escapa diariamente por entre os dedos das mãos, e na qual a descrença é o efeito disfarçado de causa de que os descrentes mais audazes, como Michel, tiram partido. (A modernidade é, aos olhos de Bresson, o momento dessa inclinação fatal, em que alguns se aproveitam de vítimas desatentas, numa cada vez mais ampla escala da desatenção).
É por esta (e tantas outras) razões que o final de Pickpocket é o mais táctil e importante dos finais de todos os filmes do cinema moderno. Já afastado do mundo comum, encarcerado, entre os dedos de Michel não estão mais carteiras roubadas ou planos fugidios: estão grades de uma cela que agora o separam de Jeanne. É essa grade que agora se faz sentir como uma nova pele – não uma pele que o separa do amor por Jeanne, mas uma pele que, pela primeira vez, os liga. Uma pele necessariamente relacional, à semelhança de todas as imagens que se interpõem entre nós e mundo, e que a ele nos ligam (ou dele nos desligam). Nesta última cena, a grade deixa de ser ecrã (mediação) e passa a ser lugar de encontro (intermediação). Bresson lembra-nos que nenhuma imagem é realmente dada à distância: é preciso ir ao seu encontro, a meio do caminho. Caminhada difícil, exigente, que se plasma das palavras de Michel: “Ó, Jeanne, que estranho caminho tive de tomar para chegar a ti”. Michel e Jeanne fazem-se corpo numa só imagem, separados pela membrana de um cinema da relação, tocando-se como podem, na mais surpreendente das construções cinematográficas da emoção alguma vez concebida: “Produção de emoção conseguida através de uma resistência à emoção” (Bresson, 2000).
No cinema de Bresson, deixamos de estar somente num mundo ficcional previamente orquestrado, assim como esse mundo deixa de estar somente no interior de cada um de nós (como tantos teóricos se esforçaram por tentar provar). O cinema de Bresson é um cinema do encontro, cinema fundamentalmente religioso – não no sentido confessional, mas etimológico (do latim Religare), porque re-liga o que foi desligado. Como sucede no espaço de relação, nesse encontro, “O mundo ‘habita’, sem dúvida, em mim como representação, tal como eu habito nele como coisa. Mas nem por isso ele está em mim ou eu nele. Ele e eu estamos numa inclusão recíproca” (Buber, 2003).
4. À ínfima hipótese relacional que se vislumbra nos últimos segundos de um filme como Pickpocket sucederam poucos herdeiros. Na grande maioria do mundo cinematográfico, os filmes modernos foram-se tornando fechados e auto-referenciais, ao mesmo tempo que, no mundo da vida, uma imparável cinematização de tudo rasurou a diferença entre coisas e imagens. Foi-se tornando cada vez mais difícil dar resposta à pergunta de Gilles Deleuze (2006): “Como é que o cinema é capaz de voltar a fazer-nos acreditar no mundo?”
No meio de uma imparável tempestade de imagens, perdemos de vista os mundos para onde os desalinhados ou os vencidos da história foram sendo enviados. Mas não é tão problemático o facto de começarem a fazer cada vez mais falta arquitectos que construam passagens para esses mundos abertos (a falta que, a esse propósito, nos fazem Akerman, Varda ou Lanzmann), como é a certeza de, dadas as bulímicas condições de exposicionalidade e consumo vigentes, nos termos conformado com a simples existência de tantos desses mundos que ainda são dados conhecer (graças a Costa, Bing ou Klotz). É desse conformismo face a um “estado de excepção” encenado nos campos de concentração da Segunda Guerra que nos tem falado Agamben (2010). Continuamos sem perceber que o mero acesso a tais mundos já não basta nem nos iliba da conivência com que os conhecemos à distância. É através desse olhar – e da sua falta de capacidade criadora – que nos tornamos cúmplices de todos os crimes cometidos contra mais diversas e contingentes parcelas de humanos concentrados por esse mundo fora, das encostas ao longo do mediterrâneo aos trilhos fronteiriços entre as américas.
Torna-se cada vez mais urgente, pois, perceber a importância do cinema documental que, ao longo do séc. XX e XXI, conseguiu e ainda consegue transformar em pele os muros que compõem essas instituições totais que se vão erguendo em cada esquina, como pequenos mundos fechados. No que respeita a essa possibilidade, se Wang Bing é um dos mais importantes realizadores vivos, Forough Farrokhzad é a mais importante das cineastas mortas.
Não é mero detalhe que Khaneh siah ast (A Casa É Negra,1962) tenha sido o primeiro e último filme de Farrokhzad. Não podia sê-lo de outra maneira: a sua trágica e precoce morte, num súbito acidente de carro quando tinha 32 anos, não é uma simples curiosidade adicional; essa morte é tão constituinte da pele deste filme, tal como é o facto de a poetisa ter adoptado uma das crianças leprosas retratadas nessa instituição iraniana (apud Rosenbaum, 2020). A Casa É Negra abriu uma ferida na pele da história do cinema que só uma cineasta do tamanho de Chantal Akerman viria a conseguir alargar. Uma ferida em que uma vida sem cinema, ou um cinema sem vida não seriam mais possíveis no caso daqueles que querem conferir seriedade – e profundidade – ao mundo filmado. Desse filme em diante, só aqueles que encararam o cinema dessa forma ainda estão vivos para a história do cinema. A pele de cada trabalho cinematográfico de Stan Brakhage, Jonas Mekas, Chantal Akerman ou Agnès Varda, entre (poucos) outros, é a mesma que reveste cada momento das suas biografias. Foi esse pacto de sangue entre cinema e vida que Farrokhzad abriu de forma fatal.
À semelhança das infindáveis cosmogonias que o melhor cinema dá a conhecer por esse mundo fora, A Casa É Negra é tanto o retrato de um mundo institucional, particular e específico, como metáfora de toda a condição humana. Mas porque falamos de tacto, é do conteúdo capital deste filme que brevemente falaremos: a lepra tornada “invisível” é, porventura, o seu maior feito. Mais do que nos dar a ver a pele dos excluídos, a cineasta oculta aquilo que diferencia essa pele da nossa. É na conseguida equivalência entre o esplendor de todos esses corpos ou rostos e o esplendor de todas as outras imagens desse filme-poema que reside o segredo da invisibilidade tornada carne neste filme. Por outras palavras: a “mão” que está estampada nas paredes dessa “caverna” é a nossa, signo do nosso próprio olhar e da impressão da sua presença.
As imagens deste filme são de natureza irreversível. Não pelo seu valor de choque, mas porque que trazem consigo algo que “no cinema encontra versão única” (Bogalheiro, 1997). Uma “furiosa intuição”, como no poema que é narrado em voice over, a partir da qual tanto as imagens da lepra como as imagens do lugar se fazem matéria constituinte de uma só pele. Mais do que no-las mostrar, Farroukhzad dá-no-las a sentir. É de um mergulho profundo nesta escura “caverna” revestida por uma delicada pele que este filme trata – um mergulho necessariamente profundo, pois só aí “permanece sempre o enigma de como e quando se desencadeia o efeito de pensar poeticamente, que é como quem diz capaz de ir ao fundo sem se afogar”.
Tenho em mim que todos os grandes cineastas são os que propõem este fundo mergulho, no qual corremos o risco de nos afogar na escuridão das suas profundezas. Prova de que, apesar de só ter realizado um filme, Farrokhzad foi grande entre os grandes cineastas, é a forma como nos traz gentilmente de volta à tona, já quase no final deste filme, quando nos mostra uma porta dessa “colónia de leprosos” a ser fechada pelos próprios. A pele desse filme volta a fazer-se muro, qual parede intransponível pelo mero olhar. O mundo interior de que fomos corpo, durante uns eternos vinte minutos, volta a constituir-se politicamente enquanto “estado de excepção”.
Só após readquirir essa distância exteriorizada, tão típica das formas de mediação, contextualizações ou “naturalizadas” formas de conhecimento institucionalizante, virá a última cena do filme, na qual uma criança escreve no quadro da sala de aula: “a casa é negra”. Essa criança anuncia-nos o que, entretanto, assimilámos: a escuridão dessa casa lembra-nos a difícil tarefa de realmente ver o seu interior. Só através de um sensível mergulho no desconhecido mundo das formas pode o cinema, enquanto exigente aula do ver, enquanto poética do tacto, fazer-se forma de conhecimento.
Cinema em que a poesia do tacto é indissociável do agir político, A Casa É Negra engendra um campo cinematográfico através da fina e delicada fragilidade que o fertiliza. É, pois, a pele da lepra que cobre esse campo, espelhando a condição de permeabilidade que só o olhar e o dizer do poeta encontram em todo o lado: no reverso de cada imagem, está um mundo insuportavelmente belo…
5. Entre os muros por esse mundo fora, o excesso de visibilidade cegou-nos. O exterior e o interior indiferenciaram-se. Com o aparecimento de novas câmaras e canais de mediação, as imagens do directo proliferaram e, com elas, a ilusão de uma ubíqua e arbitrária utopia do imediato. Numa altura em que a transparência nos cega, nunca a lição sobre a escuridão de um dos maiores pintores, Paul Cézanne, foi tão importante: “É preciso haver noite para eu poder desviar os olhos da terra, deste pedaço de terra onde me fundi” (apud Gasquet e Faure, 2012).
Mas nem só de excessiva visibilidade é feito o mundo da vida. O êxtase torrencial em cada esquina, em cada canto, em cada quarto de todos os dias, é imune a qualquer pretensa aceleração escópica ou forçada actualização dos novos modos de captura do visível na civilização da imagem. Não é por acaso que alguns dos maiores cineastas da era global antes optaram por concentrar-se em singulares formas de confinamento (Akerman, Benning, Coutinho, Garrel, Godard ou Oliveira). Difícil é, no entanto, a arte de encenar um mais imediato êxtase quotidiano, de lhe dar a forma de um abrigo sombrio, no qual a exigente tarefa de tomar atenção seja só o primeiro passo de uma longa tarefa de construção – “A primeira de todas as qualidades, diz Goethe, é a atenção” (Benjamin, 2018).
Talvez por isso, outro dos mais importantes cineastas vivos seja Frederick Wiseman. Os seus filmes são como museus vivos para as imagens de todos os dias, lugares privilegiados pelos quais somos convidados a devanear livremente, equilibrando-nos na ténue linha que confunde a exterioridade do olhar do antropólogo com a interioridade do sentir do poeta. Quanto mais avançamos nesse trajecto museológico, mais o enigma subjacente a originais formas de conhecimento filosófico se faz sentir – “thaumazein, o choque de admiração, do espanto perante o milagre do Ser [que] é o começo de toda a filosofia” (Arendt, 2001).
Ora, é justamente num museu que tem lugar a última cena de que aqui falarei. Trata-se de uma cena em National Gallery (2014), que surge decorridos dez minutos de filme, na qual presenciamos uma aula de história de arte para pessoas variadas, entre as quais se encontram invisuais. O objecto em discussão é uma pintura “mais abstracta”, de Camille Pissarro, Boulevard Montmarte de noite, cuja reprodução em modelos de touch drawings a professora trouxe para a aula, de modo a tornar possível a legibilidade da mesma para os alunos invisuais presentes.
A própria pintura, pegando nas palavras de mediação da professora, é reveladora de algumas das qualidades intrínsecas do cinema de Wiseman: “Sinfonia de luz e escuridão”, “tomada de vista entusiástica sobre a vida na cidade”, uma pintura que, apesar das suas qualidades abstractas, “põe a descoberto as estruturas sociais”. Mas é o ponto de vista escolhido para a mesma, uma espécie de janela superior fantasmática e alinhada com o ponto de fuga da cena, que metaforiza um ponto de vista de nenhures singularmente wisemaniano, a partir do qual o espectador é convocado para co-produzir o sentido das imagens com que se relaciona. Nas palavras do próprio realizador: “When my technique works, the audience becomes involved because they are placed in the middle of sequences and are asked to think through their own relationship to what they are seeing and hearing” (in Peary, 1998).
Semelhanças entre a pintura de Pissarro e a estética de Wiseman à parte, é na própria relação táctil com as reproduções desta pintura que se esboça uma outra analogia, talvez uma das maiores do cinema de Wiseman. Embora haja algo de comovente na forma como estas pessoas tacteiam uma imagem que sabemos depender da cor e perspectiva para ser realmente entendida, algo subtilmente insinuado está, ainda mais decisivamente, em causa. Em boa verdade, há uma leitura que desdobra esta cena em duas direcções. Numa primeira, toda uma forma de construção cénica é minuciosamente descrita; ou seja, não é só cego quem não tem a capacidade de ver esta imagem, mas também quem não procura perceber aquilo que a põe em relação num jogo de cena maior. Numa segunda direcção, bem mais ampla, é todo um modelo de entendimento dessa imagem cuidadosamente encenada que é proposto: um modelo de entendimento comum, um espaço de alteridade, de que o tacto é o símbolo capital de uma presença física do espectador. Essas duas direcções culminam no gesto de uma mão que guia a outra pelas linhas estruturantes do touch drawing que reproduz a pintura de Pissarro, no qual reside a alusão à possibilidade de um diálogo mudo entre aqueles que estão face a face com essa imagem. Para que tal diálogo se faça sentir, não é necessário que ele aconteça – basta a sua possibilidade, pois só dessa possibilidade deriva a palavra que põe o Ser em relação. E que história é a do cinema de que tenho aqui falado, senão a do engendramento dessas condições de possibilidade para uma relação que, por vezes, ocorre até mesmo só através do tempo, entre aqueles que entraram na mesma sala – ou gruta – em momentos diferentes? Por outras palavras: não há nenhuma imagem que tenha sido criada para que a conhecêssemos (tocássemos) sozinhos, por mais condenados à solidão que estejamos na sala de cinema.
A breve aula para invisuais em National Gallery fala-nos de uma necessária e urgente sala de cinema do futuro. Uma sala para “invisuais”, que consubstancie o contacto entre vários olhares possíveis sobre uma mesma imagem. Uma “caverna” em que as imagens e as mãos que as tocam coabitam sob a mesma pele. E um cinema não muito diferente do que já houve, logo desde o início, e no qual os seus melhores arquitectos sempre engendraram formas de relação que fossem além da mera ligação que cada um de nós, bem ou mal, com mais ou menos intensidade, consegue estabelecer com cada imagem. Não mais um cinema da cinefilia e da ligação afectiva, mas um cinema da cinelogia e da afecção relacional. Um cinema, em suma, em que nem o mais pessoal e intransmissível dos sentidos – o tacto – acontece verdadeiramente sem as condições de possibilidade que possam transformá-lo numa forma de diálogo ou conhecimento comum – um com-tacto.
Epílogo
O que os filmes aqui brevemente abordados nos dizem é que a história do cinema é uma história das suas condições de possibilidade. Cada filme mencionado é, nesse sentido, tão físico como qualquer outra forma arquitectural na história da humanidade. É nos vestígios dessas construções resistentes ao tempo que reside a chave de compreensão para a qualidade específica de cada encontro proporcionado no seu interior. São vestígios que, como nas primeiras mãos estampadas nas paredes das primeiras cavernas, nos convocam para uma relação táctil – um com-tacto – com os primeiros enigmas da aventura humana.
Um dos primeiros enigmas dessa história, o nascimento da arte, conta a história de uma construção inacabada. Tal construção tem lugar num “recreio”, como lhe chamou Bataille (2015), que somos convocados a habitar, como se fôssemos crianças, através de uma “transgressão” perigosa, da qual corremos o risco de não regressar. Mas se queremos voltar com um corpo renovado desse recreio, é preciso aprender a recuperar a incredulidade do olhar infantil para nele saber mergulhar; é preciso ousar ir ao encontro das suas imagens e tocar nas feridas por elas abertas.
Pedro Florêncio
Professor, realizador e investigador na área do cinema.
Bibliografia
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