Yes, the hero is an ordinary man who finds himself able to handle violent situations, but that’s not the movie’s point. The last two words of the screenplay are “save me,” and by the time they’re said, we know what they mean.
Roger Ebert, Chicago Sun-Times, 26 de Fevereiro de 1999
A conservação da memória humana pelas imagens em movimento, para o bem ou para o mal, conheceu nos pequenos formatos analógicos um durável e privilegiado veículo de registo de pessoas, lugares e vivências. Sobretudo no uso privado e popular das bobines de 8mm e 16mm, o cidadão comum tornou-se no “improvável realizador” da sua própria circunstância (e, é conhecido, tais experiências foram as seminais incursões atrás das câmaras de muitos dos actuais nomes da Sétima Arte), tendo-se agregado, nesse processo, uma extensa produção anónima, muitas vezes de origem ou autoria desconhecidas e de absoluto valor histórico.
Dada essa “afinidade doméstica”, aliada a um baixo custo de aquisição e revelação, estes formatos também foram o principal suporte de muito do cinema experimental, transgressivo na sua intenção e irresignado no seu formalismo, produzido ao longo das décadas anteriores a métodos de produção digitais. Nas películas de 8mm e 16mm, ficou impresso o desejo de captar uma ânsia de extravasar conceitos normativos de cinematografia e a busca pela inquietação no seu observador.
Por outras palavras, estes formatos possuem, no seu humilde tamanho material, a capacidade de encapsular desde as mais negras obsessões humanas às virtudes benignas da vida.
Vem esta “introdução técnica” a propósito de 8mm (1999), realizado pelo recentemente desaparecido Joel Schumacher (a quem este texto tenta prestar homenagem), título produzido em contexto inteiramente comercial e, ademais, protagonizado por um então “bancável” Nicolas Cage. Thriller pessimista e violento, o filme define-se, à primeira vista, como mero conto de crime e castigo. A investigação de um detective privado sobre a veracidade da violação e morte de uma jovem, registadas numa cópia, em 8mm, de um snuff film (género que designa a suposta filmagem, com fins comerciais, da morte real de uma pessoa) encontrado pela viúva de um milionário após o falecimento deste, conduzi-lo-á aos meandros da mais extrema indústria pornográfica, à interacção com indivíduos de duvidosa integridade e a uma série de dilemas morais que culminarão em remissão e vingança.
Do ponto de vista temático e narrativo, não estamos perante nada de especificamente inovador. O conceito do snuff film, no cinema, já encontrara paralelo em títulos como Peeping Tom (A Vítima do Medo, 1960), Hardcore (A Rapariga na Zona Quente, 1979) ou Strange Days (Estranhos Prazeres, 1995), os quais, de várias formas, deixaram impressão junto da crítica e cinefilia. Em sentido contrário, o filme de Joel Schumacher foi particularmente devassado pela imprensa especializada aquando da sua estreia, tendo, nos últimos anos, angariado um substancial culto a seu respeito.
Não obstante essas apreciações, somei 8mm ao meu muito pessoal lote de guilty pleasures desde a minha primeira visualização. Filme em consonância com os thrillers sombrios norte-americanos que nos foram dados a conhecer durante a década de 1990 – sobretudo, Se7en (Sete Pecados Mortais, 1995), com o qual 8mm “partilha” Andrew Kevin Walker na autoria do argumento –, é na exploração, a meu ver inconsciente, do conluio entre o poder do formato analógico, que lhe empresta o título, e as mais soturnas pulsões do espírito humano que este título encontra plena singularidade.
8mm é, sobretudo, um exercício de estilo dissimulado de cinema comercial, sem pretensão de reconfortar ninguém, e que nos lembra como os guilty pleasures não têm de ser isentos de frémito.
Muito possivelmente, jamais foi essa a intenção inicial de 8mm. Aqui, Joel Schumacher opera ao nível da pura execução de um produto comercial, a partir de um argumento cuja sordidez (para grande desprazer de Andrew Kevin Walker…) foi minimizada em função de classificações etárias e planos de marketing. Contudo, a mecânica diegética e a composição formal do filme são completamente dominadas pelo conteúdo daquela pequena bobine, armazenada no cofre privado de um milionário perverso e imbuído do sentimento incólume de “poder absoluto”.
Da famosa (e muito parodiada) sequência em que o protagonista observa pela primeira vez o suposto snuff film até a um clímax de sangue e torture porn quase literal, as motivações gravitam aqui, irremediavelmente, em torno daquela violenta expressão de sexualidade humana e de um anseio transgressivo face ao sofrimento humano, que a imagem rugosa da película de pequeno formato aparenta potenciar – precisamente, as mesmas características que regeram o uso privado desses suportes desde a sua génese. Essa rugosidade não só toma conta da direcção de fotografia de 8mm, mas também do “corpo e alma” dos indivíduos que ali pululam (a esposa do detective, encarnada por Catherine Keener, é a única balança moral) e, inclusive, das suas mais bem intencionadas acções.
8mm é, sobretudo, um exercício de estilo dissimulado de cinema comercial, sem pretensão de reconfortar ninguém, e que nos lembra como os guilty pleasures não têm de ser isentos de frémito; quando tudo isto se congrega, a reacção do público e da crítica será sempre discutível.
“Discutível”, aliás, poderia ser o melhor adjectivo para apelidar o percurso de Joel Schumacher enquanto realizador. Divagando entre géneros – da comédia de ficção científica ao drama familiar, do filme de vampiros ao thriller sobrenatural, do “dia de raiva” de um desempregado pelas ruas de Los Angeles à Guerra do Vietname, do filme de super-heróis aos dramas de tribunal –, raramente repetindo elencos nos seus filmes e não sendo fácil reconhecer-lhe verve autoral, Schumacher permanece, todavia, associado a títulos que marcaram o tempo e/ou as gerações na altura das suas estreias, assim como as próprias tendências da indústria que o integrou.
Com o seu falecimento, no passado dia 22 de Junho, talvez se inicie a reapreciação crítica – haverá melhor in memoriam possível? – acerca da diversidade da sua filmografia. Por mim, os valores subjectivos e “meta-cinematográficos” inerentes a 8mm, agora explanados, já podem ser um ponto de partida.