Terceiro filme do franco-tunisino Abdellatif Kechiche, La graine et le mulet (O Segredo de um Cuscuz, 2007) começa por ancorar-nos ao ponto de vista de Slimane (extraordinário Habib Boufares), um velho e lacónico ajudante de calafate despedido por “improdutividade” das docas de Sète (pequena cidade no sul da França) que decide comprometer a sua indemnização na transformação em restaurante familiar de uma abandonada e decrépita traineira. Trata-se aqui de um retrato de personagem ao qual a realização de Kechiche irá sobrepor o retrato de um grupo, disseminando os pontos de vista pela família e pelos amigos de Slimane (que tentam ajudá-lo na sua empresa) para auscultar o pulso da comunidade magrebina radicada no sul de França – comunidade que a câmara enquadra, para variar, sem recurso a definições politicamente esquemáticas ou esteticamente exóticas.

O resultado da empreitada deixa-nos algures entre o entusiasmo e a euforia. De facto, seguindo as pisadas do grande cinema popular francês (o de Jean Renoir, o de Robert Guédiguian…), o filme de Kechiche investe de uma dimensão épica e trágica as suas personagens (quase todas interpretadas por não-actores) que localiza, enquadra e descreve em função dos seus ritmos próprios. É um projecto estético e político que se espelha, segundo a bela expressão de Jean-Michel Frodon, na constituição de um cinema “falado do interior por aqueles que habitam um mundo sem voz” (Cahiers du Cinéma, 629/2007, p. 10), que o mesmo é dizer: na constituição de um cinema onde a palavra tem um papel essencial.
Com efeito, como o seu filme anterior – L’esquive (A Esquiva, 2003), onde Kechiche fazia um sistemático campo-contracampo entre a linguagem popular (encarnada pelos jovens dos banlieues franceses) e a linguagem erudita (encarnada pela literatura de Marivaux) –, O Segredo de um Cuscuz parece revestir a forma de um ensaio sobre os jogos de linguagem, encenando os seus diferentes níveis e registos e sondando as lógicas políticas e sociais de inclusão ou exclusão que regem a sua utilização. Veja-se, por exemplo, a belíssima sequência do pedido de empréstimo ao banco, na qual a clivagem existente entre a linguagem popular e a linguagem institucional origina um regime de desentendimento.
Problema central do filme, a linguagem é, também, o seu mais evidente motor, comandando de um ponto de vista formal a articulação e organização da realização, que se desdobra em longas sequências pontuadas por grandes planos cuja duração parece ser proporcional, não apenas ao número de personagens em cena, mas, sobretudo, à cadência dos discursos articulados.
E, no entanto, neste filme, não são apenas os sentidos da visão e do ouvido que nos convidam a participar na representação: o olfacto, o tacto e o paladar parecem constituir também, para a realização de Kechiche, figuras de primeiro plano. Para prová-lo lá está aquela extensa sequência do almoço em família – verdadeira orquestra de imagens, sons, cheiros, gestos e sabores na qual julgamos surpreender a figura de estilo que melhor se adequa a este delicioso preparado de Cuscuz. E o seu nome é sinestesia.
Este texto é uma nova versão de um artigo publicado previamente no jornal Expresso, no ano de 2008. O autor, Vasco Baptista Marques, foi o autor da crónica À pala de Walsh «Entre Parêntesis».