No espaço de sensivelmente dez anos (2004-2015), o italiano Pietro Marcello (n. 1976) fez a transição do documentário para a ficção, nunca abandonando o uso de materiais de arquivo que, segundo ele, possibilitam tornar presente nos filmes o vector da História. A história de Martin Eden (2019) passa-se num período de certo modo indeterminado, que podemos tomar pelo século XX em abstracto. Eden (magnificamente corporizado pelo actor Luca Marinelli) é um jovem embarcadiço que aluga um quarto na casa da irmã e do cunhado, que não fez mais que a instrução primária, mas que sente uma inquietação interior que vai ser espicaçada no contacto com uma família da classe alta de Nápoles, que prega os valores do liberalismo e que fala francês. A paixão pelos livros e o amor pela filha da casa nascem em simultâneo, tornando mais claras pelas palavras as preocupações de Martin Eden, e o seu desejo de se tornar escritor.
Martin Eden, o filme, é marcado por um romantismo sem ilusões e por um lirismo até final. O caminho de Eden será pontuado por muita rejeição, a escrita dele é crua e sem compromissos, e as suas posições intelectuais e políticas colocam-no à margem de todos, com a excepção do poeta e agitador boémio Russ Brissenden, que virá a ser o seu mentor. A palavra mentor obriga-me a despender o que resta do parágrafo para estabelecer uma comparação aproximativa entre os filmes de Pietro Marcello e o estupendo The Master (The Master – O Mentor, 2012), de Paul Thomas Anderson. São ambos filmes que falam de homens do mar que vivem em conflito com o mundo ao seu redor, e que por vezes exprimem essa inadequação de forma violenta. São também indivíduos que encontrarão um caminho momentâneo na figura de um homem mais velho, que os guiará pelo conhecimento e no reconhecimento estabelecido de um para com o outro. O filme de Paul Thomas Anderson termina num momento de alegria pós-coital, o de Pietro Marcello mostra-nos a figura de um autor celebrado mas desiludido que perdeu as graças do mar.
Podemos ver em Martin Eden um semelhante e ao mesmo tempo uma figura de homem que percorre e que é atravessada por um filme fascinante.
Existe em Martin Eden uma liberdade no uso dos elementos expressivos que se sobrepõe a qualquer princípio de verossimilhança temporal. As imagens de arquivo reportam-se aos anos 20 do século passado. As canções populares pertencem a artistas que conheceram o auge nos anos 1960, existem televisores a cores e automóveis que são da segunda metade do mesmo século. A música impressionista caracteriza a família de Elena Orsini, a apaixonada de Martin, e coloriza o fôlego romanesco do filme, do mesmo modo que a intervenção sobre a película de 16mm, ou opções filmadas que podem passar por alguém que diz para o espectador o conteúdo de uma carta por si escrita, como fazia François Truffaut em Les deux Anglaises et le continent (As Duas Inglesas e o Continente, 1971). Nunca pisamos terreno estável na condução que Pietro Marcello dá à narrativa. Flutuamos ao mesmo tempo que reflectimos, reflectimos ao mesmo tempo que nos emocionamos.
Martin Eden, na sua jornada do “paraíso” ao “inferno”, conseguirá o objectivo de viver para e da escrita. Torna-se mesmo um autor ovacionado pela sociedade que ele próprio atacara, na hipocrisia de se pensar que qualquer modelo de governação democrática pode existir sem a permanência das classes onde reside o poder e aqueles que nunca transcenderão a condição de servos. O filme é bastante ambíguo e dialético para podermos concluir de que lado está Pietro Marcello, ou Martin Eden, e mais se levarmos em conta que o livro de Jack London livremente adaptado foi considerado uma crítica ao individualismo, produto da pena de um socialista. Mas são estas tensões conflituantes, tanto artísticas como intelectuais, que dão vida a Martin Eden, e é nas contradições e no desencanto final de perceber que no combate do homem com o mundo, é o homem que sai sempre derrotado, que podemos ver em Martin Eden um semelhante e ao mesmo tempo uma figura de homem que percorre e que é atravessada por um filme fascinante. E não falei sequer da beleza que é assistir a um filme quase integralmente falado no dialecto napolitano.