I.
No princípio, eram as mãos. A minha e a do meu pai, uma na outra pela Rua Guerra Junqueiro afora a caminho do Cinema Nun’Álvares (situado junto àquele que é designado por Bairro de… Hollywood), no Porto (sala há muito fechada e entretanto convertida e desconvertida em espaços de coisas diversas). Dos meus imponentes 6 ou 7 anos de idade, tinha apenas um longínquo vislumbre da portinhola da bilheteira, pelo que só posso imaginar a reacção do empregado perante a crónica forma do meu pai, entre o charmoso e o desconcertante, de interagir com desconhecidos. Do bolso de trás de umas calças caqui, o meu pai retirou, com a sua mão direita, um pequeno porta-moedas de couro arredondado e dele o dinheiro dos dois bilhetes para o filme da tarde. O meu primeiro filme da tarde numa sala de cinema. O meu primeiro filme numa sala de cinema.
Não guardo esses bilhetes, evidentemente. Com aquela idade, jamais podia imaginar a importância que o cinema teria na minha vida. Aliás, não fazia ideia, nem o fiz até bem tarde, que o cinema poderia ter essa importância na vida de alguém. Fui um adolescente normal, nada rato de biblioteca, muito rato de paredinhas, balizas-balizinhas, botas-foras e meiinhos. Gostava de ir ao cinema porque tinha medo do escuro; para poder dar a mãos (sempre elas) e beijos às miúdas. Depois lá veio o Tarantino, o Requiem For a Dream (A Vida não é um Sonho, 2000), o Fight Club (Clube de Combate, 1999), essas coisas que começávamos a ouvir dos mais velhos na escola como sendo “alternativas”. Há-de ter sido também por essa altura que aluguei na Blockbuster uma cópia de Sex, Lies and Videotape (Sexo, Mentiras e Vídeo, 1989), confiante de estar na posse de pornografia ultra-secreta de culto. Imagine-se a desilusão. A “seca”. Ah, as crianças sofrem.
Mas dizia – não guardo esses bilhetes. Não me lembro, pois, de neles ver impresso “JOUR DE FÊTE”. Ou seria “HÁ FESTA NA ALDEIA”? Não posso dizer. São essas palavras, porém, que me permanecem gravadas na memória, logo seguidas de um senhor muito alto e desengonçado montado numa bicicleta com uma saca a tiracolo, figura então familiar para um miúdo habituado a fazer longas passeatas Porto-Vila do Conde (Angeiras, Labruge, Castro de São Paio, Vila Chã, terriolas onde a maresia se mistura com o estrume, a areia, trazida pelo vento e pelas sandálias dos piqueniques, no pinhal) a dormitar na cadeirinha de trás da bicicleta do pai. Um filme cujo preto e branco (só muito, muito mais tarde é que viria a ver a versão “a cores” que Tati rodou em simultâneo) não me deverá, suponho, ter causado grande impressão, na medida em que, pese embora a VHS com a fita mais depauperada lá de casa fosse a versão a cores da Disney de 1973 de Robin Hood (Robin dos Bosques), os filmes do Chaplin e do “Bucha e Estica” constituíam há muito prata da casa (e como me lamento por não ter contribuído para o dossier dos Palhaços nesta minha outra casa com um texto sobre eles, Laurel and Hardy…).
II.
Jour de fête (Há Festa na Aldeia, 1949) de Jacques Tati: foi o filme que vimos nessa tarde, o meu pai e eu, embora não exactamente da mesma forma. E não digo isto pelo facto de, à data, eu não fazer a mais pálida ideia de quem era Jacques Tati ou de que universo era aquele. Antes por um motivo bem mais prosaico: não o vimos do mesmo sítio, do mesmo ângulo. E certamente não o vimos com o mesmo – que grande palavrão para um catraio daquela idade – olhar. Poucos minutos depois do filme começar, a hipnose tomava conta de mim: sem dar cavaco a ninguém, levantei-me da cadeira e desci as escadas até ao lugar de onde vinha a estranha e imensa luz. Que clarão é este? O meu pai terá tentado chamar-me à razão, ter-se-á levantado para me recolher, mas, como é sabido, ela (razão) nada pode quando somos desviados para os movediços terrenos do transe. Com o resto dos presentes a rir a bom rir com o episódio, o meu pai não viu outra solução que não a de se recostar na cadeira e assistir ao son’s cut. Lá em baixo, colado ao ecrã, eu apalpava o ecrã com as duas mãos, tentava chegar às formas, às texturas, aos rostos ali projectados; não dava pela frente, ia por trás, pelos lados, para ver se elas – as pessoas, os animais, as “coisas” – lá estavam. Onde é que estão, afinal? Com a conivência dos espectadores séniores, assim fiquei até ao final do filme, já os créditos a rolarem, a sala vazia, o meu pai a puxar-me para sairmos… Mas como ir já embora se eu ainda não “apanhei” nada? Com as mãos, digo…
Eis o meu primeiro e primário desejo de capturar as imagens, de as apreender, bê-á-bá da cinefilia para crianças numa depurada lição auto-didacta. Lembro-me do meu estranhamento, da incompreensão perante o fenómeno de nada daquilo ser… como se diz, real. Tangível. Ou talvez: o paradoxo de se tratar de algo táctil, tacteável (na medida em que, efectivamente, ali estava eu de mãos cravadas nas imagens), mas “intocável”, inaprisionável, fugidio. Toca e foge.
No princípio, foram, por isso – mais do que os olhos –, as mãos. Mexer em vez de ver; o toque em vez do olhar. Um iniciático encontro com o cinema como arte plástica – atributo demasiado esquecido, de forma e com consequências distintas (embora imbricadas), por cineastas e crítica – que também é. Por essa razão é que só em visionamentos posteriores de Jour de fête me apercebi da como há uma cena em que o público da aldeia é filmado a assistir a um filme (terei eu nisso reparado enquanto apalpava as imagens? Eis uma mise en abyme muito avant la lettre…), ou de que é um miudito com a mesma idade do impertinente espectador dessa tarde no Nun’Álvares que abre e fecha o filme.
Eram também duas as mãos que, durante toda a minha infância, culminavam o romantismo insuperável – que permanece quando hoje revejo o filme – da minha sequência predilecta de Robin dos Bosques. Essa em que Robin e Lady Marian passeiam e se enternecem num bosque encantatório que nunca parece estar bem colado à terra, pedaço levitante e bêbedo de harmonia onde todos os animais ajudam, cada um como pode, à grande celebração [mais recentemente, num daqueles acessos instantâneos, pura livre associação de ideias-imagens, apercebi-me para onde me havia remetido, desde o primeiro momento, um plano de As Boas Maneiras (2017), embora, vejo agora, ele até se inspire mais directamente num outro título da Disney, Beauty and the Beast (A Bela e o Monstro, 1991)].
O meu baptizado no cinema foi, portanto, toda uma barrigada de cinefilia avant la lettre, um pequeno e insólito divertimento nesse fim-de-semana pelo meio da escola, da bola no pátio do prédio com o Tiago Grande e o Tiago Pequeno, do judo e da feira popular – a que costumávamos ir, por regra, ao sábado à noite (à data com morada no actual recinto da Queima das Fitas). Pelo que nada me diz que a essa tarde de sábado no cinema não se tenham seguido o comboio-fantasma e a casa de terror. Gosto de pensar que sim, que, tal como no filme de Tati, onde a sala de cinema é montada numa espécie de tenda de circo, também nesses idos dos anos 90 o cinema ainda conservasse alguma da aura de arte popular com que os Lumière originalmente o conceberam. Ingenuidade minha, claro.
Se era frequente o episódio dessa tarde do Jour de fête vir ocasionalmente à baila em conversas de família e amigos, seria muitos anos mais tarde que ele se me reacenderia no peito de forma aguda. Foi quando assisti a Persona (A Máscara, 1966) e vi aquele miúdo, provavelmente com a mesma idade do que eu naquele sábado à tarde, a aproximar-se da tela e a tacteá-la, apalpando, (in)alcançando a imagem: um rosto. Um pequeno estremecimento correu-me no corpo. O facto de, nesse plano de Persona, o rosto ser o da mãe fecha, para mim, o círculo, juntando-me a mim, ao meu pai e à minha mãe nessa tarde no Nun’Álvares.
III.
Talvez que esse primeiro e “manual” encontro de 3.º grau com o cinema explique a minha veia de coleccionador de stills de filmes com imagens de mãos. Ou talvez não, talvez que se trate de um velhíssimo fetiche cinéfilo. Fecho os olhos (deixo de ver) e lá vêm elas em catadupa, desenfreadas, desordeiras…: as mãos do pai a descascar a maçã no Banshun (Primavera Tardia, 1949) de Ozu; as sacro-engenhosas de Un condamné à mort s’est échappé (Fugiu um Condenado à Morte, 1956) e as tocadas pela Graça de Pickpocket (O Carteirista, 1959), cuja intrusividade em bolsos alheios é toda uma ímpia alegoria – veja-se bem a posição dos dedos indicador e médio do nosso carteirista… – da penetração sexual (sobretudo se a entendermos como o acto mediante o qual os amantes se “roubam” mutuamente, tomam como seu algo que é do outro, para-sempre guardam um secreto pedaço alheio que nem a vítima da usurpação conhece)… Mão que faz, ela mesma, fine bouche ao seu dono [Le sang d’un poète (O Sangue de Um Poeta, 1932) de Jean Cocteau]; a mão que segura o falo pelos cornos [mas qual Tabu (1982), Júlio Bressane…] e a outra que dá a ver da sua rear window um seio ao espectador [em Two Lovers (Duplo Amor, 2008), ele, Phoenix, “está no meio de nós”]…
Especialmente no departamento do amor, mãos são coisa que não faltará, naturalmente. Há-as para todos os (des)gostos: as secretamente cúmplices, embora por razões distintas, de You and Me (Sozinho na Vida, 1938) e de Jungle Fever (A Febre da Selva, 1991), e as que partilham juras de amor em forma de cigarro em I Know Where I’m Going! (Sei Para Onde Vou, 1945); as mãos finalmente consoladas de The Last Picture Show (A Última Sessão, 1971) e as votadas ao L’eclisse (O Eclipse, 1962) (ao abandono) de Antonioni…
E há ainda “a” mão – essa que, abrindo uma porta, fecha todo um portal para uma outra vida. A de The Bridges of Madison County (As pontes de Madison County, 1995), claro.
Mas também as mãos de Marcello Mastroianni em La grande bouffe (A Grande Farra, 1973), naquele que é talvez o exercício do tacto por excelência – o do desejo. Talvez, também, o mais memorável de que me lembro de ver no cinema. O que é particularmente notável nessa cena é o modo como ela investiga a tirania, a (des)ilusão, a (im)potência do desejo e do sexo. No início do filme, Mastroianni aproxima-se de uma estátua feminina desnuda e, contemplando-a silenciosamente, passa-lhe a mão sobre o rabo. Mais tarde, mais perto da morte também, pedirá a Andréa Ferréol para se despir e, em simultâneo, passa a mão esquerda sobre o seu rabo e a mão direita sobre o rabo da estátua. Qual deles o “melhor”? Qual deles o mais autêntico? O real ou o representado (que, particularmente nas coisas do sexo, é sempre o fantasiado, construção que pode ter alguma ou nenhuma adesão ao real)? O “verdadeiro” ou o “falso”? Qual deles, afinal, mais potencia o desejo e, sobretudo, qual deles mais alimenta a vontade de o concretizar, consumar, de o finalizar? A resposta não é unívoca e é dessa aporia – ou, arrisco, do facto da balança pender para a estátua… – que vem a categórica conclusão de Mastroianni: uma enorme gargalhada, um tremendo gozo consigo próprio e com a sua (nossa) ingenuidade e patetice. O fim orgásmico de todas as coisas a que se reconduz o sexo – mas que, veja-se bem, tanta luta, esforço e perseverança exige, grande máquina geradora de guerra e morte na história dos homens – é assim: curto e infantil, como a vida. Um sopro, um clímax e… já está. Era só isto? “LOL”, pensa Mastroianni para os seus botões…
Já tão diferentes as brutas mãos do mesmo Mastroianni em Dramma della gelosia (Ciúme, ciúmes e ciumentos, 1970), de Ettore Scola, pérola do pós-boom italiano (tão “boom” que é só lixo, entulho e ruínas por todo o lado, desde logo as do Partido Comunista Italiano). Mãos feridas, golpeadas, marcadas por obras e escombros, que Monica Vitti ternamente observa. “São mãos de trabalho”, responde-lhe ele, pedreiro doce e meio-tolo, na pizzaria onde o pesadelo se inicia (todo o filme, desde a cena inicial em que Mastroianni, qual belo adormecido, é acordado-beijado por Vitti, parece pertencer à ordem dos sonhos). Será também numa refeição que ambos colocarão, cheios de ternura, um calamar no anelar do outro, momento não por acaso interrompido pela entrada em cena, literalmente de um salto (como um intruso furtivo), de Nello, que se senta no seu meio…
Talvez que esse primeiro e “manual” encontro de 3.º grau com o cinema explique, agora mais decisivamente, o facto de eu gostar tanto das famosas fotografias nas quais Oliveira (still, neste caso), Truffaut ou Glauber Rocha imortalizaram o rectângulo mágico: duas mãos, quatro dedos, fazendo as vezes da câmara, definindo o enquadramento, o que entra e o que fica de fora; o olhar. Gesto particularmente forte, comovente, no caso de Oliveira, que o faz no Lisbon Story (1994) de Wenders enquanto explica a importância do cinema enquanto agente preservador da memória, logo, da vida (do sopro, do clímax…). Gesto que funde, afinal, tacto e visão: são as mãos que definem o que os olhos podem ver; são os olhos, emparedados (enquadrados) pelas mãos, que criam o olhar. É justamente o que faz Niccolò, personagem que encarna um realizador atormentado (doppelgänger mais ou menos óbvio de Antonioni), enquanto afaga o cabelo a Ida em Identificazione di una donna (A Identificação de uma Mulher, 1982). Um gesto de carinho e, simultaneamente, de observação dramatúrgica, mise-en-scène a acontecer ali mesmo, na vida, em “tempo real”…
Mas – nunca esquecer – são também as mãos e o que os olhos (não) vêem que definem todo um outro olhar, não menos importante. Aquele que inelutavelmente se projecta e forma o fora-de-campo (e, neste caso, de quem é exactamente o olhar? Apenas do realizador ou também do espectador?). O que está Niccolò a deixar de fora no enquadramento que faz de Ida? E o que deixa Antonioni de fora no enquadramento que faz de Niccolò a fazer o enquadramento de Ida?
Mas não apenas o tacto, naturalmente. Delas, das mãos, partem todos os outros sentidos. Tantas as vezes em que elas direccionam e apontam um lugar, um destino. Mãos que levam outras mãos e outros sentidos à boca: o beija-mão que trará o eflúvio e, quem sabe, até, o sabor por inteiro de um corpo; mãos que levam à boca a iguaria que deflagrará o paladar [o qual, tanto em Tess (1979) como em Cet obscur objet du désir (Este Obscuro Objecto de Desejo, 1977), suscita toda uma outra ordem de sabores e odores…] ou que, pelas suas concretas características, provoca apenas, antes mesmo de ir à boca, um enorme (e mental) amargo de boca – é o que acontece com o espinhoso, verdadeiramente maldito, ananás oferecido ao protagonista na última cena de Nazarín (1959) de Luis Buñuel. Mãos que trazem ao nariz o odor que desencadeia fundas, desconhecidas até, memórias a uma personagem, o mesmo que bem pode infligir, por si só, todo um novo rumo à acção do filme; mãos que escolhem a canção da jukebox (The Last Picture Show) e as que tocam, elas mesmas, a música que (não) juntará os amantes ou que dá o derradeiro sinal para um assassinato há muito iminente, como o de Fritz Lang em Spione (Espiões, 1928), por exemplo (“uma mulher e uma arma”, diria Godard).
Através da fotografia, mãos e olhos, tacto e visão, têm inclusivamente a capacidade, não só de despertar outros sentidos, como de remeter o sujeito directamente para a realidade física onde os mesmos têm existência (salto para uma sensorialidade, digamos, de 2.º grau), assim escapando ao seu amargo presente. Ao juntar as partes despedaçadas da fotografia do Arco de Triunfo em La mort en ce jardin (Labirinto Infernal, 1956) de Luis Buñuel, Castin (Charles Vanel) consegue, por breves segundos, evadir-se da selva, do “labirinto infernal”, e pisar as ruas de Paris: entrever os Campos Elísios, passar a mão pela fresca do lago dos Jardins das Tulherias, escutar a sua língua na terra-natal, saborear os pratos (quiçá sentindo mesmo água na boca enquanto vai definhando de fome extrema no meio de lianas e cobras) que tanto sonha servir no seu restaurantezinho em Marselha (uma bouillabaisse, uma soupe au pistou…). Da morte na selva (o muito falso, muito bíblico também, “jardim” do título do filme) para a vida da Paris-paraíso, derradeiro (e verdadeiro, agora sim) jardim do éden.
Noutros casos, pelo contrário, as mãos bloqueiam, impedem que os demais sentidos se cumpram: que se cheire, oiça ou, como em Mauvais Sang (Má Raça, 1986), que Julie Delpy olhe, apaixonada, o céu… Em Cet obscur objet du désir (veja-se como, desde logo pelo título, o desejo vem associado aos sentidos da visão e do tacto, enquanto massa dissimulada, fugidia, difícil de tocar, capturar, quiçá incorpórea), Conchita é uma pura negociadora de sentidos, retendo de Mathieu a grande e original fonte de todos eles. Mathieu, sôfrego e pateta, pede-lhe desesperadamente por um beijo (fonte simultaneamente de tacto e de paladar) por detrás das grades (literalmente falando, décor que se repetirá na noite da impiedosa vingança); Conchita, recusando e, acto contínuo, virando-se-lhe de costas, oferece-lhe outra coisa (outro sentido) em troca, o cheiro do seu cabelo. A ânsia de Mathieu é tanta, porém, que o olfacto não lhe chega, levando o cabelo à boca, beijando-o… comendo-o (voltamos ao paladar…).
Em casos mais agudos (ou na hipótese de mãos mais “compridas”), estabelece-se o meta-cinematográfico tête-à-tête com o espectador: ora no momento em que a mão de uma personagem oculta determinado elemento [um seio, um órgão genital, um ferimento, determinada mensagem ou sinal fulcral para o desenlace da trama, como a toalha prestes a corromper-se em La corruzione (Corrupção, 1963) de Mauro Bolognini], ora quando a “mão invisível” bruscamente visível se torna e intervém, despudoradamente, no filme [One Week (Uma Semana, 1920) de Buster Keaton) – quero dizer, na lente da própria câmara… In your face. A ocultação “manual” funciona, pois, num duplo sentido (intra e extra-diegeticamente, poderíamos dizer), impossibilitando o acto de ver quer às personagens, quer ao espectador – ou a ambos em simultâneo, nesta co-implicação do espectador no filme e na própria acção-visão das personagens sobressaindo o destino voyeurístico de todo o cinema, de que Rear Window (Janela Indiscreta, 1954) de Alfred Hitchcock é consabidamente exemplar.
IV.
Entrei no cinema às apalpadelas. Não como o espectador atrasado que entra no escuro com o filme já a correr e apalpa as costas das cadeiras, mas por ter sido com as mãos que primeiro… o vi. Ou dito de outra forma: estimulado pela visão, usei do tacto; vi as imagens, quis capturá-las. “Dieu donne sa lumière à qui il veut…” [diz o Corão, diz Kechiche em Mektoub, My Love: Canto Uno (Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro, 2017)]. Havia de ser a mesma experiência, o mesmo processo sensorial que, tanto tempo depois, me faria ver os filmes gravados em Super-8 pelo meu avô, tio, pai. O meu pai havia-mos mostrado uns anos antes, sem que então eu lhes tivesse prestado grande atenção. Com outros olhos, com olhos de ver, voltaria a esses filmes e, uma vez mais, estimulado pela visão, usei do tacto: peguei nessas películas com as mãos, filmei o reencontro, hélas, digitalizei-as. Como se usa de dizer, meti as mãos na massa – e nasceu um filme. Não tivesse sido o cinema nos seus primórdios, afinal, trabalho artesanal, feita a olho, como o oleiro que modela pacientemente o barro. Filmamos com os olhos – o grande olho que é a câmara – e com as mãos; montamos com os olhos e, mesmo na era digital (obviamente em termos muito diferentes), com as mãos.
Anos mais tarde após ter visto Persona pela primeira vez, um outro círculo, não tanto afectivo mas “gramatical”, fechar-se-ia também para mim: foi quando vi Scénario du film ‘Passion’ (1982), no qual Godard, de alguma forma, ligou os pontos na minha cabeça entre a memória do sábado no Nun’Álvares, o impacto do plano de Persona e… tudo o resto. Perante a famosa página em branco de Mallarmé [e como não ver em Godard o miúdo de Persona, ambos de costas, ambos figuras na (da) sombra usando das mãos perante o mistério da luz], perante a “praia incandescente” (o telão branco que tem diante de si), Godard começa por dizer que fazer o filme é um trabalho de escritor: escrever, com as mãos. Acabará por refutar a sua própria ideia inicial (e, por outras vias, a de Bresson): não, o cineasta não escreve, não se trata de escrever, mas de recevoir. “Rece-ver” (voir, de “ver”, e recevoir, de “receber”, no francês). Ao enunciá-lo, desenha uma importante nuance com as mãos: “Mais tu ne veux pas écrire“, diz enquanto replica o gesto de escrever com a mão direita; “Tu veux voir, tu veux recevoir“, esticando agora as mãos e virando-as de ambos o lados. Recevoir – com os olhos, sim, mas também com as mãos. É com elas que, nesta praia sem mar, criamos as ondas. Movimento.
Sempre tendemos a ver no cinema o reflexo da vida, ou o contrário: em nós, o reflexo das imagens e das histórias que elas contam. O movimento vaivém de recevoir: ver e receber; projectamos o nosso olhar sobre e, simultaneamente, somos o objecto, o receptáculo da luz projectada. Estamos sempre sobre e sob (como o gesto de Godard alternando as costas e palmas das mãos) a luz, as imagens.
Mimetizamos gestos e atitudes que vemos nos filmes, mas talvez eles estejam nos filmes porque alguém os viu primeiro nos homens. Será assim? Não creio. É bem possível que o cinema tenha uma natureza verdadeiramente demiúrgica: cria dramaturgias que, uma vez exercido o respetivo efeito magnético no espectador, se infiltram e diluem nos comportamentos do quotidiano. Ele é o grande e universal metteur en scène, aquele que mete-a-vida-em-cena – antes da vida ser… vida. Fazendo-o, porém, ele, cinema, não é a vida, sequer o seu reflexo; é já outra coisa, uma realidade distinta, autónoma, não necessariamente (ou de todo) paralela.
Foi mais ou menos este jogo de correspondências que também intuí no meu embate com o plano de Persona (não sei se ainda é desta forma que hoje o leio, contudo…). A correspondência, porém, é também de outra ordem, bem mais terra-a-terra: hoje, ditou o destino que eu viva a uns 100 metros do Nun’Álvares e que, já depois de para lá me ter mudado, me tivessem filmado à porta da antiga sala num filme-dedicatória para Abbas Kiarostami [lembro-me da perspicácia de alguém que referiu como a garagem, antiga gasolineira, que está paredes-meias com o antigo cinema parece saída da última cena de Les parapluies de Cherbourg (Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, 1964)…].
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“’No princípio, era o Verbo’… Porquê, Pai?” – é a pergunta que, em Offret (O Sacrifício, 1986), a criança faz ao pai (queiramos ou não ver nele algo mais do que a figura familiar…). Talvez se o meu pai um dia visse o título deste texto, me perguntasse também:
“No princípio, eram as mãos”… Porquê, filho?