Este novo génio do cinema independente propõe, na sua filmografia, mundos mais belos do que a realidade. O perfume encontra aí o seu lugar, fugidio ingrediente da sua poesia.

Terras imaginárias e coloridas, uma estética um pouco antiquada, simetria e planos subjectivos em picado, voz-off e canções francesas… O estilo de Wes Anderson é único e cheio de graça. A evocação do perfume faz parte destes elementos, temas ou figuras de estilo, que encontramos a cada filme. Por vezes fugazes, estes eflúvios cinematográficos são, todavia, recorrentes e não podem passar por meras coincidências. A filmografia do realizador é salpicada de personagens perfumadas, desde a pequena Suzy até ao ostentoso Gustave H.
Em Moonrise Kingdom (2012), Sam (Jared Gilman), jovem escuteiro em fuga, inala ostensivamente a atmosfera e faz um reparo à sua companheira, Suzy (Sara Hayward), afirmando que ela cheira a perfume. “É o da minha mãe”, responde ela. Procurando escapar à autoridade dos seus pais, a jovem rapariga de olhos maquilhados apropria-se dos atributos de sedução da mãe que ela pensa detestar: o perfume e a maquilhagem. Trata-se igualmente de um divertido piscar de olhos à sua falta de sentido prático: se, na sua fuga, os dois namorados se esforçam para não deixar qualquer vestígio, Suzy, no entanto, emana um rasto perfumado, ou seja, uma pista para o cão que os persegue. Trata-se do mesmo erro que colocará a polícia no encalço de Gustave H. em The Grand Budapest Hotel (Grand Budapest Hotel, 2014). Em Wes Anderson, para encontrar fugitivos, basta ter faro… Inversamente, em The Royal Tenenbaums (Os Tenenbaums – Uma Comédia Genial, 2001), o perfume serve de camuflagem. A taciturna Margot (Gwyneth Paltrow) perfuma a casa de banho onde fuma às escondidas, para dissimular o cheiro do cigarro; para, de certa forma, deixar uma pista falsa.
Fantasma de mulher
Em The Darjeeling Limited (2007), é num comboio no meio da Índia que Jack Whitman (Jason Schwartzman) descobre, na sua mala, um frasco de perfume da sua ex, escondido furtivamente pela sua jovem mulher, para que ele se lembre dela. O frasco, dispondo de um vaporizador pêra à moda antiga, tem um nome de sonoridade bem francesa, bem ao gosto do realizador: Voltaire #6, num evidente piscar de olho o N.º 5 da Chanel, com uma curiosa referência ao filósofo do iluminismo, a lembrar-nos que Wes Anderson estudou filosofia. “É ela!”, exclama Jack quando pulveriza o perfume na atmosfera: clássica situação de reminiscência e de amálgama entre uma pessoa e o seu perfume. Os irmãos de Jack, conscientes do perigo que este perfume representa para o seu moral, decidem, numa cena cómica, desembaraçar-se deste fantasma de mulher, partindo o frasco de perfume batendo-lhe com uma lanterna. O que, naturalmente, tem como resultado a saturação do compartimento com perfume – que, portanto, não desaparecerá tão cedo. Este odor simboliza a capacidade de esta mulher penetrar os pensamentos de Jack, de o assombrar aonde quer que ele vá: ela seguiu-o até Paris – na curta-metragem Hotel Chevalier (2007) – e persegue-o praticamente até à Índia.
Inspirações curtas
The Grand Budapest Hotel constitui o apogeu desta obsessão pelo perfume. A personagem principal, o concierge Gustave H., interpretado por Ralph Fiennes, é desde o início do filme descrito pelo jovem Zero Moustafa como “o homem mais generosamente perfumado que eu jamais conheci”. O seu perfume, L’Air de panache, é uma assinatura de que até mesmo o nome se torna testemunha da personalidade exuberante, sedutora e um pouco dandy do concierge. Panache[i], ora aí está o termo que define Gustave H. O seu perfume é apresentado como o seu único bem: um plano do seu quarto mostra um espaço despojado, totalmente impessoal, figurando, em primeiro plano, uma colecção de oito frascos. “O seu odor anunciava a sua chegada muito antes de ser possível avistá-lo e persistia vários minutos depois da sua partida”, acrescenta Zero. Ilustração imediata: no elevador que Gustave abandonou, o rapaz inspira ruidosamente aquilo que suspeitamos ser o rasto persistente do concierge, em duas inspirações curtas que constituem uma das formas encontradas por Wes Anderson para traduzir o odor no ecrã, um pouco como na banda desenhada.
Rapidamente a fragrância se torna indissociável desta personagem que se perfuma constantemente. A tal ponto que, no momento em que sai da prisão, a primeira coisa que pede é um perfume. Tem então o gesto firme de emprestar o seu L’Air de panache a Zero, partilhando simultaneamente aquilo que possui de mais precioso: a sua personalidade. Através deste gesto, ele adopta o jovem groom e, a partir daí, eles perfumar-se-ão em conjunto e de forma compulsiva, até mesmo nos montes cobertos de neve da República de Zubrowka, em plena perseguição policial.
Elegantes frascos de pêra
Wes Anderson, aquando da estreia do seu oitavo filme, aliou-se ao perfumista Mark Buxton e à loja parisiense Nose para criar uma edição limitada (e não comercializada) de L’Air de panache, tal como o havia imaginado para a sua personagem. Um perfume andrógino, abrindo com bergamota, manjericão, aldeídos e maçã verde (evocando o quadro do filme, Rapaz com maçã); com um centro de jasmim e de rosa; com um fundo chipre e almiscarado. Um odor saído directamente do ecrã, uma efémera encarnação de uma parte do sonho andersoniano.
Em Wes Anderson, o perfume é sempre uma presença, um vestígio. E, dado que este vestígio é invisível ao espectador, é necessário encontrar um meio de lhe dar vida. O realizador mostra então frascos elegantes – com pêra, claro está – ou personagens que inalam ostensivamente um rasto perfumado que apenas elas conseguem detectar. Por vezes, uma simples menção do perfume é suficiente para lhe dar corpo. E [são como] poesia estes perfumes imaginários, frequentemente evocados e jamais cheirados pelo público, como aqueles universos admirados e atraentes que os filmes constroem e nos quais não é verdadeiramente possível mergulhar, por muito forte que seja o nosso desejo.
Contrariamente ao que poderia suceder num cinema realista – um meio de se ancorar um pouco mais numa realidade quotidiana e reconhecível -, o perfume é aqui um elemento de construção de um outro lugar. Por isso, nenhuma das fragrâncias mostradas por Wes Anderson existe na realidade. Elas são indícios que estimulam o nosso imaginário olfactivo, nova dimensão sensorial que, inconscientemente, nos mergulha um pouco mais ainda na ilusão cinematográfica.
Clara Muller
Historiadora de arte que contribuiu para um vasto número de publicações, entre elas, a revista olfactiva Nez, para a qual escreve desde 2016 sobre a interacção entre literatura, artes visuais e olfacção.
«No rasto perfumado de Wes Anderson» (com o título «Dans le Sillage de Wes Anderson») foi escrito originalmente para a Nez, n.º 2, Outubro de 2016. A tradução, autorizada pela autora e publicação, é da autoria da walshiana Daniela Rôla.
O nosso agradecimento à autora e aos editores da revista.
[i] Em português, “classe”, “brio” ou “elegância”.