Num dossier cinéfilo dedicado aos sentidos, naturalmente que a visão e a audição tomam lugar de destaque por serem essas as dimensões de áudio-visualidade que compõem o cinema. O tacto é o sentido que se segue, dada a relação de ir-realidade produzida pela projecção, que convoca o desejo de toque, transformando a experiência fílmica em espaço de erotismo in-háptico. O paladar e o olfacto são relegados para terceiros planos metafóricos, a não ser que se considerem os baldes de pipocas como parte da materialidade cinematográfica. Mas este dossier foi, apropriadamente, intitulado “5 Sentidos (+1)“. A que se refere o extra? Os sextos sentidos sempre foram explorados nas mais diversas formas de misticismos, como capacidade “extra-sensitivas” de receber informação paranormal (quer através de sessões espíritas, quer através do propalado sexto sentido feminino, etc.).
No entanto, a medicina, logo a partir do início do século XX, percebeu que era importante encarar uma sexta habilidade agregadora de todos os cinco sentidos. Foi o patologista britânico Charles Scott Sherrington que cunhou e investigou a área da neurologia denominada de “Proprioception” (em português, propriocepção – por influência latina), descrito como “Percepção ou sensibilidade da posição, deslocamento, equilíbrio, peso e distribuição do próprio corpo e das suas partes” pelo Dicionário Priberam. Também conhecida por cinestesia (em inglês kinaesthesia – por influência grega), esta é a habilidade do sistema nervoso em interpretar os estímulos tácteis, visuais e do sistema vestibular (associado ao equilíbrio) que permitem ao indivíduo perceber e antecipar naturalmente os limites do seu próprio corpo. Por exemplo, é esta capacidade que permite toda a motricidade, postura e balanço. A compreensão deste sexto sentido daria a Sherrington o prémio Nobel da Medicina, em 1932.
Cinestesia não deverá ser confundida (segundo os linguistas) com sinestesia nem cenestesia. O primeiro desses termos remete para a “produção de duas ou mais sensações a partir de uma só impressão” e é igualmente uma figura de estilo que traduz a confluência de diferentes sensorialidades (“cheiro doce”, “voz macia”). O segundo significa o “sentimento vago que, independentemente dos sentidos, existe no nosso ser.” São, portanto, três termos que relacionam (e que se relacionam com) os vários sentidos, tanto para produzir uma percepção total a partir da relação com o exterior, como para descobrir combinações conflituosas ou produtivas de sensações, ou ainda para os sentimentos que existem alheados dos vários estímulos. São formas de (des)entender o meio e dele produzir sentidos sobre as possibilidades do corpo, através dele ou apesar dele. São estes os “sentidos” a partir do quais pretendo explorar a extra-sensorialidade da “auto-consciência corpórea” em alguns filmes (e instruções fílmicas) de Yoko Ono.
Os filmes que Yoko Ono realiza, essencialmente entre 1965 e 1971, enquadram-se, na maioria dos casos, na produção da segunda-vanguarda norte americana (ainda que uma parte significativa deles tenham sido rodados no Reino Unido, juntamente com John Lennon). De facto, a produção artística de Ono, até meados dos anos 1960, não incluía qualquer objecto fílmico, pelo menos não no sentido material que lhe associamos. A artista havia produzido essencialmente objectos e performances [1]. No entanto, sendo a sua prática incluída nos primórdios da arte conceptual (chegada do Japão, foi aluna de John Cage), muito do seu trabalho resulta de instruções para peças que não tiveram (nem têm), necessariamente, de ser executadas. Um livro surge como essencial do seu trabalho nesse período, Grapefruit [Toranja], publicado pela primeira vez em 1964, no qual se incluem vários “instruction films”, alguns deles que se relacionam com a sua prática performativa, outros que a artista haveria de realizar poucos anos depois, e outros que são mais projectos romântico-místicos irrealizáveis (outros ainda que se aproximam de uma espécie de vídeo-ensaio avant la lettre).
A palavra instrução reflecte bem a natureza simplificada e prática das indicações. Longe de um argumento cinematográfico clássico, estas são ideias rabiscadas num papel para pequenas acções para a câmara ou com a câmara (ou com a própria película). Como referiu a artista, anos depois, na republicação das instruções fílmicas de Grapefruit e de outras que registaria em 1968, todas as gralhas, incorrecções gramaticais e demais erros de escrita deveriam ser mantidos, para que se percebesse o contexto em que cada uma daquelas indicações havia sido produzida. Havia uma fúria produtiva, que queria apenas libertar-se das ideias, sem tempo para revisões, sem interesse pelo pormenor. Serve este contexto, para melhor integrar o cinema de Yoko Ono na prático dos “filmes estruturais” como os definiu o guru do cinema avant-garde norte-americano P. Adams Sitney [2].
Esta categoria do cinema experimental, em grande medida fundada pela incursão disruptiva de Andy Warhol no cinema, surge como consequência e resposta às duas outras que o ensaísta define: o filme lírico e o filme gráfico. Como explica Sitney, o cinema de vanguarda norte-americano, a partir de Maya Deren, caminhou no sentido da complexidade e do controlo maníaco de todos os elementos do filme, fotograma a fotograma. Com Warhol e os outros estruturalistas (Michael Snow, Holis Frampton, Paul Sharits, Ernie Gehr, Tony Conrad e, claro, Yoko Ono) os filmes passam a ter uma forma “predefinida e simplificada e é essa forma que marca a primeira impressão do filme” acrescentando que esses são filmes que “insistem na forma, e qualquer conteúdo que tenham é mínimo e resultante da estrutura.” É, deste modo, uma abordagem que se liberta do “perceptivo” para um “apreciativo”, sendo os tropos mais significativos desta categoria a posição fixa da câmara e a ausência de montagem (filmes de um plano só) ou a montagem mecânica e sistematizada (o filme de compilação).
Warhol dedicou-se ao cinema como forma de “paródia e redução” daquilo que já era um certo cânone da vanguarda americana (para mais tarde parodiar o cinema dos grandes estúdios). Como explica Sitney, na “inversão da tradição onírica” que é o seu Sleep (1964). Recusando a mitologia e a própria ideia de cineasta, este e outros dos primeiros filmes de Warhol reduzem-se a uma ideia de duração destituída de qualquer participação propriamente criativa (“ele fez da verborreia fílmica o centro dos seus primeiros filmes”, anunciando com gáudio a sua indiferença pela realização, direcção de fotografia e iluminação, “ele simplesmente ligava a câmara e ia-se embora”). Já a prática de Ono resulta tanto de uma continuação desse trabalho, como de uma oposição à sua atitude desinteressada. Aliás, alguns dos filmes da realizadora parecem surgir como resposta a outros de Warhol (tanto os concretizados, como os “instrutivos” e também os perdidos). Por exemplo, Kisses (1963), um filme de Warhol de uma hora com longos beijos, filmado em sucessivos grandes planos, de vários casais (de diferentes sexualidades e origens étnicas), parece ser ironicamente desmembrado por Ono em, primeiro, e pela forma, No. 4 (Bottoms) (1966), uma colecção de inúmeros e diferentes rabos, com a nádega esquerda no roça-roça com a direita, e no conteúdo, depois, em Two Virgins (1968, co-realizado com Lennon), em que os rostos beijoqueiros de Ono e Lennon literalmente se fundem (um com o outro e com a paisagem) numa massa pictórica de traços abstractos.
Outras respostas, mais ou menos indirectas, encontram-se em filmes como No. 5 (Smile) (1968) – uma versão pictorialista audiovisual do rosto e do estrelato de Lennon à imagem das serigrafias do pintor americano –, Film No. 6 (A Contemporary Sexual Manual: 366 sexual positions) (1964) – um filme de instrução em que a própria Ono esclarece, “mas isto não é Andy Warhol: em certo sentido isto é basicamente uma cena limpa, saudável e heterossexual sem o aborrecimento” –, Imaginary Film Series: Shi (From the cradle to the grave of Mr. So (1964) – uma resposta provocadora ao cinema da duração pela mera duração, um filme-retrato de 60 anos de vida de um homem que morre acidentalmente de diarreia – e, mais evidentemente, em Self-Portrait (1969, co-realizado com Lennon).
Este último, um filme perdido (acidental ou intencionalmente?), descrevia, segundo testemunhos, durante cerca de quarenta minutos, a “unaided tumescence and detumescence of his [John Lennon’s] member”, como o escreveu o crítico Philip French, que assistiu a uma das poucas (única?) sessões públicas do filme. O pénis de Lennon subia e descia por estímulos que, a existirem, ocorriam fora de campo, resultando, no final, “some sort of climax with a pearl-like drop of semen”. A resposta a Warhol parece evidente, sendo este o possível lado B (ou parte de baixo) do afamado Blowjob (1964), que se resumia aos esgares (de prazer?) de um homem, cujo rosto era enquadrado pelos ombros. Se Warhol, alegadamente, colocava fora de campo o acto do título, Ono faz o mesmo, mas em versão tântrica. Ono já havia intitulado uma outra obra sua, um objecto, de 1963, de Self-Portrait, um espelho guardado num envelope – ou seja, cada espectador ver-se-ia nesse auto-retrato de Yoko Ono. Self-Portrait nunca terá sido terminado, uma vez que a ideia de Ono era captar as reacções do grupo de críticos a quem mostrou o filme (onde se incluía French), e terminar o filme com a apresentação simultânea e síncrona dos “dois canais” num splitscreen (outra piscadela de olho a Warhol?). Este gesto fílmico de Ono não se fecha no simples auto-retratar-se nas oscilações do pénis do seu amante (já então marido), antes, na relação entre espectador e imagem, provando neste uma forma de reconhecimento do próprio desejo e uma exercício de alteridade, experienciando o desejo do outro (de Lennon por Ono e de Ono por Lennon). Tudo isto complexificado pela popularidade do casal, acrescentando-se assim uma dimensão de voyeurismo e de exibicionismo [3].
Este é a primeira e mais evidente da dimensão cinestésica (mas também, e em maior medida, sinestésicas) do cinema de Ono. Quando ela aponta a câmara para um corpo despido, fá-lo no sentido de, por um lado, ver e dar a ver algo que não podemos observar de nós mesmos (como num espelho), por outro, descontextualiza e fragmenta o corpo, atribuindo-lhe uma natureza objectual duchampiana. E aqui, de novo, se regressa às questões da percepção sensorial. Como explicou Stephen Koch, o processo de esteticização dos objectos através da mudança de ponto de vista do espectador levado a cabo por Marcel Duchamp pode ser encarado como uma metáfora para a “percepção dos coisas em geral e do mundo… É um importante processo modernista para criar metáforas, e um que é anti-romântico, uma vez que localiza as riquezas do mundo da arte não no ‘além’ baudelairiano mas no aqui e agora.” Isso acontece várias vezes no trabalho de Ono, logo a começar pelas experiências no âmbito do grupo Fluxus com a câmara de alta-velocidade de George Maciunas que permitia filmar a 2000 fotogramas por segundo: a primeira experiência, o próprio olho de Ono, piscando a um ritmo hiper desacelerado, em Fluxus no. 9: Eyeblink (1966), mas também a sua boca, como performer, em Fluxus no. 4: Disappearing Music for Face (1966) de Mieko Shiomi. Esta estratégia seria depois “retomada”, por Ono, no já referido Smile e em Freedom (1970) em que, de novo, Ono se coloca à frente da câmara, enquadramento sobre as suas mamas seguras por um soutien púrpura, e, em hiper-câmara-lenta, a artista tenta desabotoar a peça, terminado o filme no exacto momento em que o consegue – como escreveu Scott Macdonald, “É tão paradoxal, mostra-se a liberdade como a habilidade de se tentar soltar, o que implica que nunca se é realmente livre”.
Ainda no contexto da Fluxus, houve a primeira iteração dos rabos, em Fluxus no. 16: Four (1966), e depois, além dos já referidos filmes sobre rostos misturados, pernas e pés, pila em back and forth [4], há também, mais recentemente, Painting to Shake Hands (2012) – que marca o regresso da artista ao audiovisual (agora em suporte digital) nos moldes anteriores, se descontarmos os videoclips que realizou para a suas próprias canções nos anos 1980 e 1990. Filmado para exposição desse mesmo ano, na Serpentine Gallery, com base numa das indicações de Grapefruit, de 1964, com o subtítulo “painting for cowards”. Nas instruções explica-se que o dono de uma casa, antes de receber os seus convidados, deverá cortar um rasgão numa tela, passar a mão pelo rasgão e assim cumprimentar e fazer conversa de circunstância protegido pela brancura da tela. No vídeo, assistimos, num plano fixo onde a tela ocupa todo o enquadramento (como os rabos de Bottoms ocupavam toda a área de filme), ao cortar do tecido por um objecto perfurante que vem “do outro lado”, atravessando depois a própria mão da artista, que em gestos convidativos nos pede que lhe toquemos – há aqui qualquer coisa de Peter Campus e a primeira das suas Three Transitions (1973).
Este último vídeo, de novo, produz um efeito de dissonância entre uma parte do corpo e o seu hospedeiro, ao usar a tela como ferramenta de dissociação. A mão esteticiza-se não só por ser o objecto do filme, mas também por ser já, ela mesma, pictural. Esta tela é de pintura, mas é também de cinema (outra forma de sinestesia). A artista salta de trás para a frente da tela de pintar (literalmente, através do rasgão), permanecendo, agora, simultaneamente à frente da tela de cinema (é a sua mão, é a sua performance) e atrás, como realizador e como figura protegida pela outra tela (é a mão de Ono, mas podia ser doutra pessoa qualquer, a identidade está escondida).
Neste meta-jogo de suportes e medias, Ono mostra-se e esconde-se como as sensações se mostram e se escondem (e se confundem). E a isto acrescenta-se ainda o intuito de o vídeo ser instalado ao lado de uma tela, instalada no espaço da galeria, já rasgada, convidando o visitante a atravessar a mão pela fenda e aguardar a boa-vontade do e um outro, desconhecido (tela essa que pode, igualmente, ser “activada” por um performer externo). De certo modo, trata-se de um glory hole da cordialidade: não se sabe quem está do outro lado, há uma dimensão mista de segurança e de exposição (que se confundem), e o resultado é o contacto com o outro, despido de circunstancialidades sociais – uma mão que é apenas e só uma mão/uma boca que é apenas e só uma boca, etc..
O outro aspecto, próprio do vídeo/cinema, em Painting to Shake Hands é que agora Ono pode ver o outro lado da tela, como espectadora, e “cumprimentar” a sua própria mão. O mesmo é verdade para Eyeblink (os seus olhos podem ver o seu olho esquerdo, de frente), Disappearing (ver a sua boca), Freedom (ver as suas mamas). O cinema como espelho, que dá a ver as partes do corpo que os nossos olhos não alcançam. Não por acaso, o “audiovisual” é usado como forma de potenciar a propriocepção de atletas de topo, ao analisarem a as suas “performances” e assim perceberem melhor como se movimentam e como podem fazê-lo de forma mais eficiente. Vários dos trabalhos de Yoko Ono permitem re-enquadrar o corpo e dar a vê-lo tanto em novos contextos [5] como estimulando a sua dimensão icónica e universal [6].
Mas a (bi)dimensão da tela que Painting to Shake Hands convoca é, na verdade, uma das recorrências mais marcantes e significativas da obra de Yoko Ono, como um todo. A brancura é o tropo definidor da sua obra, e a tela branca, onde algo é colocado (nomeadamente texto, as mensagens dos visitantes, etc.), o veio que estrutura muito daquilo que fez ao longo dos anos. Naturalmente, tela branca é igualmente a pedra de toque do cinema. Só que, no cinema de Ono, como já aludi antes, a confusão entre tela de cinema e tela de pintura é desejada e procurada. Onde Smile é uma pintura em movimento ténue, o filme de instrução Film No. 3 (Ask audience to cut…) (1964) convida os espectadores/performers a cortarem, com tesouras, as partes da tela de cinema que exibem coisas que desaprovam/”don’t like”, encarando assim a tela de cinema como Miró encarava a de pintar, ou antecipando, pela via conceptual, algumas das experiências de filmes-performance de Shūji Terayama, nomeadamente Shinpan (The Trial, 1975) e Laura (1974).
No entanto, a brancura, nos filmes de Ono, não é tão presente quanto se poderia antecipar (entre a documentação estática de “acontecimentos”, hiper ralentis de partes do corpo em movimento e filmes de compilação, os seus filmes até podem trabalhar a extrema duração, mas raramente o despojamento visual). A excepção é Apotheosis (1970, co-realizada com John Lennon) – a semi-“concretização” do seu primeiro filme de instrução, Film No. 1 (A Walk to the Taj Mahal) (1964). Neste filme, onde a presença humana quase que desaparece, uma paisagem nevada impõe-se na sua brancura avassaladora. Um balão de ar quente carrega a câmara (e o som directo?) e atravessa um branco que se clareia cada vez mais, até que as nuvens envolvem tudo de forma avassaladoramente ausente. É um filme de duração sem qualquer montagem, à la James Benning (à la filme estrutural), onde o tempo transforma as mais pequenas variações em monumentais acontecimentos (outro tipo de performatividade…). Como já em Smile, a passagem fugaz de uma mosca diante da câmara se revela um extraordinário plot twist.
Mas o que Apotheosis mostra, do cinema de Ono, é a forma como, sempre e de formas indirectas, os seus filmes reflectem sobre o próprio meio que investigam, o cinema. A brancura das nuvens e a revelação do título materializam o espanto da própria experiência cinematográfica primordial. Mas antes disso, a obra da artista já criara as bases do seu “cinematógrafo metafórico”. Primeiro Fluxfilm no. 14 (One) (1966), também conhecido por Match, inaugurava a filmografia da realizadora com um fósforo que arde au ralenti: acende-se a luz, projectam-se as sombras, deliciam-se os olhos no crepitar da chama. Fósforo = Cinema. Depois, Eyeblink (1966) e o sentido da visão: o filme surge num piscar de olho ou, pelo contrário, existe totalmente nos momentos em que o olho se fecha – uma combinação, improvável do fenómeno entópico das formas que surgem aos olhos fechados de Stan Brakhage e o One Frame Duration (1977) de Iimura.
Depois Smile, e o seu antecedente Disappearing Music for Face, reencontram o cinema na boca (que sorri ou que perde o sorriso), como o “primitivo” The Big Swallow (1901) de James Williamson, também conhecido como A Photographic Confrontation, onde Boca = Cinema e Sorriso = Happy Ending. A boca faz e destrói o cinema, que, deglutido, sai pelos Bottoms (outras telas que, no cruzamento entre a dobra das pernas e o rego das nádegas, recompõem o enquadramento num quadruplo/quadrante splitscreen bambaleante).
E se estes são, quase sempre, filmes de plano fixo, quando há movimento nos filmes de Ono este é igualmente estrutural e estruturante: em Bottoms é um andar em frente que nunca sai do sítio, e em Up You Legs Forever (1971, co-realizado com Lennon – o remake falhado do anterior, segundo a própria realizadora) é um subir infinito que nunca chega à virilha. Filmes que apalpam e festejam o próprio corpo do cinema, que se tacteiam, numa descoberta do meio, das metáforas que o traduzem, no prazer de conhecer os recantos e os refegos do próprio suporte, no clímax da projecção onanista de uma arte fechada em si mesma (transposta num corpo igualmente fechado em si mesmo, perante a câmara).
Por falar em virilha, porque não falar dos divertidos e produtivos jogos de palavras criados por Ono, especialmente nos títulos? Se Match, o filme número One, já é um jogo de palavras (fósforo/desafio), várias obras seguintes trabalham esses mesmos desacertos linguísticos. A sua “exposição conceptual” no MoMA, em 1971, The Museum of Modern [F]art, reduziu-se a dois anúncios (no Village Voice e no The New York Times) divulgando a existência de uma exposição temporária que nunca existiu e da qual o MoMA não tinha conhecimento (e para a qual a artista produziu um catálogo composto uma série de fotografia que apresenta a artista, à porta do dito museu, com um frasco cheio de moscas, seguida da sua libertação pelos ares de Nova Iorque). Também por falar em moscas, Fly (1970, co-realizado com Lennon) é outro dos trocadilhos marcantes desse período, significando “mosca”, “voar” e também… “braguilha”. As moscas ressurgem em várias obras da artista, no final dos anos 1960, e são uma figura sinóptica do acto de olhar. Ono repete várias vezes a influência que um cartoon teve na sua obsessão por moscas: no desenho via-se um homem a olhar, ordinariamente, para o decote de uma mulher, e quando é questionado pela esposa sobre o comportamento, justifica-se, afirmando que estava a observar a mosca que se poisara no peito da outra senhora.
A mosca conduz o olhar; é pedagógica, e leva-nos não só a ver o que não esperávamos, como a dirigirmo-nos àquilo que não queríamos ver ou que tínhamos vergonha de olhar. Fly é um filme em que uma mosca (e, depois, muitas) percorre o corpo desnudo de uma mulher, apropriadamente creditada como Virginia Lust, dos pés ao rosto. O animal investiga cada porção de pele, com as suas patinhas, sempre filmado em enormes grandes planos que revelam apenas porções quase abstractas de corpo – ao estilo de Geography of the Body (1943) de (e com) Willard Maas (e também com Marie Menken – modelo, câmara e esposa). A mosca conduz a câmara pelas colinas sinuosas, convertendo a luxúria da nudez feminina numa espécie de contemplação de varejeira, mais próxima da autopsia criminal. Mosca = Cinema. Só que isso implica, em inglês que Cinema = Voar = Braguilha. Esta ironia poética, em que a beleza romântica só existe juntamente com o (ou em consequência do) grotesco, do banal, do quotidiano ou do pueril é a manifestação daquilo que de melhor se encontra no cinema neo-Dada de Yoko Ono.
Sendo filha (ou irmã, ou prima) dos movimentos da performance do pós-Guerra, tando do japonês Ankoku Butoh [Dança da Escuridão], encabeçado por Tatsumi Hijikata (e filmado por Donald Ritchie – sim, esse mesmo! –, o já citado Iimura e também Eikoh Hosoe), como do Accionismo de Vienna (documentado por Kurt Kern, Otto Muehl e, também, de forma diferente, por VALIE EXPORT), a relação de Yoko Ono com o corpo ficou marcada, no seu cinema, não tanto pelo lado sofrido com que os referidos movimentos trabalharam a gestualidade, mas pela plasticidade que atribuíram à pele, à mucosa e à relação destas com as várias excreções que o corpo é capaz de produzir.
Os filmes corporais de Ono, a que fui aludindo, decompõem o humano em pedaços mastigáveis, fascinando-se – essa é a palavra – com as possibilidades que cada parte carrega. Talvez a centelha de génio, no cinema de Ono, passa pela forma como a sua filmografia primeiro decompõe o corpo, para depois, na relação com os filmes, na sua cronologia, recompor esse esquisito cadáver audiovisual. A suma (e a soma) desse trabalho é um monstro de frankenstein com vida própria, e consciência da sua desfragmentação lacunar. Um monstro cinestésico. Ono produziu, literalmente, um corpo de trabalho que sente (e ressente/ re-sente) a própria dimensão, que conhece a sua própria dinâmica, que interage com as suas partes, que as coordena e balanceia, e avança, independente, para as mãos (e olhos… e tudo) ávidas dos espectadores que com ele podem dançar. Dancemos então, abraçados.
[1] Ainda que muitos desses “happenings” tenham/ou acabassem por ser filmados por outros cineastas, nomeadamente, por outro nipo-americano, Takahiko Iimura, na re-encenação, nos anos 1990, da “mumificação” de uma orquestra feita por Ono em 1965 – Fluxus Replayed (1991) -, por Motoharu Jônouchi em Hi-Red Centre Shelter Plan (1964) sobre o colectivo artístico do mesmo nome, mas também, por exemplo, a documentação dos irmãos Maysles da famosa performance, Cut Piece (1966).
[2] Que no monumental Visionary Film não faz qualquer referência à obra da realizadora japonesa – apesar desta ter frequentado os mesmos meios que ele, e partilhar várias das suas amizades, nomeadamente com Jonas Mekas, que a ajudou a conseguir o visto de residência em 1960 e que lhe “encomendaria” os filmes Up Your Legs Forever e Fly, sendo Jonas e Adolfas Mekas creditados pela montagem do primeiro.
[3] Note-se que este filme é do mesmo ano da manobra política e de auto-promoção Bed-in (igualmente voyeurista e exibicionista), que daria origem ao filme Bed Peace (1969).
[4] O filme com esse título de Michael Snow data exactamente do mesmo ano de Self-Portrait.
[5] A pluralidade de rabos recorda-nos que não há rabos “certos”, que todos temos rabos igualmente “errados”, bem longe dos padrões da moda, da publicidade e da pornografia, assim como dessacraliza os pudores com essa parte do corpo – Ono falou que este era um filme para lembrar que os anos 1960, além de um período de reivindicação política, foi também a “era do riso”, em consonância com aquilo que era a prática dos seus colegas da vanguarda japonesa, Iimura terá afirmado, por esses anos, que “fazer cinema é como fazer chichi ou cocó “, explicando, anos depois, que ” o underground pode ser avant-garde mas também pode ser uma actividade do quotidiano, como fazer chichi ou cocó. As excreções podem ser consideradas coisas tontas, mas uma pessoa pode apreciá-las se as olhar por um outro ponto de vista. Por exemplo, a Yoko Ono filmou, obsessivamente, rabos!”
[6] A ideia de Smile era recolher diferentes rostos sorridentes, de todo o tipo de pessoas, mas na impossibilidade financeira de o conseguir, Ono procurou no sorriso de Lennon uma universalidade que só é possível por uma paixão latente e pelo auxílio de drogas – “Estava tentar capturar a complexidade da experiência visual. Aquilo que vês, nesse filme, é muito semelhante à forma como observas uma pessoa quando estás em ácidos. Já tínhamos tomado ácidos juntos, e isso deu-me a ideia.”
Bibliografia
Jonas Mekas, «‘Yoko made two films for me’: at the cinema with John Lennon and Yoko Ono», The Guardian, 13 de Outubro de 2017.
Julian Ross, «Interview to Takahiko Iimura», Midnight Eye – Visions of Japanese Cinema, 30 de Setembro de 2010.
Philip French, «John Lennon’s rise and fall», The Guardian, 5 de Julho de 2009.
P. Adams Sitney, Visionary film: the American avant-garde, 1943-2000. Oxford University Press, 3rd Edition, 2002
Scott MacDonald, «Yoko Ono: Ideas on Film – Interview/Scripts», Film Quarterly, Vol. 43, No. 2, Winter, 1989-1990.
Stephen Barber, «Revold of the Body», Vertigo, Vol. 2, Issue 8, Spring-Summer 2005.