Quando a revolução chegou, o cinema no Irão deixou de existir durante quase quatro anos. Até as salas foram destruídas, queimadas. Embora quem realizasse filmes tivesse a liberdade de dizer e fazer o que queria. Isto não trouxe grandes resultados porque, em qualquer campo, só se consegue criar algo de verdadeiramente bom quando há limitações. Quando o governo voltou a financiar a produção de filmes, impôs uma censura muito rígida, sobretudo em relação à representação das mulheres. As dificuldades que os realizadores tiveram de enfrentar permitiram-lhes, contudo, aperfeiçoar a própria estética e melhorar as suas obras. No que me diz respeito, não sofri muito porque já tinha elaborado uma forma de auto-censura que evitava tratar temas que não agradavam ao governo. Seja como for, se nos meus filmes anteriores e posteriores à revolução não se registam mudanças foi porque as pequenas coisas que me interessam não mudaram.
Abbas Kiarostami
No filme que fechou a Trilogia do Terramoto, Zire darakhatan zeyton (Através das Oliveiras, 1994), Jafar Panahi foi assistente de realização de Abbas Kiarostami, um ano antes da estreia de Panahi nas longas, com Badkonake sefid (O Balão Branco,1995), escrito por Kiarostami e vencedor da Câmara de Ouro em Cannes, pelo que é inevitável associarmos o percurso dos dois cineastas. No entanto, é talvez mais estimulante olhar para a obra do discípulo como um contraponto da obra do mestre. Enquanto os cenários predilectos de Kiarostami se encontram no Irão rural ou nos arrabaldes de Teerão, Panahi optou por enquadrar os seus filmes, pelo menos no período em análise, em meio urbano. Apesar de os dois cineastas partilharem os temas (o papel da mulher no mundo árabe, as questões sociais, a angústia da infância), enquanto Kiarostami, tal como a vastidão das suas paisagens, concebeu filmes de teor inconclusivo e que convidam à reflexão, as obras de Panahi são mais comprometidas e fechadas. Também por isto, Kiarostami manteve-se a salvo das autoridades (apesar de alguns dos seus filmes não terem obtido autorização para serem vistos no Irão), enquanto Panahi, após apoiar Mir Hussein Mussavi, o candidato oposicionista, na eleição Presidencial de Junho de 2009, foi privado da liberdade e impedido de filmar, como veremos no diálogo com In film nist (Isto Não é um Filme, 2011), que se constituirá como centro desta abordagem, designadamente na segunda parte desta crónica.
É véspera de ano novo em Teerão, por entre trânsito de pessoas e de sons, de carros e sirenes, de vielas partilhadas por pessoas e motorizadas, uma mulher move-se em círculos, como se estivesse capturada por um circuito (uma geometria que perdurará na obra de Panahi, como figura da reclusão dos seus personagens), procurando algo que descobrimos ser uma criança, Razieh, a filha de 7 anos. A compra de um peixe dourado, à venda na loja, colorido e que parece dançar, constitui a ideia fixa, o desejo da rapariga de O Balão Branco, que a aproxima de Qassem, o protagonista de Mosafer (O Viajante, 1974) de Kiarostami, como vimos no artigo anterior. Ainda antes de Razieh sair para as ruas de Teerão, para ensaiar a sua autonomia, há uma cena reveladora do emparelhamento com o universo de Kiarostami e da exposição de uma sociedade patriarcal: enquanto a mãe coloca a roupa a secar no logradouro, com Razieh a suplicar-lhe pelo dinheiro para comprar o peixe, o pai, a partir do interior da casa, ordena ao filho que lhe vá comprar um champô, para pouco depois instar a mulher para que verifique o funcionamento do esquentador; finalmente, depois de acabar o banho, o homem pede à esposa que lhe traga uma toalha. A cena não adopta apenas as preocupações temáticas do autor do guião, o homem como representante de um poder tão oculto quanto poderoso e inflexível (numa ligação evidente com a teocracia do Irão), como lhe furta a forma, ao colocar o homem invisível (na cena e no resto do filme), como Kiarostami usou, por exemplo, em várias cenas de Le Vent nous Emportera (O Vento Levar-nos-á, 1999), ao colocar o protagonista em diálogo com as vozes de trabalhadores ou dos aldeãos, ocultos em buracos ou grutas.
Panahi acabará elevado a personagem da sua narrativa particular, engolido pelo seu corpo de trabalho.
A primeira longa de Panahi mimetiza, então, um mundo à escala da infância, adaptando as preocupações inscritas na Trilogia do Terramoto, com a criança a ser testada no percurso pelas ruas de Teerão – um desafio quase equiparável à grande viagem de Qassem em O Viajante – com os adultos a constituírem uma entidade que amedronta mais do que auxilia, em que a abordagem ao perigo e ao desconhecido se constitui como uma necessidade no acesso à aprendizagem, culminando com Razieh a perder a nota de 500 tomans que a mãe lhe entregara (e que correspondia ao montante que a família tinha para gastar nos presentes de fim de ano).
Um alfaiate discute com um cliente, a camisa não lhe serve, não aperta bem no colarinho; o alfaiate responde que a camisa está bem executada, o cliente é que tem uma cabeça estranha. Ao lado, Razieh está sentada junto a uma sarjeta, apensa a uma loja fechada, onde caiu acidentalmente a nota de 500 tomans. A discussão do alfaiate e do cliente estende-se para a rua e agarra a participação entusiasta dos transeuntes, imunes à agonia da criança. As cenas vão sendo pautadas ora pela tristeza e pelo choro da criança, ora pelos pontuais sinais de alegria no rosto da rapariga, quase sempre quando o irmão mais velho – o cúmplice e ajudante (outra incorporação das fábulas da infância de Kiarostami) – chega com notícias, do dono da loja, que talvez venha abri-la, conseguindo assim resgatar a nota.
Uma das cenas mais curiosas, junta Razieh a um soldado, que nos relembra Ta’m e guilass (O Sabor da Cereja, 1995) e a extensa sequência em que, através do dispositivo do jipe de Kiarostami, Badii conversa com um jovem recruta. Encontramos aqui as mesmas preocupações, na progressiva aproximação da rapariga ao simpático militar, para passar o discurso social, aqui menos cifrado: a princípio desconfiada, pois não conversa com estranhos, a rapariga diz que o pai tem dois empregos, um na companhia da água e o outro que não pode revelar, porque a mãe não deixa; o soldado confessa a saudade das duas irmãs, mas não pode visitar a família nas festas de fim de ano, pois não tem dinheiro para o bilhete de autocarro, nem para enviar presentes. Esta preocupação reitera-se em vários dos filmes dos dois cineastas, que apresentam o serviço militar como uma prisão, uma supressão de vidas, pois priva os mais pobres, por longos períodos, do contacto com as famílias, sendo que muitos deles, os oriundos de províncias rurais, revelam um deficiente entrosamento social nas cidades onde estão aquartelados.
Será outro rapaz, que vende balões, que resgatará a nota: os dois irmãos correm à loja e Panahi oferece o último plano à solidão da infância em dia de festa, um enquadramento simétrico com o rapaz do balão branco do título, no centro, onde estivera Razieh em grande parte do filme, plano este que produz um diálogo peculiar com a última sequência de O Viajante, com aquela panorâmica do tamanho de uma bancada de um estádio vazio, a escoltar a fuga de Qassem.
Razieh privada do estatuto de criança, do amparo dos adultos em O Balão Branco; um conjunto de mulheres presas a destinos, subjugadas em Ayereh (O Circulo, 2000); Hussein, protagonista de Talaye sorkh (Sangue e Ouro, 2003), dissolvido nas ruas de Teerão, inadaptado e humilhado; raparigas impossibilitadas de assistir a um jogo de futebol em Offside (2006). Panahi acabará elevado a personagem da sua narrativa particular, engolido pelo seu corpo de trabalho, encarcerado no domicílio em Isto Não é um Filme, aula de cinema, mas também exercício de reflexão e fantasia, questionamento das formas e maquinações do cinema: uma catarse da condição de cineasta, que constituirá a matéria para a próxima crónica.