Memória olfactiva. Meados da adolescência. Sala de cinema. A minha mãe deu-me dinheiro para ir ao cinema com um amigo. Chegámos cedo. A sala foi-se enchendo aos poucos. Ainda nos primeiros minutos de filme sinto um cheiro nauseabundo a invadir-me as narinas. Um gigantesco flato. Olho instantaneamente para o lado e o meu compincha confirma-me com o olhar: ele também o havia sentido. Como naquelas comédias onde o timing é certinho, olhamos os dois de imediato para a cadeira da frente. Um homem de grandes proporções parecia ser o suspeito. Minutos depois nova vaga de pum. Cheiro a couves, misturado com os efeitos visuais e sonoros do ecrã. Pensámos nesse momento em mudar de lugar. Impossível, o anfiteatro cheio. Sair? Além de termos de fazer levantar várias pessoas, não era certo que pudéssemos assim tão facilmente voltar noutra sessão. O que fizemos? Aguentámos. Se me perguntarem que filme era, não vos sei dizer. Apenas me recordo que o suspense da acção se havia deslocado do ecrã para a fila da frente: quantos minutos demoraria até ao próximo traque?

A razão por que me veio à memória este episódio ao ver Polyester (1981) de John Waters não terá sido tanto por este ser um filme assente nos aromas, no ecrã e na sala de cinema. Mas sim pelo facto do sistema que utilizava, o Odorama – uma espécie de raspadinha com vários números que o espectador ia raspando ao longo do filme, libertando diferentes odores que ilustravam os cheiros de várias cenas do filme – embora tenha sido uma curiosidade que funcionou à data da estreia, nunca teve nenhum tipo de seguimento expressivo no cinema. Quer dizer, talvez a razão deste Odorama não ser hoje comum nas salas de cinema mundiais seja a mesma pela qual eu não me recordo do filme que fui ver com o meu amigo, anestesiado e distraído que estava com aquela metralhadora de peidos. O sentido do olfacto real, no lugar da experiência física do cinema, teve o condão de distrair da obra, em vez de servir o almejado incremento da ilusão e profundidade da experiência de visionamento.
De certa forma, é natural que o cinema, aspirando a reproduzir a vida no seu movimento e detalhes, tenha sentido necessidade de suprir a visão com o estímulo de outros canais sensórios. Desde logo, quando o cinema era mudo com o acompanhamento musical e/ou efeitos sonoros ao vivo. Mas também a concepção do cinema como algo que, funcionando como síntese de todas as outras artes, fosse por excelência a encarnação do mito romântico alemão da gesamtkunstwerk, a conhecida “obra-de-arte-total”. Também a noção de cinema expandido tem em si contido um ideal de arte de futuro que, por exemplo, convocasse os vários sentidos ao mesmo tempo e tivesse uma ligação mais directa e imediata aos circuitos neuronais.
A experiência de Waters, ou anteriormente do filme Scent of Mystery (1960) de Jack Cardiff – em que se utilizou um sistema denominado Smell-O-Vision, no qual a sala de cinema era equipada com um dispositivo que libertava os odores em momentos precisos do enredo do filme -, procura tecnicamente essa continuidade entre a obra e os cheiros do seu universo ficcional. Contudo, esses esforços falham pelo facto de tecnicamente esses cheiros libertados não se produzirem de forma eficiente o suficiente para suprimir a experiência da sala que reclama o seu espaço, com os seus odores próprios.

No interessante ensaio The deferral of Smell: Cinema, Modernity and the Reconfiguration of the Olfactory Experience, os seus autores, Vinzenz Hediger e Alexandra Schneider, defendem que o cinema foi “instrumento de higiene pública” e “tecnologia para a criação de ambientes olfactivos controlados”. Para isso contribuiu historicamente o facto do cinema ter surgido ao mesmo tempo de um processo em que a modernização das cidades desodorizavam os espaços públicos e se produziam fragmentos artificiais (os perfumes) para a odorização dos espaços privados. Nessa lógica de controlo podemos perceber como as flores, por exemplo, ao adornarem muitas vezes as salas de cinema, contribuíam para uma lógica dos cheiros agradáveis no espaço edénico do cinema. Claro que desse mesmo controlo faz ainda parte a remoção dos cigarros das salas de cinema, cujo cheiro foi em parte substituído pelos odores da pipocas, dos refrigerantes ou simplesmente pelos incontroláveis eflúvios da multidão sentada diante do ecrã.
O cinema é, pelo seu poder representativo, o criador de uma autêntica enciclopédia de cheiros. Ou melhor, um catálogo dos odores agradáveis e permitidos e também dos repulsivos e proibitivos. De um lado, os planos dos objectos e das personagens que cheiram o aroma das flores, da comida, do ar puro, dos corpos daqueles por quem estamos sexualmente atraídos. Do outro lado, as expressões faciais contorcidas das personagens, os espaços e objectos imundos, os cadáveres e os excrementos cheios de moscas, os esgotos, as ratazanas, o vómito, o suor, etc. Tudo o que o cinema de terror, por exemplo, facilmente vem catalogando como os cheiros dos quais deveremos manter distância e remover imediatamente do espaço público.
Regressando a Polyester, o interessante, ainda segundo Hediger e Schneider, é que os cartões Odorama traziam para a sala de cinema alguns dos odores que o cinema vinha tão insistentemente proibindo, como o dos gases ou do chulé. A brincar dizia-se que finalmente Waters havia conseguido fazer um “stinking movie”. Mas, ao contrário de um caos absurdo e absoluto de obras anteriores [nomeadamente, a famosa Trash Trilogy: Pink Flamingos (1972), Female Trouble (1974), e Desperate Living (1977)] o filme de 1981 já tinha uma ambição de chegar a um publico maior. No belo texto Polyester: The Perils of Francine, Elena Gorfinkel explica precisamente que Francine Fishpaw, a personagem de Divine, a dona de casa abusada, se encontra entre dois homens que são de alguma forma símbolos da transição, na altura, entre dois John Waters diferentes: um, o exibidor de cheap films, e o outro, já com um pé no cinema mainstream e de arte.
Com essa ambição em mente, pode dizer-se que Polyester, além de ser uma homenagem ao universo dos melodramas de Douglas Sirk (e por extensão anda por aqui também o aroma de algum Rainer Werner Fassbinder, pelo lado corrosivo e amargo) e aos artifícios que William Castle criava nas salas de cinema em torno dos seus filmes, é também uma espécie de derranged americana. Temos uma americana católica, infeliz no casamento, com um marido que a trai, uma mãe que quer roubar-lhe o dinheiro, e dois filhos, um tarado e outra ninfomaníaca. Como em Sirk, a dona de casa encontrará uma falsa ilusão junto de um homem misterioso pela qual se sente atraída.
A lavagem do puritanismo americano triunfará numa subversiva redenção, no meio de todas as angústias e fétidos problemas: o filho torna-se artista, a filha especialista de macramé, e Divine acabará, nos últimos momentos do filme, a borrifar-se com uma latinha de purificador artificial Glade. Como se só empestando-se do aroma da artificialidade se conseguisse impedir o lifestyle suburbano de uma americana deprimida e patológica de revelar os seus verdadeiros aromas. Aromas esses que Waters nos pede para raspar e meter debaixo do nariz nos confortáveis assentos da sala de cinema.

O filme de Waters tem em si a riqueza de nos fazer tomar consciência da dualidade inerente à lógica do aroma. Numa das cenas finais, a mãe de Francine, quando revela as suas verdadeiras intenções, dá-lhe a cheirar umas flores e logo de seguida uns sapatos velhos. Noutro momento, anterior, a heroína vai apreciar um belo piquenique na natureza com a sua amiga, para logo ficar cheia de formigas nas cuecas e ser incomodada pelo cheiro nauseabundo de um guaxinim que se aproxima. Se essa é a estratégia do filme para desconstruir os bons aromas do sonho americano, porque não pensar nessa dualidade na relação do espectador com o espaço público do cinema? Talvez os cheiros parasitas da arquitectura das salas, pelo facto de minarem a ilusão do cinema, consigam dar-lhe, paradoxalmente, outra força. Um pé cá e outro lá, o espectador condenado a cheirar o que não quer, mas com a possibilidade de ver um outro cheiro, para o qual a sua mente “se desloca”.
E mais. Resolvemos pensar a relação das influências como um sistema de olhares, de influências, de citações que se cruzam. Mas, e porque não, pensar que Fassbinder, como Waters, snifaram o universo de Douglas Sirk? O mundo do cinema como uma paradinha dos olfactos, snifando o rabo uns dos outros, aspergindo nos seus próprios aromas (na sua casa) os cheiros vindos de uma outra casa, de um outro mundo. Esse seria também um desafio. Caracterizar o universo olfactivo de cada artista, e fazer do texto ou do ensaio crítico, uma raspadinha que o leitor/espectador cheirasse e exclamasse…
… hmmm, odor a Hitchcock.
… ai, tresanda a Wenders.