Numa das várias cenas em que a protagonista Marianne (Noémie Merlant) pinta sua modelo Héloïse (Adèle Haenel) em Portrait de la jeune fille en feu (Retrato da Rapariga em Chamas, 2019), a jovem sendo retratada não consegue parar de rir. E a pintora pede que ela se concentre, fique séria. Em seguida, num plano sem cortes, a diretora de fotografia Claire Mathon acompanha o olhar atento de Marianne enquanto ela caminha na direção de Héloïse, como se tentasse capturar melhor um detalhe qualquer da expressão da modelo, até que ela chega junto à jovem, corrige minimamente sua postura e, seduzida por sua beleza, termina por beijá-la.
Nesse plano-sequência, talvez esteja a síntese do filme de Céline Sciamma, em que olhar, criar e amar são uma coisa só. Uma ideia que parte da própria premissa do longa: uma mulher que observa a outra, em segredo, para pintá-la. E depois, quando não é mais um segredo, as duas reconhecem o olhar uma da outra, criam a obra juntas, e se apaixonam.
Mas não se trata simplesmente de uma história sobre o olhar. E, sim, sobre quem olha, quem tem o direito de olhar, e por que olha. Numa outra sequência em que Héloïse posa para Marianne, a pintora descreve vários trejeitos de sua modelo para provar como seu olhar havia observado e capturado os mínimos detalhes da personalidade dela. Héloise, no entanto, recusa-se a ser um mero objeto de observação e, em resposta, lista uma série de gestos e comportamentos que ela também havia notado em Marianne. “Quando me olhas, quem pensas que estou a olhar?”, retruca a jovem modelo.
Trata-se de um momento fundamental da narrativa, não apenas por sua importância na alteração da dinâmica do filme a partir dali – após a fala de Héloïse, a montagem corta pela primeira vez para um plano subjetivo da personagem, revelando seu ponto de vista e colocando Marianne no lugar de observada. Mas, principalmente, porque evidencia essa ideia central no cinema de Sciamma: o olhar.
“Isso explica todos os seus olhares”
A primeiríssima imagem de Retrato é um plano subjetivo, de uma jovem aluna de pintura diante de sua tela. No filme, há sempre alguém olhando. E em todos os longas da realizadora francesa, as protagonistas são personagens que não simplesmente olham, mas que observam com o objetivo de reencenar ou reproduzir aquilo que veem. Em Naissance des Pieuvres (Lírios D’Água, 2007), a jovem Marie (Pauline Acquart) observa e se torna quase obcecada por Floriane (a mesma Adèle Haenel) porque deseja fazer parte da equipe de nado sincronizado capitaneada por ela. Já em Tomboy (Maria-Rapaz, 2011), a pequena Laure (Zoé Herán), de 10 anos, observa os garotos da rua – como eles andam, como jogam bola, como cospem, como interagem – para repetir cada um desses gestos de forma idêntica, construindo sua nova identidade como o garoto Mickael. E em Bande de filles (Bando de Raparigas, 2014), Marieme (Karidja Touré) se junta a uma gangue de meninas de seu bairro, observando e gradualmente imitando as novas colegas, passando a se vestir, agir e falar como elas.
Retrato não é diferente dessa fórmula. Marianne observa Héloïse porque deseja reproduzi-la na tela. O longa, porém, é a primeira vez na filmografia de Sciamma em que esse ser observado retorna o olhar. Héloïse não é uma mera musa, mas alguém que também tem um olhar. E isso fica claro logo na sua entrada em cena. Até sua primeira aparição, Retrato é um filme fechado, sombrio, chuvoso e escuro, passado quase todo dentro daquele castelo, sem nenhuma ou pouca luz. A introdução da jovem modelo marca não apenas a saída para o exterior e para o claro, mas de certa forma, a chegada do sol no filme: a atriz Adèle Haenel é filmada de costas na sequência e, quando o capuz de sua capa cai, seu cabelo loiro preso num coque é visto pela câmera subjetiva, do ponto de vista de Marianne, como o sol que irá iluminar sua criação. Mas logo em seguida, Héloïse se vira e olha diretamente para a câmera, e para a pintora: ela não é só uma bela inspiração, é também um olhar, uma esfinge: “decifra-me ou te devoro”.
Porque olhar é mais do que ver. Olhar é ver com propósito. Por sua própria natureza, o cinema talvez seja definido primordialmente pela visão. Mas um cineasta que simplesmente vê é cego. Ou não é um cineasta. Porque o cinema é, na verdade, a arte do olhar. E no diálogo criativo e amoroso de Retrato, Sciamma mostra que olhar não é simplesmente enxergar. Olhar é amar. Olhar é criar, ter o direito de criar, e não somente ser criada. Olhar é ser olhada de volta, ser reconhecida como alguém que olha. É ter uma voz e um ponto de vista. Olhar é ouvir uma música, identificá-la e se sentir tocada por ela. Ver é sentar na praia em frente ao mar. Olhar é entrar na água e aprender a nadar.
“Regardez-moi”
Tenho 36 anos e, desde os 14, quando comecei a trabalhar numa videolocadora (rip), sou o que muitos considerariam um cinéfilo. Vi muitos filmes. Mas não sei quanto tempo demorou até que algum desses filmes me desse o direito de, ou me convidasse a, olhar. Sei que houve alguns momentos, no meu primeiro encontro com Almodóvar, ou em Y tu mamá también (E a Tua Mãe Também, 2001), ou ainda na primeira sessão de Brokeback Mountain (O Segredo de Brokeback Mountain, 2005), em que senti uma espécie de desarranjo físico, como se todos os meus órgãos estivessem mudando de lugar. Porque aqueles filmes não simplesmente enxergavam meu olhar, eles o convidavam a participar do jogo. E a quem, historicamente, o cinema fez esse convite e deu o direito de olhar?
É por isso que, logo no início de Retrato, Marianne pula no mar para resgatar suas telas. Na rígida e patriarcal França do século XVIII, aquelas telas são seu direito de olhar. E o curioso é que, na verdade, ela só vai descobrir esse olhar no encontro com Héloïse. Na cena da apresentação do primeiro – e malsucedido – quadro, a modelo pergunta à pintora se “é assim que você me vê?”. Ao que Marianne responde que existem regras de composição e de pintura. Só que essas regras foram todas criadas por homens.
É só quando a pintora escuta, e atende, o apelo de sua modelo – “regardez-moi” – que ela vê seu olhar retornado, refletido. E descobre, nesse momento, que tem um olhar. Seu. Próprio. Uma dinâmica que Mathon representa num plano logo no primeiro encontro das duas que referencia diretamente o Persona (A Máscara, 1966) de Ingmar Bergman. Marianne se conhece e se descobre no encontro com Héloïse.
“Todos os amantes sentem que estão criando algo novo?”
E esse encontro é amoroso e criativo porque, em Retrato, (o direito de) olhar, criar e amar são uma coisa só. Um não existe sem o outro, e está sempre alinhavado no outro. Na cena em que Marianne toca o trecho d’As Quatro Estações” de Verdi para Héloïse, criando, o fogo que representa sempre o amor das duas está no fundo do plano, a queimar. Esse mesmo fogo vai crescer até um ponto de ebulição na cena do canto das mulheres (outra presença da criação artística) na praia, chegando a consumir literalmente uma delas e culminando no primeiro beijo logo em seguida. E mesmo ao fim, quando as duas fazem “a escolha do poeta, e não do amante”, com Héloïse presa e martelada na moldura de seu quadro, o amor do casal permanece eternizado na arte que elas criaram. Nas palavras do poeta René Char, “o poema [a arte] é o amor realizado do desejo que permanece desejo”.
Na impossibilidade a longo prazo do romance das protagonistas, o cinema é simplesmente a droga que “fez o tempo durar mais”. Contudo, mesmo que o romance não dure, o amor – e a emancipação que ele traz – permanece. Se Marianne se dirige àquela ilha com o objetivo de pintar uma mulher, ali naquela Themyscira temporária ela vai descobrir o que é ser mulher: ter cólicas menstruais (quantas vezes uma personagem pôde ter isso no cinema?), abortar, se quiser, e ser completamente capaz de existir numa ilha sem a ajuda de nenhum homem. Não por acaso, o quadro que as três personagens centrais criam, sem a encomenda ou demanda de ninguém, é uma reencenação do aborto da criada Sophie (Luàna Bajrami): para Sciamma, isso é o retrato do que é ser mulher. Assim como o plano em que a realizadora e Mathon recriam uma “Santa Ceia” feminina, com Marianne servindo o vinho, Héloïse picando batatas, e Sophie fazendo seu crochê.
E num espelho do que ocorre na história, Sciamma descobre, ou revela, seu olhar nesse universo de mulheres que, mesmo por um breve intervalo de tempo, olham, amam e criam sem responder a nada nem a ninguém. Porque seu “female gaze” não pressupõe apenas seu olhar por trás da câmera, ou que sua diretora de fotografia seja mulher. Pressupõe personagens que olham e um(a) espectador(a) disposto/preparado(a) a olhar. Seja olhar para um quadro e reconhecer a página 28 aberta no livro. Seja olhar para uma apresentação d’As Quatro Estações de Verdi e chorar por causa de um amor que, ao mesmo tempo que não tem mais, ela(e) carrega para sempre dentro de si mesma(o) a ponto de transbordar dos olhos. No seu (belo) plano final, Sciamma vira sua câmera para nós, no escuro da sala, chorando, amando e completando a criação dela e de suas personagens. Ao olhar, nos apaixonamos.
Daniel Oliveira
Mestrando em Cinema pela Universidade da Beira Interior e crítico autoexilado, filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci.