The Sopranos (1999-2007), temporada 6, episódio 17 intitulado Walk Like A Man. Anthony “AJ” Jr. Soprano, o filho da família central, passa os seus dias letárgicos no sofá a ver televisão porque não consegue esquecer Blanca, a sua namorada porto-riquenha que lhe abriu os olhos a um mundo muito maior e politicamente bem mais complexo que o microcosmo italo-americano privilegiado de um bairro upper middle class em que sempre viveu. A sua mãe, Carmela, cujas religiosidade e hipocrisia lhe permitiram finalmente fazer as pazes com o marido Tony, godfather mafioso do New Jersey e incorrigível mulherengo, tenta animar AJ oferecendo-lhe uma dessas comidas de que tanto gosta e com que se tem deleitado desde o princípio da série (pizas, cachorros, batatas fritas, gelados com variadíssimos tipos de toppings, etc.). Ao que o filho de Carmela e Tony, que o desgosto sentimental e a leitura de Nietzsche, Yeats e A People’s History Of The United States de Howard Zinn transformaram numa espécie de flegmático filósofo neo-existencialista (“What’s the point?” é o seu lema aforístico) responde com provocação, pois sabe que toca um tópico muito sensível no universo dos Sopranos: “I know this is hard for you to believe, but food may not be the answer to every problem.” Doze episódios antes, a ovelha negra da família Sacrimoni, anoréxica condenada a viver entre monstros obesos que por vezes isolam-se na cave do seu palácio para se drogarem freneticamente com quilómetros de doces e chocolates, já tinha lançado um estrondoso grito de raiva: “Jesus, can we ever talk about anything in this family besides food?!”

As reacções de Anthony Junior e da filha de Johnny e Ginny Sacrimoni soam quase como reacções “meta” de espectadores da própria série, em relação à obsessão do showrunner David Chase e de The Sopranos pela comida e pelas cenas em que se vêem personagens a comer. As sequências à mesa e o tipo de alimentos que é servido funcionam como rituais e marcadores temporais, que integram o passar do tempo e dos anos numa estrutura cíclica (pequeno almoço-almoço-jantar ao nível micro, ou ao nível macro o regresso por exemplo do outono e do inverno, cada um simbolizado pela presença de um peru à mesa, primeiro na altura de Thanksgiving e depois na altura do Natal) e inúmeras cenas decorrem em restaurantes, bares, cafés, ou ainda lojas onde comprar comida – não é por acaso que Tony Soprano e a sua crew têm dois quartéis generais: um bar de strip e um talho, ambos ligados ao consumo de carne, seja ele literal ou metafórico. A diversos momentos, a histerização das elipses e dos cuts transforma além disso certos episódios em simples sucessão de refeições, em que vemos Tony engolir dois, três jantares, ir quatro vezes ao mesmo restaurante, ou beber duas garrafas de whisky, e com elas mais dez cocktails, sem que se possa determinar se tudo isto acontece num dia ou mais, e sem que esse banquete perpétuo e esse corpo de James Gandolfini, que interpreta a figura principal e vai ganhando cada vez mais peso ao longo das temporadas, não apareçam como sinonímicos de um mórbido sobreconsumo made in USA.
Neste aspecto, a questão do paladar poderia parecer a priori ausente de The Sopranos, pois essa lógica de sobreconsumo bolímico deixa pouco tempo e espaço às personagens para apreciarem ou até identificarem qualquer sabor (quando é autorizado a beber champagne com os pais, Anthony Jr. bebe o copo de uma vez, como se tomasse água ou outro líquido insípido qualquer). A declaração da filha dos Sacrimonis leva contudo a tomar em conta um elemento fulcral e estrutural da série, que vem complexificar e problematizar a relação à comida e ao paladar, contrariando ou atenuando o drástico sobreconsumo aparente: o facto das figuras centrais não serem somente figuras que comem, mas serem figuras que falam, que falam frequentemente de comida (quantos gargantuescos provolones, philly steaks, shrimp and lobsters, calzone, bialys, tequilas, scotch, vodkas ou white russians são mencionados nos diálogos?!) e que gostam de falar sobretudo quando estão à mesa. Construída à volta das sessões de terapia de Tony frente à psiquiatra Jennifer Melfi, em que a palavra serve a interromper as acções do dia-a-dia do criminoso e a interrogar as suas implicações morais, criando ou cavando um espaço temporal mais lento e longe da imediatez da vida, a série caracteriza-se pela sua extraordinária inventividade linguística e pela logorreia permanente das suas personagens, segundo uma lógica de oposição entre o mundo da psiquiatria e o mundo das food and beverages. Enquanto que no gabinete da Dra. Melfi, o jogo de palavra puxa palavra controlado pela médica tem por objectivo clarificar as situações, os desejos, os sentimentos, as angústias de Tony, perceber as origens reais e/ou fantasmáticas das suas crises de pânico e conseguir assim compartimentar, desconectar, separar o que pertence a eros, o que provém da sua história familiar e o que nasce das suas actividades mafiosas, a palavra libertada e incontrolável da personagem principal e dos seus homens à mesa, nos diversos almoços e jantares que parecem durar uma vida inteira e prolongam-se para melhor resistir às elipses e aos cuts, cria também um espaço temporal privilegiado, fora do consumo amnésico habitual e do ritmo frenético da existência contemporânea, mas onde hibridação e mistura dos registos e dos géneros – ou seja os efeitos humorísticos – são privilegiadas.

Os dois mundos espelham-se sobretudo porque partilham uma mesma obsessão pela sexualidade, obessão pouco estimulante e afrodisíaca no primeiro caso, em que as considerações da psiquiatra põem o sexo à distância e proíbem de considerar o desejo de Tony por Melfi como real e não como o resultado de uma transferência psicanalítica clichée, euforizante no segundo porque responsável de uma erotização generalizada pela qual fala-se da comida e mostram-se refeições como se falaria de sexo ou se filmariam cenas proíbidas a menores. O close-up sobre a boca de Carmela, que deleita-se da hóstia oferecida pelo seu confessor e amante platónico, tem tudo de um plano de fellatio; Tony e a sua mulher descobrem um novo e requintado restaurante japonês que apimenta a sua relação e a que se referem como se se tratasse de uma nova posição sexual ; o episódio Boca da primeira temporada (o “Boca” do título designa ao mesmo tempo a cidade de Boca Raton na Flórida e a boca de um parceiro que faz cunnilingus ou que kiss and tell) estrutura uma rede de correspondências entre o sexo feminino, antipasti e um magnífico bolo de sobremesa. A originalidade e a excepcionalidade do sabor de uma iguaria ou de uma refeição só podem assim ser avaliadas segundo uma grelha de leitura erótica, estando atento à sensualidade dos gestos, à forma como o alimento foi aproveitado, se foi consumido lentamente e com calma e não rapidamente de maneira onanística ou pornográfica, ou até se certas exclamações ou palavrões, indícios de prazer, acompanharam a degustação – assim sendo, nos Sopranos, a melhor prova que um jantar soube bem é a quantidade e o nível de ordinarice das piadas porcas que ocasiona (a quantidade e a violência das piadas ad hominem provam pelo contrário que a refeição foi extremamente mecânica e tributária das rivalidades mafiosas e do business da morte).
Cabeça (a psicanálise) e corpo (a comida) confrontam-se na série através do dueto entre Melfi e Tony, e com eles defrontam-se dois meios socio-culturais: apesar de serem ambos italo-americanos, a psiquiatra pertence a uma elite cultural, ao invés do seu paciente que cresceu nos bairros pobres. Como em Nietzsche, que teorizou essa bela ideia da “grande saúde”, ou nos filmes de João César Monteiro (adepto de um cantor que se autoproclamou “mestre da culinária” e muito fez para a erotização das nossas travessas), o corpo tende a triunfar. Educado não tanto a pensar ou a ver a realidade como os mafiosos do New Jersey mas a perceber o sabor que têm para eles os alimentos que consomem e sobretudo o sabor das palavras que utilizam quando os mencionam (todos sabem desde a difusão da primeira temporada que capicola tem mais pinta pronunciado gabagool), o paladar do espectador é lançado num vertiginoso devir graças ao qual chega quase a perceber qual é o sabor do mundo para um Italo-americano do New Jersey oriundo das classes mais modestas[1].
Uma das maiores lições de The Sopranos e da modificação de paladar que impõe ao seu público é uma lição à la Antonio Gramsci em relação ao eventual elitismo intelectual do próprio espectador. Se ao contrário da cerebral Melfi que as conhece e domina de cor e salteado, as figuras centrais muitas vezes não conseguem pronunciar como deve ser certas referências literárias ou culturais – Bobby confunde Quasimodo e Nostradamus, AJ diz “Nitch” em vez de “Nietzsche”, o pai dele diz “Captain Tibbs” em vez de “Cap d’Antibes”, “Goyim” para “Goya”, ou fala de “mofo” quando tenta explicar o conceito surrealista d’amour fou –, a genialidade da série e do seu trabalho sobre a palavra e texturas sonoras e gustativas consiste em levar-nos a nos dar conta do sabor extraordinário, superior, e da riqueza calórica de uma expressão como “mofo”, em relação ao insípido e robótico “amour fou” dito por Melfi com um perfeito mas impessoal sotaque francês. Concretizando o desejo de Nietzsche, que dizia no Anticristo não gostar do Cristianismo porque sabe mal, em The Sopranos, o corpo julga – e não a cabeça – através dessa arma de selecção e de posta à prova dos valores que representa o paladar, único juiz capaz de determinar se um alimento, uma palavra, um conceito, uma situação, uma realidade, sabem bem, sinónimo de uma capacidade a serem digeridas e transformadas em energia vital e ivresse, ou se, como acontece quando absorvidos por muitos burgueses e intelectuais, vão pesar nos estômagos e nas mentes e impedir qualquer elevação.

No seu Abécédaire, conjunto de conversas com Claire Parnet em que desenvolve o seu ponto de vista acerca de noções organizadas de forma alfabética, Deleuze explica que o desejo mobiliza “essentiellement des agencements” – nunca desejamos uma pessoa ou um objecto per se mas sempre com eles uma circunstância, um cenário, um momento do dia, um raio de sol ou a luz de uma vela. Ao conectar libido e tudo o que diz respeito à comida, a série televisiva de David Chase revela que o paladar e o sabor encontram-se eles também sempre dependentes dos agenciamentos em que estão envolvidos. No extraordinário episódio Commendatori, da segunda temporada, variação iconoclasta à volta de Viaggio in Italia (Viagem a Itália, 1954) e de um dos trechos de Paisà (Libertação, 1946) de Rossellini, Tony vai a Nápoles com dois dos seus capos. É só após o agenciamento profissional que tinha imaginado ter falhado – em vez de jantar com o padrinho da Camorra, janta com um subalterno arrogante, e acaba por descobrir que o Godfather napolitano está senil – que surge de repente um exaltante agenciamento libidinal e gastronómico: o almoço improvisado num pequeno restaurante perto da praia com a filha do chefe da Máfia, Annalisa, em que a baía de Napoli em background, o som do mar e dos elementos naturais, a beleza da actriz que interpreta Annalisa e o erotismo dos seus gestos encarregam-se de exprimir a frescura e o sabor incomparável dos camarões e do vinho branco que partilham. Em Proshai, Livushka, episódio do princípio da temporada seguinte, que conta a morte da mãe da figura central e acaba com um plano de Tony desatando a chorar frente à sequência final de The Public Enemy (O Inimigo Público, 1931) de Wellman, o agenciamento pela montagem entre a cara de James Gandolfini, as imagens de Wellman reduzidas ao tamanho miscrocópico de uma televisão e um plano anterior em que Carmela bebia amaretto e não conseguia esconder o ódio que continua a sentir pela sua sogra falecida, traz à boca a imensa amargura de uma vida vivida sem qualquer amor maternal.
De certa forma, The Sopranos desenvolve a partir daí uma profunda reflexão “meta” acerca da particularidade do modo operativo do paladar no cinema e nas obras televisivas. Como na famosa cena de The Matrix (1999) dos irmãos Wachowski, em que Cypher, interpretado por Joe Pantoliano (Pantoliano que entra nas temporadas 3 e 4 da série de Chase) questiona a realidade do sabor do bife que está a comer ou no fabuloso The Master (2012) de Paul Thomas Anderson em que a cor amarela da bebida, as imagens do oceano e da pequena cidade de Lynn, Massachussetts, o canto de uma rapariga de dezasseis anos e palavras escassas (“Doris”, “flowers”, “navy blues”) têm por missão dar-nos a provar o misterioso moonshine alcoólico preparado por Freddie Quell/Joaquin Phoenix[2], nos Sopranos, o paladar, ao contrário do que acontece na so called “vida real” em que dispomos de uma informação gustativa, seja ela errada ou imaginária, passa exclusivamente por uma rede de elementos a priori isentos de sabor, em consequência da ageusia (e anosmia complementar) quase ontológica do fílmico. Esses elementos – cores, formas, acessórios, décor, palavras, expressões faciais, gestos e barulhos, luz, ritmo, montagem… – interligam-se e combinam-se para melhor produzirem, nos corpos pensantes e imaginantes dos espectadores, sabores desconhecidos e nunca antes provados: o whisky servido mil e uma vezes em copos industriais e tragado rapidamente na escuridão suja do stripclub Bada Bing nada tem a ver audiovisualmente com o scotch caríssimo que saboreia Tony no bar chic em clair-obscur de um hotel de luxo em episódios oníricos do princípio da última temporada, cuja marca mencionada (Glenlivet) efectua a transubstanciação da bebida beige em autêntica ambrosia líquida; mas se provássemos ambos, talvez não sentíssemos diferença nenhuma.

Claro que os agenciamentos audiovisuais-gustativos têm um trajecto e um destino particular no âmbito de uma série televisiva, quanto mais numa série como The Sopranos que exacerba a repetitividade inerente à sua própria forma e submete ao eterno regresso os mesmos alimentos, os mesmos pratos, os mesmos planos, as mesmas cenas ou configurações, entre os episódios e as temporadas. Cada sabor, do mais cliché e quotidiano ao mais excepcional e requintado, é serializado e integrado numa vasta teia de sabores com os quais deve ser comparado, teia a que participam também de forma warholiana as embalagens publicitárias do mundo contemporâneo – as pratelerias sopranianas enchem-se de Nesquik, Uncle Ben’s, Cheerios, Jack Daniel’s, Absolut Vodka e convocam as suas deceptivas sensações gustativas. O processo serializante transforma tudo o que vem à boca do espectador (a mozarella, os mexilhões, as batatas fritas, uma palavra, uma ideia, o New Jersey um dia de sol, o mundo inteiro…) em mero simulacro, atingindo assim o objectivo fundamental da filosofia para Deleuze nos textos em que fala de cinema e/ou de Nietzsche, e respeitando também plenamente essa modificação de perspectiva à qual o filósofo apela em Différence et répétition (e para a qual contribuíram como nenhuma outra forma artística as grandes séries TV desse “terceiro golden age” lançado pelos Sopranos ou Lost) quando diz que não há e não pode haver diferença radical entre o primeiro elemento de um conjunto serial repetitivo e as suas ocorrências posteriores. Péguy comentando Monet e citado por Deleuze, dizia que “C’est le premier nymphéa qui répète tous les autres”; aqui, os camarões partilhados com a sensual Annalisa na baía de Napoli não são outra coisa se não a repetição e o espelho dos camarões de supermercado ou traiteur que compõem o buffet num quarto de hotel nojento transformado em sala de póquer (temporada 2) ou durante a festa de casamento kitsch dos Sacrimonis (temporada 6).
Estranha experiência gustativa aquela de um espectador transformado em boca, em que a acumulação de alimentos e sabores aumenta o devir-simulacro do mundo e da realidade elemental, ou seja produz paradoxalmente a perda de todo o tipo de gosto. Esta acumulação/perda é cristalizada através da obsessão pelas salsichas, cada vez mais monstruosas, recheadas de sabores oximóricos e ligeiramente antropófagos, e pela Coca-Cola, quase sistematicamente presente à mesa como se quisesse unformizar e afogar todos os alimentos, anestesiar o paladar, e fazer assim desaparecer qualquer subtileza que seja – eco de uma luta constante entre o corpo carnavalesco do enchido-Tony e a sua mente infectada pela depressão e pelos produtos de consumo estado-unidenses. Série metafísica, que como todas as grandes obras questiona o próprio sentido da vida (“What’s the point?” – bis repetita), The Sopranos aposta na capacidade da nossa boca televisiva new jersiana de saborear, como se se tratasse de uma carne raríssima e juicy, uma tonelada de salsichas mergulhadas numa piscina de Coca-Cola. Talvez o nosso corpo triunfante e reconciliado com os sabores da nossa época pós-moderna possa aí então gritar a fórmula mística de Tony Soprano frente ao nascer do sol no deserto que beira Las Vegas : “I Get It !”.
Guillaume Bourgois
Professor de Estudos fílmicos na universiade de Grenoble-Alpes.
[1] Numa sequência divertidíssima, Jon Favreau, interpretando o seu próprio papel, assemelha-se a um espectador da série cuja boca encontra-se em pleno processo de devir, quando tenta encomendar “a slice and a Coke” numa pizaria utilizando exactamente a mesma pronúncia que Chistopher, o sobrinho de Tony (Temporada 2, Episódio 7, D-Girl).
[2] É evidente que mais do que em qualquer outra arte, as cores cinematográficas têm sabores : por exemplo o encarnado-morango e o amarelo-limão-e-menta do remédio de Mary Poppins.