Em cerca de 20 anos, o mexicano Carlos Reygadas (n. 1971) realizou cinco longas-metragens para cinema, onde o filme do meio, Stellet Licht (Luz Silenciosa, 2007), estabelece como que um antes e um depois no trajecto deste autor em busca da sua voz própria. Stellet Licht tinha lugar no seio de uma comunidade religiosa menonita, e o núcleo dramático do filme dizia respeito a uma infidelidade do elemento masculino de um casal, que daria origem ao desespero silencioso da mulher, à morte desta, e ao milagre da sua ressurreição. A partir daqui, todos os filmes de Reygadas estão contidos uns nos outros. Post Tenebras Lux (2012) também se centra numa família, parte dele foi filmado na casa de Carlos Reygadas e da mulher (a realizadora e montadora e, finalmente, também actriz, Natalia López), os filhos do casal Reygadas são os filhos do casal na ficção, que também lida com a dimensão exploratória da sexualidade do par Natalia e Juan, sendo que agora com Nuestro tiempo (O Nosso Tempo, 2018) o casal ficcional é representado por Reygadas e pela mulher, ela usando o nome Esther, igual ao da principal figura feminina de Stellet Licht, e ele mantendo o nome Juan, correspondente ao do protagonista de Post Tenebras Lux.
A ideia de perseguirmos um propósito autobiográfico na obra de Reygadas só é pertinente em termos conceptuais. O que ele vem filmando, com intervalos cada vez maiores de filme para filme, não é a vida dele, ou a vida deles, como o intencionalmente polissémico título Nuestro tiempo pode sugerir, mas antes questões do foro íntimo das relações amorosas e familiares que lhe interessa problematizar, com a mesma seriedade que, por exemplo, Ingmar Bergman (1918-2007) também usava. Mas ao mesmo tempo com um trabalho formal nos antípodas do cinema daquele mestre sueco. Nuestro tiempo regista cenas da vida conjugal de um casal em crise, Juan e Esther, que vive numa propriedade rural do México onde se criam touros, partilhando ambos as responsabilidades da ganadaria, e sendo ele também um poeta prestigiado internacionalmente. A condição social burguesa e intelectual de Juan e Esther é fundamental para garantir a verosimilhança do modo como eles praticam e reflectem sobre uma relação livre, onde cada um vai tendo outros parceiros, e que só colide com a estabilidade da união quando ela se apaixona por um americano, Phil, que Juan contrata para cuidar dos cavalos da propriedade.
Nuestro tiempo dá logo conta de algo como uma fronteira entre os mundos masculino e feminino, que as relações modernas, como convém a uma perspectiva progressista, procuram esbater.
Carlos Reygadas volta a situar a acção no tempo presente, e neste sentido a leitura a fazer do título Nuestro tiempo é inclusiva e universal, tal como o havia feito com Stellet Licht, mas nos dois filmes os elementos geográficos, independentemente de outros referentes sociais ou tecnológicos, dão a sensação de que os filmes têm lugar num tempo mais antigo, ou num tempo sem coordenadas específicas. Isto é decisivo para os efeitos de transmutação da linguagem cinematográfica de Carlos Reygadas, feita de uma fluidez constante entre o espaço natural, os animais que o habitam, e os homens que o vieram ocupar. É como se os filmes do mexicano procurassem ecoar num mundo primordial, e aspirassem a uma exemplaridade própria dos mitos. O casal de Nuestro tiempo podia ser também o dos primeiros homens e das primeiras mulheres a viverem no planeta Terra, que se debatem com questões que decorrem da sua experimentação dos limites do amor e da paixão. É isto que constitui a verdadeira riqueza de vivenciarmos as três horas que Nuestro tiempo leva nas suas constantes relações de tudo com tudo, onde o motor de um automóvel pode configurar a memória recente de um episódio passional, onde a aterragem de um avião comercial pode transportar os pensamentos profundos de uma mulher independente que quer ser feliz, onde a tensão crescente entre dois touros numa planície, que culmina na morte de um deles, pode representar a disputa nunca exteriorizada com violência de dois homens que desejam a mesma mulher.
Carlos Reygadas abre este seu filme com uma espécie de prólogo, como já havia feito em Post Tenebras Lux, de novo com crianças (mas agora também com adolescentes), que em Nuestro tiempo dá logo conta de algo como uma fronteira entre os mundos masculino e feminino, que as relações modernas, como convém a uma perspectiva progressista, procuram esbater. É esta harmonia que o filme parece querer mostrar como conquista adiada, porque são naturezas diferentes, homens e mulheres, até quando o que desejam para si são coisas iguais: constituir família, o reconhecimento profissional, a felicidade dos filhos, uma vida sexual que satisfaça. Costuma dizer-se que naquilo que faz intersectar as vidas de duas pessoas, a liberdade de um termina onde começa a liberdade do outro. Quando passamos das fronteiras do mundo físico para aquelas que constituem o mundo das emoções e dos sentimentos, o território é difícil de delimitar. Talvez por isso este filme esteja sempre em busca de imagens que substituam a comunicação verbal, ou que sejam como que um espaço de libertação dos espartilhos que fazem parte da vida humana. Espartilhos que os animais e a natureza não conhecem. Os touros não se regem pela personalidade, mas por imperativos de reprodução e de território brutos, e possuem cornos, mas só nós conhecemos o quanto dói no ego a dor de corno (mesmo quando consentido).