O Fim do Mundo (2019) estreou o ano passado na competição do Festival de Locarno, mas na verdade só conheceu o seu público, as pessoas do bairro da Reboleira, onde foi filmado, quando passou no IndieLisboa, numa sessão esgotada que ficará na memória de todos aqueles que lá conseguiram entrar. Não por acaso, o filme seria premiado, dias depois, com o galardão de melhor filme da Competição Nacional. A segunda longa-metragem do luso-suíço Basil da Cunha surge após um “falso interregno” de sete anos, quando se estreara no formato longo com Até Ver a Luz (2013). Nesse intervalo, o seu cinema modificou-se, mantendo, no entanto, quase tudo aquilo que o caracterizava como um realizador singular no contexto português. Encontrámo-nos com o Basil da Cunha um par de horas antes da cerimónia que o viria a consagrar, no soalheiro jardim do Palácio das Galveias.
A uma mesa de café, e ao longo de uma hora de conversa, percorremos a sua obra, entre as várias curtas e as duas longas-metragens de ficção, investigando os sucessivos paradoxos que a compõem. Embora os seus filmes retratem, sem excepção, comunidades socialmente excluídas, cada um deles é perturbado por elementos fantásticos que põem em causa o chavão fácil do realismo social. Embora o seu cinema percorra os grandes festivais de cinema de autor (e as preocupações estéticas do seu realizador sejam essas), aquilo que surpreende é o quão acessível e popular é o seu olhar (tocado pelos filmes de acção norte-americanos dos anos 1980). Embora a direcção de actores pareça dar total espaço à improvisação, os guiões são intensamente re-escritos (ainda que nenhum dos actores os leia – porque são, inclusivamente, escritos em francês). Entre todas estas oposições, Basil da Cunha mostrou-se generoso nas respostas (como é no seu cinema), revelando bastante do seu processo criativo e das intenções e referências que o guiam.
Carlos Natálio (CN) – Os teus filmes têm, ao mesmo tempo, uma linha clássica muito clara e um intenso trabalho de improvisação, que provém da experiência da rodagem. Neste contexto, podes descrever-nos como é o teu processo de escrita?
Têm, têm. Por exemplo, O Fim do Mundo, o argumento final passou por 150 versões. Isto sem falar do que vem antes: trajectórias de personagens, backstories. É um processo que demora imenso tempo uma vez que a escrita é sempre tributária da realidade. As personagens são, no fundo, aquelas que existem no real e eu tenho de compor com elas. Não me posso colocar acima das minhas personagens, como uma espécie de Deus criador…
CN – Vais ajustando, portanto…
Sim, tem de ser assim para não trair a realidade.
Ricardo Vieira Lisboa (RVL) – Mas como é que começa o processo?
Cada filme é diferente. Mas este, por exemplo, nasce de duas coisas. Primeiro da ideia de uma cena. É estranho, mas vem de um momento do Lethal Weapon (Arma Mortífera, 1987), um buddy movie, filme da minha infância. Uma cena de perseguição que achei super engraçada pois no meio da acção, em montagem paralela, o Danny Glover está a ter uma conversa completamente absurda. Ao mesmo tempo que pensava nessa cena descobri aquela música incrível que vem do Cabo Verde Show, um programa de televisão dos anos 80 que ia buscar música dos anos 70, que é a música que no filme ouves na montagem paralela, antes da explosão, com o cavalo. Tinha uma visão dessa cena, uma espécie de final épico.
RVL – Começaste pelo final.
Está tudo mega escrito, mas o engraçado é que os actores não leram nada do que eu escrevi.
Sim, comecei pelo final, através dessa música. E depois há uma ideia subjacente que vem de trás, uma ideia de resistência. A minha ideia inicial era fazer um teen movie com putos que salvavam o bairro [Reboleira], uma vez que os adultos estavam todos divididos. Daí que a estratégia da Câmara seja dividir as pessoas entre elas. Por isso é que eles não arrasam tudo de uma vez só, vão demolindo as casas aos poucos. O que alimenta intrigas, invejas, e não permite fomentar uma reacção unida da comunidade, um nós-contra-eles. Essa era a ideia inicial, o que não interessa para nada, uma vez que o filme já não é isso. Sobretudo porque os putos com os quais já tinha falado e que queria para o filme já não eram bem esses teens, mas eu já lhes tinha dito que eles iam ser as personagens do filme. Por isso tive de me adaptar à realidade que não se conformava com esta minha ideia inicial, nem com essa inocência própria da adolescência. Acabei por construir uma ideia diferente mesmo antes da rodagem, pois só me dei conta a sério do crescimento deles três ou quatro semanas antes da começar a filmar. Comecei a reescrever e aí surge a ideia do baptismo, do colégio onde o Spira esteve. O que é interessante sobre este processo todo é que, no resultado final, tudo está mega escrito, inclusive os diálogos. Os meus diálogos têm muito a influência do Michel Audiard que adoro… Mas o engraçado é que os actores não leram nada do que eu escrevi.
CN – A sério!?
Sim. Como conheço estes rapazes, sei como eles vão reagir, o que vão dizer, caso lhes dê uma premissa. Por exemplo, o que vão dizer se lhes pedisse para pensarem no que fariam caso se tornassem milionários. Como sei o que cada um vai dizer, escrevo a contar com isso, com o meu conhecimento deles. A única pessoa que se deu conta disso foi a minha anotadora. Assim é que se dá aquela magia dos gajos reformularem com dicas deles. Os diálogos escrevo-os em francês, com uma linguagem de rua que eu domino bem. Acabo por ficar com diálogos semelhantes aos que criei, mas com a magia do crioulo. Comédia também, as palavras podem significar três ou quatro coisas. Sem contar com as invenções, o calão.
CN – Existem momentos nos teus filmes onde o crioulo desaparece e surgem frases em português. Existe um critério para usar um ou outro? Dizes aos actores quando devem usar um ou outro?
Eu não digo dada. Eles é que decidem. A Iara, por exemplo, sente-se mais confortável com o português. A cena do cavalo surge por causa dela. Conheço-a desde que ela era criança e ela tinha a mania das novelas, e fantasias sobre o que estava fora do bairro. Uma vez tinha ido a França e tinha visto cavalos brancos e, portanto, era algo do imaginário dela. E também sempre viveu um pouco mais afastada em relação às outras pessoas do bairro. Escrevi o que está no filme a partir do que conhecia dela.
RVL – Por exemplo, no filme há aquele momento em que ouvimos a frase, “é preciso sonhar à noite para fazer de dia”. A conversa está a decorrer em crioulo e depois essa frase já surge em português. Parece por ser um momento mais marcante mas é só porque sim?
Sim, porque sim. É um momento de inspiração dele. É uma prenda do meu actor.
RVL – Pegando na questão do improviso. O filme tem uma história que vamos captando mas depois há um momento que me apanha de surpresa: quando o Spira beija a madrasta. Também foi improviso?
Queria que ele fosse uma personagem que encarnasse aquilo que nos tornamos quando deixamos de dar educação e passamos a dar repressão.
Não, isso foi escrito. Quem é este gajo? É um rapaz que passou oito anos no colégio. Se está com 17/18 quer dizer que entrou lá com 10. E sai, voltando ao bairro com outra música na cabeça. Perdeu a inocência e começa a resolver as merdas de forma muito pragmática. A miúda sonha com cavalos, ele vai buscar um cavalo. Há uma retro-escavadora, ele explode com a retro-escavadora. E depois o pai está ausente. O beijo vem dessa coisa de ele querer ocupar a figura do pai. É um psicopata romântico [risos]. Esta personagem é inspirada em alguns putos. Mas nunca quis dar esse papel ao rapaz que viveu isso em concreto. Se é verdade que por vezes é mais fácil representar o que se viveu, há coisas sobre as quais é preciso ter um certo resguardo, uma sensibilidade. O Spira [Michel Spencer] foi o actor com quem trabalhámos de forma mais clássica. E teve de haver uma apropriação pois ele não é nada como a personagem. É um gajo fresco, charmoso. Foi o único com quem fiz ensaios. Mas que ensaios? Filmei durante três dias a saída do colégio até chegar ao bairro. O que queria era tirar esses “truques” todos que ele tem, para ter uma energia completamente interior. Porque queria que ele fosse uma personagem que encarnasse aquilo que nos tornamos quando deixamos de dar educação e passamos a dar repressão. Porque um colégio é isso, é violência, é racismo… Talvez o Spira tenha uma dimensão mais simbólica do que as outras.
RVL – Nos teus filmes anteriores, inclusive nas curtas, há muitos elementos de fantasia, aqui parecem existir menos… O palhaço, o caminho para ir buscar o peixe-lua [Nuvem (2011)], a iguana [Nuvem (2011); Até Ver a Luz]…
CN – A sequência do sonho n’ Os Vivos Também Choram (2012)…
RVL – Aqui só há o cavalo. E entretanto passaram 7 anos, desde a tua longa anterior. Perdeste o gosto pela fantasia?
Creio que o facto de trabalhar com uma outra geração não me permitiu esse tipo de fantasia. Não via esses putos precisarem desse imaginário poético para fugir à realidade. Acho que a luta deles é completamente diferente. Por exemplo, o Nuvem é um verdadeiro marginal dentro do bairro. Já foi relações públicas de uma empresa qualquer, tem uma carola incrível. Os putos do meu bairro queriam usá-lo para fazer battles de inteligência com gajos de outros bairros. O gajo é genial, mas é um verdadeiro maluco. Um ciente maluco. E ocupa um lugar no microcosmos do bairro, assim como o Sombra [Até Ver a Luz (2013)] ocupa. Mas sim, gosto muito do realismo mágico.
CN – Muitas vezes nos teus filmes dá-se esse choque poderoso: uma atenção ao detalhe e ao realismo muito forte – no qual nem por um momento duvidas que aquilo se passa mesmo assim – e de repente tens coisas meio inverosímeis, quase naïf.
Sim, mas cada filme tem a sua gramática e os seus códigos. Procurei neste filme fazer um encontro entre o realismo e o cinema de género. E depois com elementos de comédia, como a sequência da sanita. Na Suíça não gostaram nada.
CN – Talvez “choque” nem seja a palavra adequada. Como o beijo à madrasta, é mais uma perda das coordenadas do espectador, uma desorientação. Sobre as piadas nos diálogos, elas estão escritas ou surgem na rodagem?
Estão escritas. Mas eles nunca têm as minhas intenções. Gosto muito de uma coisa que o Beckett trabalha na peça Fin de partie (1957). Três personagens que estando a conversar, estão sempre em fios paralelos, nunca se chegam a entender. Na Reboleira encontro muito disto: dois gajos estão a falar um com o outro mas cada um fala da sua coisa e não se entendem. Isso produz um efeito cómico. Por exemplo, usei isso naquela sequência de montagem paralela de O Fim do Mundo em que falam sobre pôr música quando o outro acabou de morrer.
RVL – Essa sequência é muito tensa e ao mesmo tempo estou-me a rir imenso com os dentinhos de vampiro…
Foi o actor que encontrou os dentes no chão e os meteu na boca. Mas estas coisas são possíveis porque nós arriscamos imenso no momento da rodagem. O argumento tenho-o por perto nas duas primeiras semanas, depois começo a ler só à noite a cena que vou fazer no dia seguinte, mas passado um mês já nem o levo para a rodagem. Fica tudo na cabeça e só me serve de segurança.
RVL – Quanto tempo demorou a rodagem?
Filmei 300 horas, o que pode parecer muito para uma ficção…
Três meses. Filmei 300 horas, o que pode parecer muito para uma ficção… deixei algumas cenas de fora para o filme ficar mais tight. Também tinha que ver com a gramática que estava a utilizar onde tudo tinha de ser eficaz. Houve pouco espaço para experiências, pois repetimos imensas vezes. Precisava de obter uma certa precisão, uma energia específica dos gajos.
CN– E fazes muitos takes?
Um take normalmente são dois ou três planos sequências. E nesses há vários planos recortados.
RVL – Filmas com várias câmaras?
Nunca. Porque o meu ângulo nunca pode ser refém de um outro ponto-de-vista. Quando fazes o esforço de fazer tudo outra vez obrigas-te a ser ainda mais criativo. Por exemplo, no Até Ver a Luz há aquela cena em que um dos personagens conta a história do gajo que morreu duas vezes. Eu sabia que ele ia contar essa história, e que o gajo da frente o ia chamar de mentiroso. E, por sua vez, ele odeia ser chamado de mentiroso. Esta dinâmica eles não sabiam, mas passado alguns takes eles já tinham percebido o meu truque. O que é que eu fiz? Pus um outro gajo no cimo do muro a mandar-lhe umas pedrinhas enquanto ele está a falar. Como não estava à espera a reacção é sempre diferente, e muito genuína.
CN – Aquela cena desse filme em que o Sombra se vai despedir da menina e lhe pede para pôr a iguana ao sol. É um desses momentos desorientadores do teu cinema: ao mesmo tempo que quase desafia a verosimilhança, ele instala o filme no território do cinema clássico. Subitamente parece um herói do John Ford a despedir-se, num dos seus westerns. Só que na Reboleira. E, por isso, por essa junção de registos – realista e bigger than life – parece que estamos no célebre “cinema do meio”, habitando algures o espaço entre os guetos do cinema de autor e o cinema comercial de linguagem cinematográfica convencional.
RVL – Sim, uma espécie de cinema de autor popular.
Para quem é que estás a fazer filmes? Só para ti e para os teus? Defendo que tem de existir uma certa justiça em relação às pessoas que filmas.
Sim, concordo. Mas por exemplo, o neorealismo funcionou bem nas salas da época. Ou nos anos 1970 e 80, em França, também existe essa conciliação entre o cinema popular de autor. Repara, estou a dar aulas numa escola na qual os outros professores são homens, mais de cinquenta anos, brancos. Os meus alunos são todos brancos, de classe social média alta. Os seus filmes são normalmente de cinéma du réel, de cariz realista. Mas… esses filmes depois – e isso vê-se muito também através dos festivais – apenas entram em diálogo com aquela classe social que os produziu. E será que as pessoas retratadas, que entram nos filmes se reconhecem, se identificam com as obras? O que nos leva à questão: para quem é que estás a fazer filmes? Só para ti e para os teus? Defendo que tem de existir uma certa justiça em relação às pessoas que filmas. Quero que os meus amigos na Suíça gostem dos meus filmes. Mas quero é que o meu pai, que adora Clint Eastwood, vá ver os meus filmes e goste. Mas também quero que o IndieLisboa goste. E quando o pessoal vai à ante-estreia, quero pôr toda a gente a rir. E toda a gente a chorar. É uma ambição que eu tenho. E para isso não vou fazer planos sequência de 30 minutos.
RVL – Voltando a O Fim do Mundo: faz-me lembrar filmes dos anos 90, estilo Boyz n the Hood (A Malta do Bairro, 1991), ou Menace II Society (1993) em que todos tinham um rapper ou hip hopper conhecido no elenco como o Tupac ou o Ice Cube. Cresceste a ver esses filmes?
Sim… E o Bruce Willis e o Mel Gibson. Os buddy movies têm uma coisa que eu adorava pois para mim foram os primeiros anti-heróis. O Bruce Willis no Die Hard começa sempre com uma puta de uma ressaca, uma ex-mulher a ligar para ele, a acender um cigarro e a tomar umas aspirinas para a dor de cabeça. E isso era o mais parecido com o que eu via em puto. Os meus fins-de-semana eram passados com o meu pai no Centro Português na Suíça. Porque ele era presidente da Federação dos Centros Portugueses, que era onde os imigrantes portugueses se encontravam. E como não existiam leis como as de agora, e não havia a coisa da concorrência desleal aos comércios suíços, nós podíamos comer comida portuguesa aos preços portugueses. E aí havia folclore, pimbalhada, um artista convidado ao fim-de-semana. E passava dois dias lá, e havia muitas personagens que pareciam de um filme do Martin Scorsese. E também me faziam lembrar o Bruce Willis. Isto foi quando tinha 10 anos. Numa segunda fase, com 15 anos comecei a ver esses filmes. Mas, ao mesmo tempo, sempre achei que havia pouco cinema neles.
CN – Nos teus filmes, as influências são sempre passadas num rolo compressor do qual sai uma coisa que procura resistir à categorização…
Sim, por exemplo, no uso da música. Tive uma aluna brasileira que queria fazer uma curta com capoeira. E sempre achei má ideia que ela fizesse um filme sobre capoeira de uma forma unidimensional, pois torna-se pitoresco. Tive há uns dias num debate com o Kléber Mendonça Filho e ele no Bacurau (2019) usou a capoeira mas com banda sonora do John Carpenter. E esse encontro é incrível. No meu filme tenho o órgão, músicas cabo-verdianas dos anos 70. A propósito disto, há uma lenda interessante que diz que existiu um barco nos anos 70 que saiu da Holanda com material sonoro para um festival no Brasil. O barco desapareceu. Três meses depois encontraram o barco vazio, numa ilha de Cabo Verde. Conta-se que foi o Amílcar Cabral que terá distribuído esses sintetizadores pela ilha e que daí nasceu o funk cabo-verdiano. Nessa altura passeavas naqueles becos e de repente entravas num café era como estares de repente uma noite inteira com o James Brown. Queria homenagear esses gajos, daí a música no final o Pinta Manta, do António Sanches. A música mesmo do bairro só ouvimos de relance, quando um carro passa, por exemplo.
CN – Há ainda a influência do Coppola e do Padrinho.
RVL – Sim, o baptismo e o funeral.
O Padrinho é o filme que mais vezes vi na vida.
E do Scorsese, pois há nele mais humor. O Jarmusch também tem essa ironia. Por exemplo, o mais engraçado no Godfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990) são aqueles momentos sobre a forma como cortas o alho. Isto porque assim acabas por ver o outro lado desses gajos. Mas sim, acho que o Padrinho é o filme que mais vezes vi na vida.
CN – Voltando, se quiseres, a uma dimensão mais política do teu filme, parece-me que ela não tem necessariamente a ver com a história em si, mas com o retrato de um espaço, de uma comunidade. Ao ver o O Fim do Mundo tinha pensado na forma como o protagonista, o Spira, é um herói silencioso. Mas ao ver os teus restantes filmes, a tua primeira longa e as curtas, parece-me que o silêncio não chega. Os teus protagonistas parecem quase sem corpo, desmaterializadas, gasosos, etéreos: o Sombra, o Nuvem. Personagens que andam por ali a absorver a realidade que os rodeia, como pára-raios do que acontece. Mesmo o rosto incrível daquele actor que surge no À Côté (2009), o Dorin Drago. Perguntava-te se essa é uma estratégia de captação desses espaços através destes olhos que recebem mais do que dão.
Nunca tinha pensado nisso. É capaz. [risos] Por exemplo, no Os Vivos Também Choram o Dorin é mudo e só no fim fala para o capitão. Essa personagem foi inspirada no índio do One Flew Over the Cuckoo’s Nest (Voando sobre um Ninho de Cucos, 1975).
CN – O À Côté (2009) é um filme complexo. Pois ele é um filme sobre solidão, sobre o trabalho dos imigrantes.
RVL – Mas tem qualquer coisa de filme de terror…
CN – Era exactamente aí que queria chegar. É um filme ainda sobre violência doméstica, mas depois parece também uma encenação da Bela e do Monstro. Mais uma vez, como já tínhamos falado, trata-se da perda das coordenadas do espectador.
Sim, tento brincar com os códigos. O interessante nessas gramáticas é que tento ter um pressuposto político para transformar e para contar histórias. Porque esses códigos servem um dado tipo de personagens e depois quando os aplicas a outras o choque diz qualquer coisa politicamente.
RVL – Quando vejo os teus outros filmes vejo várias ligações, o lagarto, as personagens…
Sim, os primeiros filmes também são laboratórios.
RVL – Mas n’O Fim do Mundo sinto um certo corte. Com excepção do bairro da Reboleira, não há muitos elementos que venham detrás.
Já tenho filmes para os próximos 10 anos.
Acho que sentes isso porque antes deste filme eu fiz uma série com estes miúdos, que não divulguei. Essa série foi o laboratório deste filme, se podemos chamar assim. Depois ainda fiz uma outra curta o Nuvem Negra, que foi auto-produzida e que depois não enviei para festivais. Aí há uma conversa sobre o fim do mundo e do bairro. Porque nunca parei de filmar, durante estes sete anos, entre as duas longas. Os meus anteriores produtores queriam seguir outro caminho, queriam actores conhecidos, uma outra pessoa para me escrever o argumento. E como não quis ir por aí, estes anos foram para tentar reencontrar o caminho que queria seguir, e fui filmando outras coisas, experimentando. Mas entretanto, já tenho filmes para os próximos 10 anos [risos].
RVL – Um dos cortes que falava é que todos os outros filmes tinham o mar, como uma espécie de saída. Aqui, pela primeira vez não há mar, nem há saída do bairro.
Sim, é verdade. Mas há um pormenor, se reparares. Os mecânicos à noite quando lutam, no outro dia tudo recomeça. O que queria filmar é esse recomeço diário e eterno. Acho que se perguntares a quem quer que seja que tenha nascido no bairro, todos querem morrer lá.
CN – Parece-me que o que Ricardo está a dizer é que no À Côté tens o herói que deseja sair de sua casa para ir ao lado ter com a miúda; no Até Ver a Luz tens esta ideia de fuga para o dia, a claridade; a Suécia n‘os Vivos Também Choram… Mas aqui não há saída. Mas talvez nem seja uma questão pois é o bairro que está a desaparecer. E, por isso, não é preciso sair de uma coisa que não vai ficar. Há uma implosão.
RVL – Sim, parece um luto antes da morte.
Quando fiz o filme achava que era o último que ia fazer lá… Por isso a cena do funeral e a homenagem àquela gente toda. Um retrato de família e cada cara tem 1001 histórias que se poderiam contar. Algumas dessas histórias talvez ainda consiga contar. Graças ao Covid-19 ganhámos um pouco de tempo antes do bairro ir abaixo. E a forma destes putos resistirem é diferente daqueles que queriam escapar-se do bairro e sublimar a realidade através do sonho e da poesia. Estes putos têm uma outra forma de resistir que respeito bué. Os valores do crime à moda antiga. Quando um diz que não é atrás do computador que um gajo faz guita eu concordo plenamente. O que ele defende é mais realista do que a ideia da mundialização, de que tudo é possível e depois nada é possível. A internet não é horizontal, tens de pagar.
RVL – E ao mesmo tempo que o filme é sobre uma geração mais nova do que a dos filmes anteriores, também mostras aquelas crianças que estão no bairro. Parece que o filme já está a anunciar que mesmo que o bairro acabe, isto não acaba.
Não. O que acaba é toda a gente conhecer a história dos outros. Bebes um copo a mais e as pessoas levam-te a casa. Falta-te arroz, podes ir a casa do vizinho. É este mundo que acaba. Mas a nossa caminhada não vai acabar tão cedo.
CN – Essa cena do funeral é um bom exemplo do que estávamos a falar há pouco do “cinema do meio”. Um cineasta que fizesse um cinema mais autoral imediatamente ao fazer essa cena pensava sobretudo no dar visibilidade àquelas pessoas, dar-lhes uma visibilidade para o exterior. Mas aqui essa importância é subsidiária, pois a cena serve antes de mais um propósito da narrativa. Só depois vem essa leitura de que cada rosto conta uma história e testemunha um mundo em desaparição.
O cinema do meio é chato para a distribuição. Pois não se sabe bem como é que deve ser exibido o filme, em que categoria cabe. Isto porque na verdade ele cabe em várias ao mesmo tempo.
RVL – Sim, se cabe no ciclo de cinema de arte ou no ciclo de cinema de acção.
Sim, para um filme destes é importante ele estar nos cinemas mais comerciais para também chegar a um outro público.
CN – Mas esta dificuldade da categorização também passa pela recepção crítica. Creio que é necessário contrariar essas guetos do cinema “sério” e do cinema supostamente mais “leve”, porque muitas vezes um filme é várias coisas e a oposição gera simplismos. E cria preconceitos antes de pôr os olhos a trabalhar, antes de ver os filmes.
O filme do Kléber, por exemplo. O seu cinema é super generoso. Uma lição de cinema, mas já está noutro patamar. Aí falamos da Liga dos Campeões. [risos].
RVL – E o Bacurau que é um filme de acção passou apenas no circulo de arte em Portugal.
Isso não me entra na cabeça, pois ele é tão generoso.
CN – Em vários filmes teus existem aquilo que se pode dizer que sejam “frases-conselho”: “O que consomes hoje, pagas amanhã.” // “Está escrito, vive de dia descansa de noite.” // “Sonhar de noite para fazer de dia.” // E há também essa ideia sobre o estar sentado à frente do computador de que falaste há pouco. Surgem como estas frases?
Isso é deles. Eles é que me dão essas pérolas.
RVL – Ainda sobre as semelhanças/diferenças entre o Até Ver a Luz e este. Nos dois há o motor narrativo de uma dívida para pagar. Esta situação é muito recorrente no cinema americano de acção. Neste caso surge de histórias que ouviste, é das personagens, é da tua imaginação?
É uma mistura. Algumas cenas que me contam, outras que vejo, outras ainda do cinema. Não consigo separar assim as coisas. Mas sim, bate certo com aquela realidade. Mas, por exemplo, a cena do carro aconteceu mesmo. O lixo não era recolhido com regularidade e um miúdo, cansado do cheiro, pegou fogo àquilo e apanhou um carro que estava por ali.
CN – Uma das consequências deste cinema de proximidade das pessoas é não usares a profundidade de campo. E mais uma vez o teu cinema não encaixa assim tão bem naquela dualidade entre os cineastas da montagem ou do plano. Pelo menos nessa composição em profundidade. Como vês essa tua preferência?
RVL – E há uma dimensão pictórica. A certa altura os fundos ficam abstractos.
Gosto mais de filmar caras do que corpos.
Creio que já está tudo nas vossas perguntas. Por um lado, tem a ver com o facto de ser eu o realizador e o câmara. Para te dirigir preciso de trabalhar em proximidade visual. Depois é o gosto pessoal, gosto de trabalhar a textura, que encontras num pintor como Caravaggio, o chiaroscuro. Gosto mais de filmar caras do que corpos. Parece que estás no meio do espaço. Além disso acho muito difícil fazer planos largos, por causa da arquitectura do bairro.
RVL – Este filme tem um formato mais largo do que os outros, não?
Sim, filmei em scope.
RVL – Estava a pensar que o filme era em scope porque são três protagonistas. [risos]
Também. Mas porque achava que esse formato era o mais adequado a um filme de género. Já queria ter feito isso no anterior, mas aconselharam-me a não o fazer. Diziam-me que não estava preparado. Não percebi porquê… Filmei e dei-me bem, acho. A ocupação dos espaços é diferente mas correu bem.
CN – Há bocado estavas a explicar o que é que ia terminar, não o bairro mas uma forma de relação entre as pessoas. É interessante pensar isso face à escolha de filmar colado aos rostos e às caras das personagens. O que significa que para documentar uma comunidade, mais importante do que filmar a arquitectura, as casas, é filmar esse espaço mental, uma ideia de relação entre as pessoas. O bairro que vai na cabeça de cada pessoa que o habita.
Sim, é verdade.
RVL – O lugar em si não é assim tão importante.
CN – E isso deixa à mostra quase um paradoxo do documentário…
RVL – Sim, dizias-me isso antes. Que este filme retrata melhor a Reboleira do que poderia qualquer documentário que se fizesse lá.
CN – Sim, um documentário sobre um lugar muitas vezes é mais fiel quando se cola menos ao espaço em si e mais ao espaço imaginário que as pessoas que o habitam têm dele. E isso é algo paradoxal. Como se todos os documentários fossem em potência sobre o mundo interior e não sobre o exterior.
Concordo completamente. É preciso estar na essência das pessoas e suas relações.
CN – Ainda não falámos da luz dos teus filmes. Em dois aspectos. No Até Ver a Luz a Luz possui esta conotação religiosa. A dimensão da ascensão, a figura de Jesus Cristo naquela sequência da ida do Sombra ao bruxo. Num aparte este filme tem ainda uma outra cena que me ficou na cabeça, que o Ricardo disse que parecia um haiku e com toda a razão, que é aquele diálogo entre uma “Nuvem” e uma “Sombra” no cimo de um telhado, numa noite de luar na Reboleira. Mas, como dizia, existe a luz neste primeiro aspecto e depois a luz propriamente dita, como matéria prima do cinema. Este filme é diferente do anterior…
Sim, trabalhei de forma bem diferente aqui.
RVL – Este tem umas cores mais pastel… menos contrastes mas muito fortes.
Sim. Tirámos os verdes todos. Trabalhámos muito com magenta. O anterior era trabalhado com a luz dentro do plano, mas com pouca luz. Neste temos o trabalho do incrível Rui Xavier, o director de fotografia. A ideia foi tentar corrigir o gap que existe entre o que vemos com o nosso olhar e depois o que a câmara estava a registar. Aí, tecnicamente, foi incrível o que ele fez. Removeu as luzes amarelas que estão por todo o bairro, pois elas tornavam a imagem plana, digital no pior sentido.
RVL – Sim, porque o filme tem muita textura, um grão bonito.
CN – E esse trabalho incrementa, por um lado, aquilo que já abordámos, o lado do realismo fantástico, com aquelas cores fortes, muitas vezes em contraste, mas não só. As cores sublinham uma certa oposição entre uma guerra silenciosa e interna do Spira (motivado pelo facto de ele não saber qual é o espaço que vai ocupar agora no bairro) e uma guerra exterior, de dimensão física e material. É um filme com explosões, foguetes, ruínas, destruições, rebentamentos. Este O Fim do Mundo é um filme apocalíptico.
RVL – Dá a sensação que se tivesses mais orçamento rebentavas mesmo com aquilo tudo…
Sim, de certeza. Sem dúvida. Ainda está para vir.
RVL – Sobre os elementos tecnológicos. Os teus filmes têm sempre muitas televisões e por vezes o que está a passar é bastante improvável. Aqui são os documentários sobre cavalos, mas nos outros filmes temos telenovelas, televendas, notícias, os Sete Samurais do Kurosawa. E, no outro lado da tecnologia, temos os telemóveis, que neste filme aparecem muito, mas parece haver uma crítica, um constante “larga lá isso”. Mas não parece ser algo da geração que estás a retratar, mas mais uma coisa tua.
Sim, é verdade. A televisão é fixe. Ela permite dar uma leitura à cena, por vezes um contraste. Mas os telemóveis afetam as dinâmicas entre as pessoas.
RVL – Mas é o que está a dar na televisão é por acaso?
Não gosto de filmar telemóveis, nem ecrãs de computador e gosto dar umas dicas sobre isso. É chato ver as pessoas sempre no telemóvel.
Não, nem pensar. Tudo escolhido já no argumento. Mas sim, não gosto de filmar telemóveis, nem ecrãs de computador e gosto dar umas dicas sobre isso. É chato ver as pessoas sempre no telemóvel, ou atrás de um computador. Como é que filmas isso? É chato. Mais engraçado quando vês as pessoas a teclar naqueles aparelhos antigos do Jurassic Park (Parque Jurássico, 1993).
CN – Sinto que o papel da televisão e outros detalhes desarrumam, por vezes, as cenas. De vez em quando estamos a seguir um fio de acção até banal, compreendemos exactamente o que está a acontecer e surge uma pequena coisinha que torna o simples em algo inquietante. Lembro-me da placa que diz Fora de Serviço que termina uma das cenas do Até ver a Luz. Ou, esses comentários televisivos que te deixam meio baralhado, à procura de hipóteses para ler a cena. Tornam o papel do espectador em algo activo.
São sugestões, sim.
CN – Acho que o papel do realizador também é esse, o de escolher detalhes que complexificam, que baralham os simplismos. Não tanto o de clarificar. A simplificação vem antes, na planificação, na escrita.
Eu tenho sempre as minhas ideias para cada uma das minhas escolhas, mas elas estão tão na minha cabeça, o que torna, por vezes, difícil que se perceba facilmente o que as originou.
CN – E ainda bem…
RVL – Os filmes vão brincando com o facto de seres suíço. A Suécia que não é a Suiça, etc…
Sim. Gosto de me meter com eles. E depois como não tenho actores suíços gostava de ter alguma coisa que se relacionasse com isso.
RVL – Este filme é integralmente uma produção suíça. Isso é porque não consegues arranjar dinheiro cá?
Não. Foi por uma questão de rapidez. Estava com pressa.