Caderneta de Cromos é um questionário breve, mais ou menos imbecil, sobre o mundo do cinema, em geral, e sobre o mundo em toda a sua inteireza, em particular. Ricardo Gonçalves é montador de cinema e televisão, autor do blog CineArte, estudioso da cultura nipónica e de Monica Bellucci. Actualmente, encontra-se a finalizar a montagem de um documentário sobre o actor João Villaret para a RTP.
1. Dado que, muito provavelmente, é em 2020 que entraremos num cenário apocalíptico à escala mundial, iniciamos com a seguinte questão: que filme tentarás preservar a todo o custo?
Preservava, sem dúvida alguma, o negativo original de 35mm do mítico 1ª Vez 16mm (2008) de Rui Goulart. Trata-se de um filme sobre o cinema que o assume como a arte total que é: um filme com planos, com som, com pessoas dentro dos enquadramentos numa geografia de mise-en-scène que lembra Ozu mas também Gerard Damiano, com música em pelo menos uma cena, um argumento que não se vê nem se entende, mas se adivinha nas entrelinhas. É uma obra em permanente estado de devir, tão fugaz e imperceptível como a duração de quatro planos num blockbuster do Michael Bay, tal e qual como a vida. Além disto tudo, seria, para a raça de extraterrestres que um dia viesse explorar este pobre terceiro calhau a contar do Sol e encontrasse esta obra-prima dentro do frigorífico que em tempos salvou o Indiana Jones, um alívio filosófico por constituir a prova definitiva de que não se perdeu grande coisa com a erradicação da humanidade.
2. Após um almoço perfeito com a Monica Bellucci, convida-la para ver a colecção de matrioskas que tens na tua sala de estar. Estás com ela à porta de casa, tiras as chaves, abres a porta, entram. Ela pergunta-te onde é a cozinha para te fazer um delicioso apéritif italiano. Mostras-lhe o caminho, ela segue-o. Enquanto ela prepara a sua sublime especialidade, entras no quarto sozinho, acendes a luz e… lá dentro encontras a Ana de Armas. Diz-te ela: “Vi a tua porta de casa aberta e entrei porque tínhamos combinado tomar um drink de fim de tarde” (algo de que te tinhas inexplicavelmente esquecido). Nenhuma sabe da presença da outra. O que fazes?
Acho que esta é a parte em que eu acordo. Por isso, o melhor talvez seja tomar um duche…
3. Que filme português achas que daria um bom manga?
Os Verdes Anos (1963) dava um excelente manga, o que não é de admirar dada a afinidade do realizador Paulo Rocha com a cultura nipónica. Com as devidas adaptações culturais, ficaria no ponto: a Isabel Ruth passava a ser uma magical girl que, à noite, combate o crime num mundo alternativo chamado Avenidas Novas (muito parecido com uma certa zona lisboeta da vida real, mas com rendas que dão para pagar sem vender um testículo e um pulmão no mercado negro) enquanto é empregada doméstica e estudante do ensino secundário durante o dia; o Rui Gomes seria o seu Guerreiro Mascarado que aparece sempre para a salvar na hora H com um cravo na boca (repararam na subtileza da simbologia política?), escondendo a sua verdadeira identidade quotidiana de jovem bishonen emo-goth com tendências hikikomori que é artesão de Typical Portuguese Gourmet Shoes© a recibos verdes na oficina do tio, um empreendedor que gasta tudo o que ganha no pachinko. No fim, e alerta de spoiler para quem ainda não viu o filme, acaba tudo de forma trágica com o protagonista masculino a assassinar a sua amada por nenhuma razão específica e, para tornar o horror ainda mais horrendo, cometendo seppuku em frente a inúmeras e opressoras bicicletas (isto porque, no mundo mágico das Avenidas Novas, o Real Presidente Salgado proibiu a circulação automóvel e instituiu a obrigatoriedade do uso da bicicleta na cidade a todos os cidadãos e visitantes que não sejam milionários e/ou altos funcionários da CML).
4. Qual destes dois alterarias para uma versão verdadeiramente funcional: os sistemas informáticos da Segurança Social ou o Ministério da Cultura?
Isso é como perguntar se preferia acabar com a fome no mundo ou fazer reinar a paz em todo o planeta Terra. Como se tratam de duas entidades fundamentais numa sociedade civilizada, adoraria acabar com alguns dos absurdos kafkianos que parecem estar existencialmente grudados a ambas. Falo de coisas como a acumulação de juros de dívidas nunca anunciadas aos utentes durante anos, o envio de e-mails que nos remetem para mensagens inexistentes na SS-Directa, concursos para primeiras obras em que o currículo e a experiência dos candidatos é um dos principais elementos de avaliação, nomeação de pessoas para cargos de poder que encaram o diálogo com o sector como um obstáculo que nos afasta das coisas verdadeiramente importantes da vida como os copos de fim de tarde, etc. Mas tenho aprendido a ser menos ambicioso e mais realista, por isso digo que seria mais razoável tentar algo de maior simplicidade como, por exemplo, produzir uma adaptação da trilogia d’O Senhor dos Anéis só com patrocínios das câmaras municipais e das MultiOpticas da vida.
5. Que filme da História do cinema te pareceu sempre tão necessitado de uma melhor montagem a ponto de estares disposto a fazê-la pro bono?
Há vários. Assim de repente, ocorre-me que o Funny Games (Brincadeiras Perigosas, 1998) do Michael Haneke beneficiaria muito de uma simples operação que consiste em marcar, numa timeline de um software de montagem, um ponto de entrada aos 00:03:41:00 (aprox.); depois assinalar um ponto de saída por volta dos 01:42:05:00 e por fim, carregar no botão que diz “lift/delete”. À falta de um bom filme, ficamos com uma ficha técnica fantástica que se vê com gosto e que é muito completa. E, assim, podíamos pelo menos tentar esquecer que o homem que fez o maravilhoso Amour (Amor, 2012) também fez isto…
6. Qual é o cineasta cuja obra e/ou personalidade descreva adequadamente o dono da coelha Acácia?
Alguns cínicos estarão, certamente, à espera que eu responda com o nome da Leni Riefenstahl por motivos de índole política – mas isso não seria correcto, até porque a Riefenstahl filmava francamente bem e as suas obras, não obstante a sua ideologia abjecta, possuem uma qualidade formal inegável e mantêm uma linha de pensamento lamentável mas, ainda assim, coerente, o que desde logo torna impossível qualquer eventual paralelo com os feitos do tutor* da coelha Acácia. Para encontrarmos algo que faça um genuíno raccord estético e ideológico, temos de ir à obra e à pessoa de Uwe Boll, um cineasta alemão que nunca deveríamos esquecer. Não é tanto por o trabalho de ambos se caracterizar por uma completa ausência de ideias, pela balda a nível formal, pelas contradições e buracos na argumentação ou no argumento, pela abundância de lugares-comuns e outros etc. Estou a falar de uma semelhança mais profunda, espiritual até. Afinal, Boll é alguém que realizou a proeza de, durante anos, fazer um flop artístico e comercial atrás de outro flop artístico e comercial sem nunca deixar de conseguir convencer investidores a meter mais dinheiro nos seus filmes. As más e boas línguas dizem que isso acontecia devido a um complexo loophole no sistema de financiamento estatal alemão que permitia recuperar o montante investido através de uns obscuros incentivos fiscais – ou seja, aquilo a que poderíamos apelidar cientificamente de “chico-espertice financeira”. Sendo consultor de vistos gold, o tutor da coelha Acácia sabe muito bem o que isso é. A parte boa desta história é que, como é habitual nas biografias dos vendedores de banha da cobra, a certa altura o esquema deixou de funcionar e Boll viu-se obrigado a mudar de carreira, estando actualmente (de acordo com a Wikipedia) a trabalhar no sector da restauração. Por isso, e como gosto muito de coelhinhos fofinhos, há que resistir ao pessimismo e acreditar que, daqui a uns anos, a única coisa em que o tutor da Acácia estará a mandar será no processo de selecção de cenouras para o seu adorável animal de estimação. A Acácia merece esse final feliz – e nós também.
* – Hoje em dia já não se pode dizer que somos “donos” de um animal, agora o termo que se considera adequado é “tutor”. Querem que eu seja massacrado pelos eleitores do PAN?!?
7. Descreve um remake do Gisaengchung (Parasitas, 2019) feito pelo Philippe Garrel com duas sequências de montagem paralela que fariam o Eisenstein roer-se de inveja.
Podia humildemente confessar que não tenho um conhecimento suficientemente aprofundado da obra de Philippe Garrel para imaginar como seria esse hipotético remake com sequências de montagem paralela que deixariam o Eisenstein, o Pudovkin e restantes camaradas da mesa de montagem a largarem as moviolas e steenbecks soviéticas para se dedicarem à pesca da sardinha… mas mais vale admitir que tenho aquilo a que os teóricos anglo-saxónicos descrevem como “resentment by proxy” a esse senhor. Isto porque o seu filho, o actor Louis Garrell, cometeu o crime imperdoável de retirar a Laetitia Casta do mercado das mulheres heterosexuais disponíveis para amar, e essa é daquelas ofensas que nem a melhor linhagem ou talento cinematográfico conseguem atenuar. Não se pode destruir as fantasias de pós-adolescência de uma pessoa de forma tão cruel e esperar que não existam repercussões como, por exemplo, servir de bode expiatório em respostas evasivas a perguntas de questionários que não nos envolvem directamente…
8. Como seria a trilogia d’O Senhor dos Anéis subsidiada por um financiamento do ICA?
Na realidade, vejo três hipóteses distintas – uma trilogia de respostas, se quiseres:
1 – Seriam cinco frames de animação 3D muito intensos e de elevada qualidade técnica, divididos em três capítulos distintos. Ou seja: o primeiro filme teria a duração de 00:00:00:02, o segundo idem e o terceiro atingiria o clímax da narrativa e marcaria a história do cinema como a primeira longa-metragem constituída por um único fotograma, metade do qual seria obviamente ocupado pela ficha técnica, que é sempre maior nestes capítulos conclusivos.
2 – Uma trilogia com cenários de esferovite em que os Hobbits nunca saem do Shire. Para captar a essência do texto de Tolkien em todo o seu esplendor, o primeiro filme seria apenas um longo plano-sequência (mas muito bem enquadrado e iluminado) de Frodo Baggins a ler o texto d’A Irmandade do Anel na íntegra, enquanto fuma um cachimbo sentado no coto de uma árvore derrubada. O actor faria as vozes de todas as personagens e a interpretação querer-se-ia ‘épica’ numa má interpretação do sentido Brechtiano do termo, isto é, sem um pingo de emotividade, de modo a não possibilitar a identificação do espectador com as personagens ou com a acção forçando-o, ao invés, a absorver devidamente a beleza sonora das línguas existentes no livro e a receber a mensagem política que o realizador quiser transmitir (se não tiver nenhuma, também não é grave). Na adaptação do The Two Towers (As Duas Torres, 2002), teríamos uma autêntica revolução formal ao usarmos o mesmo dispositivo do plano-sequência só que, num rasgo poético, este seria constituído por um único travelling lateral face ao actor durante 180 minutos, só para mandar um manguito a quem tivesse dito que o primeiro filme era muito parado. Por fim, The Return of the King (O Regresso do Rei, 2003) seguiria o mesmo princípio artístico da leitura integral do texto de Tolkien, só que desta vez seria o primeiro filme da história com um plano inteiramente a preto E em 3D 4K com som surround Dolby Atmos. Regue-se tudo isto com um cameo do Quim Barreiros na cena final ao som de Bach (simbolizando assim a fusão entre cultura popular e a cultura erudita) e é só tirar do forno e servir ao incauto espectador.
3 – Até se conseguia fazer a trilogia de forma competente, com resultados surpreendentes para um orçamento tão limitado (afinal, o cinema português é pródigo em fazer muito com pouco dinheiro), só que no final ninguém era pago pelo filme a não ser o produtor, isto se não tivesse perdido o dinheiro todo no casino algures durante a rodagem. Talvez no próximo filme subsidiado, talvez…
9. Um pouco de serviço público aos 99% das pessoas que, quando chega a altura dos óscares, confunde uma categoria com a outra: propõe um par de analogias que ajudem a distinguir a montagem de som da mistura de som.
Deixem-me confessar-vos um segredo chocante que só descobri recentemente: os membros da Academia, incluindo tanto os que fazem as nomeações há décadas como aqueles que foram nomeados, também não sabem distinguir, e nunca souberam!!! É tudo uma conspiração paga pelo George Soros para alimentar a elite liberal de Hollywood, mantendo os técnicos de som debaixo do seu jugo marxista ao atribuir-lhes mais prémios por cerimónia do que aos restantes sectores técnicos. Durante anos, ninguém se queixou e todos fingiram perceber claramente quais as diferenças entre as duas categorias sem, porém, chegarem a explicá-las a qualquer órgão de comunicação social – até porque nunca lhes perguntaram… Eis que, em 2020, sob imensa pressão do Twitter e dos influencers do Instagram, vários membros prestigiados da academia afirmam que é altura de deixarem-se de tretas e fundir as duas categorias numa única na cerimónia do próximo ano, mesmo que para isso tenham de enfurecer o Soros – e então aparece a COVID-19 no ocidente! Coincidência? Deixo à vossa consideração…
10. Inventa a sinopse de um filme que contenha os quatro termos seguintes: “okapi”, “goma xantana”, “empáfia” e “vade-mécum”.
Num mundo povoado por gomas xantanas promovidas pela Cristina Ferreira™ no programa da manhã/tarde (riscar o que não interessa), um Okapi banal irá partir para Portugal em busca do misterioso vade-mécum que contém uma revelação controversa sobre a descendência de Jesus. Conseguirá o Okapi superar os seus obstáculos e chegar à verdade? Ou irá sucumbir à empáfia de um treinador de futebol que partilha o nome com o protagonista d’A Bíblia?