Je l’embrassai, stupéfait de mon audace, alors qu’en réalité c’était elle qui, lorsque j’approchais de son visage, avait attiré ma tête contre sa bouche. Ses deux mains s’accrochaient à mon cou; elles ne se seraient pas accrochées plus furieusement dans un naufrage. Et je ne comprenais pas si elle voulait que je la sauve, ou bien que je me noie avec elle.
Raymond Radiguet, Le Diable au corps
Quando tiveram início as filmagens de History Is Made at Night (Um Ladrão na Noite, 1937), pouco mais havia de argumento além do título. E que título! Andrew Sarris referiu-se a ele como “the most romantic title in the history of the cinema”. A rodagem foi caótica, as cenas iam sendo filmadas à medida que o argumento ia sendo escrito, com vários nomes a serem substituídos já durante as filmagens (apesar do seu papel importante na feitura do filme, os nomes de Gregg Toland, Joshua Logan e Arthur Ripley acabariam por não figurar nos créditos iniciais do filme).
Talvez estas circunstâncias possam ajudar a explicar o facto de History Is Made at Night ser um animal estranho, difícil de definir, que assenta numa mistura de géneros – comédia romântica, policial, melodrama, comédia sofisticada, filme-catástrofe. Se Lauro Dérmio, a mítica personagem criada por Herman José, utilizava o conceito de filme-champô (o filme dois em um), aqui o que temos é um filme-lanche-ajantarado, em que há um pouco de tudo para todos os gostos.
Perante esta amálgama de géneros e de fios narrativos não deixa de ser miraculoso que seja possível, ainda assim, sobressair o cunho de Frank Borzage. Os amantes ali estão, sozinhos contra o mundo, capazes de ultrapassar todas as adversidades, contemplando o céu, enquanto aguardam por um milagre capaz de fazer vingar o valor supremo do amor.
A estranheza do filme faz-se, desde logo, notar na cena inicial, com uma Jean Arthur senhora rica, ela que sempre foi a eterna working girl a tentar tirar o máximo proveito dos seus parcos tostões (recorde-se o momento em que, em Easy Living (Uma Pequena Feliz, 1937), ela introduz uma faca no porquinho mealheiro, numa tentativa vã de recuperar a última moeda que lhe resta). Como bem notou James Harvey [1], a Jean Arthur, apesar de ser uma das figuras maiores da screwball comedy, faltam quase todas as características de uma figura feminina típica deste género – nunca aventureira, nem milionária, nem denotando falta de juízo. “Miss Average American” é o justo título que que lhe é atribuído por David Shipman [2]. Miss America é o título usado por Paul para rebaptizar uma salade chiffonade, em honra a Irene.
Mas vamos então a esta história feita noite adentro. Charles Boyer é Paul Dumond, um chefe de mesa que, numa noite, em Paris, acaba por salvar uma dama em apuros. Esta dama em apuros é Irene Vail (Jean Arthur), uma mulher casada com um construtor naval milionário e doentiamente ciumento (Colin Clive). O marido, perante a ameaça da mulher em pedir o divórcio, decide montar-lhe uma armadilha: envia o seu chauffeur ao quarto dela para a seduzir, com o intuito de apanhar a mulher em flagrante adultério. É no preciso momento em que Irene tenta resistir aos avanços do chauffeur que surge Paul Dumond. As coisas complicam-se e Paul, fazendo-se passar por um ladrão, acaba por salvar a honra e o corpo de Irene, raptando-a. Parece rebuscado? Sim, é.
Mas deste prelúdio atribulado passamos para um reduto mágico onde Irene e Paul vão descobrir-se e descobrir o amor. Os ciúmes e manobras de Bruce acabam por ter o efeito contrário ao pretendido – Irene encontra o amante que Bruce imaginou, mas que, até então, nunca tinha existido. Mais tarde, Irene dirá a Bruce: “Don’t you think that’s funny? Before he came, I never even looked at another man. But you wouldn’t believe me! So you created one, and you sent him right into my arms…”.
E, talvez porque existe esta conversão de Irene e a fé inabalável de Paul, todos os seus beijos e abraços são inundados de um enorme desespero, de um haurir a esperança até à sua derradeira gota. É também este o desespero que vemos no rosto de Jean Arthur e que a torna tão singular aos nossos olhos – a “nossa” Jean Arthur encararia a vida airosamente e seria capaz de rir-se na cara da adversidade. Nesta Jean Arthur, coberta de roupas luxuosas, peles e jóias, encontramos constantemente a pequena lágrima pousada no canto do olho e o semblante carregado, sendo-lhe apenas permitidos fugazes momentos de alegria quase pueril (como sonhos de criança). Ela encontrou inadvertidamente a sua tábua de salvação em pleno naufrágio e sabe que é imperioso agarrá-la com todas as suas forças. Sorver um beijo como quem sorve a vida.
Paul conduz Irene para o restaurante onde, iremos mais tarde saber, ele trabalha como chefe de mesa. Paul seduz Irene gastronomicamente, apresentando-lhe um sumptuoso cardápio – lobster cardinal à la Cesare, salade chiffonade e champanhe Pink Cap ‘21. Na cozinha está o melhor amigo de Paul, o cozinheiro Cesare, que, apesar de muito barafustar, acede a todos os pedidos do amigo (depois de alguma bajulação). Esta é, aliás, a segunda história de amor do filme, marcada pela devoção total e mútua que liga Paul e Cesare.
Ao que parece, o magnífico jantar acaba por nunca ser degustado. Isto porque, entretanto, Irene e Paul já cortaram amarras do mundo. Paul convida Irene para dançar por intermédio de Coco, uma bonequinha que ele desenha na sua mão, mais por timidez de Irene do que pela sua própria falta de coragem. Irene começa então a despojar-se de tudo o que representa o marido e que a faz sentir deslocada (ela, que não passa de uma miúda simples vinda do Kansas). O momento maior deste despojamento acontece quando ela chuta para longe os seus saltos altos e começa a dançar descalça. Não esqueçamos que ela foi “roubada” ao seu leito, por isso veste apenas um négligé e um casaco de peles. Assim dançam eles durante toda a noite. E é um pedaço de eternidade qua acontece nessa noite. No dia seguinte, Paul afirmará mesmo que conhece Irene há muito tempo, desde as 23h da noite anterior (curiosamente, as referências às horas são constantes durante todo o filme, apesar de continuadamente sentirmos um enorme distanciamento face a tais trivialidades).
Borzage baralha e volta a dar todas as cartas do conto de fadas: o príncipe Paul leva a princesa Irene para o castelo – Château Bleu, o nome do restaurante –, pela meia-noite a Gata Borralheira transforma-se em menina pobre para ir ao baile, perde o sapatinho e, ao voltar a casa na sua carruagem, recuperou já as suas vestes nobres. Ao contrário do que sucede no conto de fadas, em que a Gata Borralheira alimenta a esperança de que, apesar das suas vestes andrajosas, possa ser perceptível o seu carácter nobre, no filme de Borzage, Irene pretende tornar visível a sua natureza humilde apesar das peles e jóias de senhora da alta sociedade.
Esta noite mágica será reproduzida num outro restaurante, em Nova Iorque (uma das repetições que abundam no filme – dois restaurantes, duas travessias, duas cidades). Irene e Paul simulam um idílio doméstico, partilhando o pequeno-almoço improvisado na cozinha, em harmonia perfeita de manhã seguinte. É uma nova partilha de intimidade que não surpreende porque, mesmo quando Irene se vê forçada a deixar a Europa e a atravessar um oceano, nunca deixamos de acreditar que ela está tão próxima de Paul como nunca, que há uma união que já não poderá ser desfeita na terra. Paul decide abrir um novo restaurante em Nova Iorque alimentado apenas pela fé de que, um dia, Irene entrará pela sua porta. E também nós acreditamos que tal é possível.
No conto de fadas, Bruce seria a madrasta. Ele é o amante danado, aquele que, amando cegamente Irene, a cada tentativa de recuperá-la, acaba por impossibilitar de forma irreversível qualquer possibilidade de ver o seu amor ser correspondido. O seu amor (a sua obsessão?) está destinado ao fracasso, porque ele ama a Irene que tentou construir (um pouco como o Dr. Frankenstein do mesmo Colin Clive havia construído uma noiva para o monstro), uma mulher que apenas existe nos retratos que ele idolatra (e quantos retratos destes existem no cinema, fonte de tantas outras magníficas obsessões!).
Depois de mais algumas peripécias que, depois do seu reencontro, levam Irene e Paul a regressarem a Paris, Bruce tem o seu derradeiro ataque de ciúmes. Bruce havia regressado a Paris no Hindenburg e, sabendo que eles irão viajar a bordo do seu navio Princess Irene, que realiza a sua travessia inaugural (a maiden voyage do Princess Irene, algo que parece dar corpo ao desejo de Bruce fazer da sua mulher novamente donzela), dá instruções para que a velocidade do navio seja aumentada, apesar da presença de icebergs na noite fria e nebulosa (uma sequência que imediatamente remete para as diversas vezes em que a tragédia do Titanic foi retratada no cinema). Bruce não hesita em sacrificar 3000 passageiros na tentativa de evitar que a mulher o abandone na companhia do seu amante. Confrontado com o desastre que se adivinhava, Bruce tem o primeiro momento de lucidez em todo o filme, quando para ele se torna insuportável a realidade do seu acto. Dispara então o tiro final, o tiro de misericórdia para aquele que amou e foi vencido pelo ciúme – um tiro que ouvimos de forma nítida, ao contrário da morte do chauffeur que tinha acontecido longe dos nossos olhos. São, aliás, estranhos os vários ecos de morte com que nos vamos deparando ao longo do filme – não só o desastre do dirigível Hindenburg, que acabaria por ter o seu fim trágico ao tentar atracar em Lakehurst, poucos meses depois da estreia do filme, mas também a morte de Colin Clive que ocorreria também naquele ano de 1937, em resultado de complicações decorrentes de uma tuberculose.
Voltando ao navio Irene, e já na iminência da salvação, vemos as caras sorridentes dos passageiros que, momentos antes, encaravam a de frente a possibilidade da morte. Como se encarnassem, de forma visível, a fé na salvação pelo amor (não podemos deixar de sentir que Irene e Paul são os anjos da guarda que, estando presentes no barco, tornam a salvação possível). Estas caras assemelham-se às caras, também elas sorridentes, que surgem no final de Sullivan’s Travels (A Quimera do Riso, 1941), de Preston Sturges, numa salvação de diferente índole – uma salvação, não pelo amor, mas antes pelo humor.
A travessia de History Is Made at Night é feita por um mar tumultuoso, feito de caos e de desordem, mas chegando a bom porto. Não deixa de ser acertado que assim seja – afinal, o amor nunca é prudente ou bem ordenado. O amor e tudo o resto.
– I suppose it’s love or something.
– Love and everything!
[1] James Harvey, Romantic Comedy in Hollywood: From Lubitsch to Sturges (Da Capo Press, 1998)
[2] David Shipman, The Great Movie Stars 1: The Golden Years (Macdonald, second revised edition, 1989)