Está na hora. “Consegui um lugar mesmo à porta!” Foi milagre. Junto ao Cinema Nimas nunca há sítio para estacionar. “Espero é não ser multado, têm sido tantas nestes últimos dias…” Vamos para começar, mas antes só um cigarrinho, aliás, meio. Mário Barroso parte o cigarro em dois, deita fora a parte de cima, fica com a beata, fuma-a e afirma, “eu não fumo.” A conversa corre animada. O assunto central: Ordem Moral (2020), a sua nova longa-metragem como realizador, inspirada na figura de Maria Adelaide Coelho da Cunha (1870-1954), primeira herdeira do Diário de Notícias, mulher emancipada que larga marido, filho e a sua posição social para fugir com o motorista, vinte anos mais novo (para logo ser capturada, internada num asilo psiquiátrico, diagnosticada como louca pelas sumidades médicas da época – Egas Moniz e Júlio de Matos – e “aliviada” do peso da sua herança).
Mas esta mais recente obra de Mário Barroso enquanto realizador serve também como rastilho para percorrer as suas anteriores incursões na realização, mas também, o seu trabalho de quase quatro décadas como director de fotografia de alguns dos mais importantes realizadores portugueses. Os filmes que rodou com Manoel de Oliveira [com destaque para Vale Abraão (1993)], João César Monteiro [nomeadamente A Comédia de Deus (1995) e Branca de Neve (2000)], António-Pedro Vasconcelos [Oxalá (1981)], Monique Rutler [Jogo de Mão (1983)] e Carlos Saboga [os dois últimos, Photo (2012) e A Uma Hora Incerta (2015)] são aqui também recordados. O director de fotografia e realizador é um conversador cheio de histórias para contar. Num ápice passou quase uma hora e meia, e o tempo esfumou-se na simpatia franca de uma entrevista que mais pareceu, segundo o próprio, uma “sessão de psicanálise”. Recline-se no divã e conte-me tudo.
Em Ordem Moral conta-nos a história da Maria Adelaide. Esta é uma história que, apesar de pouco conhecida, já foi trabalhada algumas vezes antes. A Agustina Bessa-Luís (no folhetim Doidos e Amantes), a própria Maria Adelaide, que escreveu uma série de denúncias nos jornais da época e a realizadora Monique Rutler, que fez Solo de Violino (1990). Queria perceber como desenvolveu a história, com o seu argumentista, o Carlos Saboga, e como contornou estas outras adaptações ou se, em alternativa, foi buscar algo a cada uma delas.
Quer que eu lhe conte a história verídica da génese deste filme? É longa, mas acho que é importante para se perceber como é que isto aconteceu.
Se soubesse que a Monique Rutler já tinha feito um filme sobre a Maria Adelaide provavelmente teria recuado. Não me interessava fazer um remake…
A primeira vez que ouvi falar da história da Maria Adelaide eu devia ter entre os 11 e os 14 anos e foi através de um tio improvável. Digo que era improvável porque ele não era bem meu tio – era o tio coronel – e também porque era salazarista, ao contrário de todas as outras pessoas da família. Na altura era subdirector do Diário de Notícias. Um tipo com muita graça, que escrevia para o teatro de revista, mas muito ligado ao regime. Eu, miúdo, adorava ir lá a casa e ele contava-nos, aos meus irmãos e primos, histórias que eu achava muita graça. Um dia ele contou-me a história da Maria Adelaide, mas não liguei nenhuma. O que é que me interessava a história de uma mulher que foge com o chauffeur? Foi a primeira vez que eu ouvi a história dela. Sessenta anos depois… [risos] o Paulo [Branco] pediu-me para escrever qualquer coisa – “não fazes nada, és um preguiçoso, ao menos para existires escreve uma sinopse, um projecto”. E eu escrevi, mas nessa altura ainda não tinha lido nada, nem a Agustina, nem o livro biográfico Doida Não e Não da jornalista Manuela Gonzaga. E não tinha visto, nem me lembrava sequer, que a Monique Rutler tinha feito o filme dela. Se soubesse provavelmente teria recuado. Não me interessava fazer um remake…
Escrevi a dita sinopse, foi uma coisa um bocado inventada, o Paulo mandou-a para o ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual] e obtive ajuda à escrita do argumento. “E agora?” perguntei, e o Paulo, “Agora tens que escrever…” Só que nunca mais peguei nisso, fiquei doente durante bastante tempo e passei por um período de grande tristeza. Quase como forma de contrariar isso comecei a escrevê-lo sozinho. Quando o Paulo me disse que ia enviar o argumento para o ICA, disse-lhe que não o podia fazer, é absurdo, “isto não tem ponta por onde se lhe pegue”. Foi aí que entrou o Carlos, que rescreveu tudo e compôs um argumento que já não tinha nada que ver o que eu tinha feito, e que já era baseado numa pesquisa mais aprofundada sobre a vida da Maria Adelaide.
Mas o argumento é apenas assinado pelo Carlos Saboga.
Sim, eu nunca me meto nisso. Trabalho sempre na escrita e rescrita do argumento, mas nunca quero ter créditos por isso. O coração do argumento é o Carlos, que é, no meu ponto de vista, um grande dialoguista. Mas note-se, não é um biopic. Se alguém conhecer a história de vida dela, até me vai acusar de não a respeitar. O meu filme é só inspirado na história dela.
O filme depois, na sequência final, faz uma referência directa à Agustina, quando a Maria Adelaide comenta: “Era bom era que a Agustina escrevesse a nossa história.”
Talvez o Doidos e Amantes da Agustina desse um filme, outro filme.
Eu li muitos livros da Agustina. E li-a pela “ordem”, comecei, logo na altura, pela A Sibilia (1954), que é o que aparece no final do filme [editado pela primeira vez no ano da morte de Maria Adelaide]. E tive a sorte de a conhecer, ainda muito viva e eficaz, enquanto trabalhava com o Manoel de Oliveira. Era uma linguazinha de víbora, mas que eu achava imensa graça. Mas claro, o livro que a Agustina publicou sobre o romance da Maria Adelaide e do Manuel Claro não tem nada que ver com este filme. Aliás, porque como foi originalmente publicado como um folhetim, no jornal O Independente, a estrutura é quase impossível de adaptar. Talvez desse um filme, outro filme. Houve, no entanto, um pormenor do livro dela em que me inspirei, e que se prende com a possibilidade, aberta por ela, de que o Manuel Claro seria homossexual.
O filme é sobre esta mulher emancipada que, a certa altura, conhece este Manuel Claro e abandona toda a sua classe, a sua herança, a sua família, “por amor”. Mas acho que o desenlace do filme, a última cena, é um bocadinho agustiniana na medida em que é bastante maldosa. Apesar de tudo, a relação deles continua a ser a da senhora e do motorista.
Eu não fiz uma pesquisa historicamente aprofundada, até porque me sentiria muito bloqueado. Fazer um biopic deve ser uma chatice porque é-se obrigado a seguir a realidade dos factos. Às vezes, a realidade não tem interesse nenhum.
Entretanto, o Mário acabou por ver ou rever o filme da Monique?
Então, nesse livro da Manuela Gonzaga – que é um livro série sobre a história dela, mas que eu também não quis seguir de forma nenhuma, aliás já tinha o argumento praticamente terminado quando o li – é que eu descubro sobre a adaptação da Monique. “É pá!” Não só conheço a Monique como até fiz a direcção de fotografia de um filme dela [Jogo de Mão (1983)]. Não vi antes, era tudo o que eu não podia fazer. E ainda não vi, nem sei se existe em DVD.
Não existe, de facto. Mas por acaso vi-o, para preparar a entrevista, e é impressionante como, sem o Mário ter visto, há algumas coisas que são muito parecidas. Não só na história, naturalmente, mas inclusivamente nos pormenores. Por exemplo, no Ordem Moral há uma sequência com laranjas quando ela vai a casa do Manuel Claro. E é exactamente uma cesta de laranjas que se encontra no quarto da casa para a qual eles fogem, da primeira vez, no Solo do Violino.
Eu nem sabia o que estava no saco… Era a decoradora que ia trazendo. Podiam ser couves, laranjas, nabos. Mas a laranja até ajuda porque tem uma cor bonita.
E deve ter sido provavelmente por esse motivo que a Monique quis pôr as laranjas no filme dela. É muito engraçado porque o filme do Mário complexifica muito mais este casal romântico, através de todas as outras personagens que os rodeiam.
Todas fictícias.
Mas este é um aspecto que encontro várias vezes em todos os filmes que o Mário fez. São filmes com muitas personagens: filmes corais. Até no seu primeiro filme, o telefilme que fez para a SIC, o Aniversário (2000).
É pá! Não me lembro de nada! Lembro-me que o fiz, do prazer imenso que tive a fazê-lo, mas não me recordo de mais nada. Como é que conseguiu ver isso? Gostava de o rever…
Está numa plataforma digital, a Filmin.
Como não me lembro bem, gostava de o rever. Quando o [António da] Cunha Telles me desafiou a fazer esse telefilme, fiquei muito entusiasmado, era a minha primeira longa-metragem, até então só tinha realizado uma ou outra curta, mas quando li o argumento fiquei destroçado. Porque o argumento era igual ao Festen (1998, Thomas Vinterberg), aquele filme do Dogma 95.
Realmente, a história é parecida...
Não é parecida porque eu e Carlos Saboga transformámos aquilo. Quando eu li aquilo, disse ao Cunha Telles, “isto é uma cópia.” Só que nem sequer era uma boa cópia, era uma cópia de Alcabideche. Nem sequer havia um fundo dramático credível para o protagonista, como havia no filme do Vinterberg. Conclusão: o Cunha Telles foi ver o Festen e percebeu que estava a meter-se numa possível encrenca. E por isso mudou-se um bocado. Disso eu lembro-me. Mas das caras do atores já nem me recordo.
Fui buscar o Aniversário apenas para reforçar que em todos os seus filmes há um ou dois protagonistas, mas depois têm uma panóplia de bons actores que os rodeiam.
Porque acho que ajuda a construir a história sem ser muito maçador.
E a acrescentar a esse gosto pela multiplicação das personagens secundárias, muitas dessas colectividades mantêm diferentes tipos de relações familiares e amorosas. Muitos dos filmes são sobre famílias complicadas, há, em quase todos os seus filmes como realizador, um pater familias meio-autoritário, que é necessário desafiar.
Sinto um certo pudor quando leio ou oiço entrevistas doutros realizadores (franceses, chineses, sei lá) que a propósito de filmes relativamente menores começam a citar o Orson Welles ou o John Ford. Por isso o que lhe vou dizer é para ser entendido com a devida distância. Em certa medida pela minha formação, mas até mais pela minha mulher, que é sueca, um dos cineastas que mais me marcou é o Ingmar Bergman. E dos filmes dele, aquele que eu devo ter visto mais vezes (e eu vejo poucas vezes o mesmo filme) foi o Fanny och Alexander (Fanny e Alexander, 1982). Vi-o quatro ou cinco vezes e fiquei sempre marcado pelas relações de família, do pater-familias, das casas…! Se se lembra um pouco do princípio do filme, na festa em casa, achei aquilo de uma beleza extrema e filmado de maneira primorosa. Quem me dera… E reforço, sinto um pudor imenso em estar a citar o Bergman.
É curioso que refira esse filme, onde o teatro tem uma enorme importância, sendo que esse é um dos “assuntos” que atravessa o Ordem Moral, desde o início até quase à última cena.
O teatro vem do facto de ela, Maria Adelaide, ser uma apaixonada do teatro. Mas aquilo é tudo inventado, em particular a cena da representação da peça do [Júlio] Dantas. Embora o Dantas fosse um frequentador da casa, aí tentei respeitar um pouco a realidade. Acho que a escolha da peça Sóror Mariana (1915) se adapta ao que se vai passar com ela e depois a peça do [August] Strindberg… E aqui tive uma grande cumplicidade com o Carlos [Saboga].
Mas essa componente do teatro dentro do filme tem uma série de possíveis leituras. O Mário numa entrevista referiu que o plano inicial do filme, em que a Maria Adelaide separa as madeixas de cabelo de modo a dar a ver a cara era como se fossem as cortinas do teatro a abrirem. Mas, de certa maneira, as cortinas abrem-se para um rosto. Ou seja, o rosto é um palco e o teatro uma encenação da identidade.
Pois, não era bem essa a… É uma encenação… Mas logo a seguir há a cena da entrada dela na divisão em que estão as amigas. Ela entra com o rosto coberto por tule…
…como se fosse uma múmia.
E quando entra atravessa, dramaticamente, uma cortina vermelha. Mas essa cortina vermelha estava lá. Tive a sorte de conseguir tê-la no décor. Aquele décor foi fundamental para o filme, é um sítio chamado Casa Veva de Lima. Um espaço que eu conhecia vagamente mas que me foi sempre recusado ao longo de toda a preparação. E tinha a vantagem de que estava praticamente como se vê no filme, já que não tínhamos muito dinheiro para ir para uma casa e decorar aquilo à época de 1917. Durante anos não me deixaram filmar lá e foi a três semanas de começar a rodagem que a Catarina Vaz Pinto desbloqueou o espaço, com uma série de compromissos meus sobre as condições da rodagem. Não usaria dollys, travellings, nada que pusesse em causa o soalho. Foi feito com tripé e um bocadinho de steadycam quando era necessário mexer.
Ainda sobre a questão do teatro, muitas vezes vemos a Maria de Medeiros como Maria Adelaide e sinto que ela está, muitas vezes, a encenar-se no dia-a-dia. Aquela sequência em que o filho e o marido estão a ler o jornal, ao pequeno almoço, e ela entra sem ser notada, logo depois repete a entrada… triunfal. A própria vida dela, a sua identidade, é teatral.
Quis ser actor, mas, felizmente, percebi depressa que para isso não tinha talento nenhum.
Sim, eu penso que aquilo é uma falsidade permanente, como todo o teatro. Eu sempre tive um grande fascínio pelo teatro. Quando era miúdo, interessava-me muito mais pelo teatro do que pelo cinema. Até porque, como sabe, a minha tia era a Maria Barroso, e eu gostava muito dela. Fazia muito teatro em miúdo e achava-o um bocadinho mais sério que o cinema. Quis ser actor, mas, felizmente, percebi depressa que para isso não tinha talento nenhum. E depois fiquei fascinado com esta mulher que abandona tudo. É uma história extraordinária, mas tinha medo de que alguém pudesse pensar que o meu interesse fosse oportunista, de me meter por uma perspetiva feminista. Acho que o filme foge muito a isso. O ponto de vista ideológico é praticamente inexistente. Agora, é a história de uma mulher livre ou que, pelo menos, quis assumir essa liberdade. Não tinha era imaginado as consequências.
Ainda sobre as questões da encenação da identidade, na sequência da peça do Strindberg [Fröken Julie (Miss Julie, 1888)] ela assume o papel de uma personagem masculina. Ela tem uma força e uma emancipação própria dos homens naquela altura. Não das mulheres, aliás é criticada várias vezes pelas amigas. E quanto ao Manuel Claro, inversamente, o marido diz que ele é efeminado, vêmo-lo a usar o roupão de senhora dela e há uma série de nuances mais ou menos subtis sobre a sexualidade dele.
Houve um livro que a minha mulher me deu a ler que conta a história de uma mulher rica que descobre um homem lindo que é vendedor de flores. Ela resolve trazê-lo para casa e, pouco a pouco, vai-o efeminando. E ela, progressivamente, vai-se masculinizando. A ideia ficou-me. Disse: “a Maria Adelaide vai começar-se a vestir-se mais com gravata.” Queria que fosse algo praticamente imperceptível. E depois vem a história dele com o robe em que ela lhe diz que com aquela roupa fica melhor sem pêlos no peito. Não fomos mais longe do que isso. Talvez tenha sublinhado isso demasiado na cena da despedida do Cícero, o amigo dele, mas não tinha mais material, não filmei o contracampo, era só aquele plano, e ficou aquela mão no rosto… Teria sido mais bonito se eu tivesse cortado… mas não tinha por onde cortar!
Mas em todos os filmes que o Mário foi realizando há muitas vezes personagens secretamente homossexuais ou que têm uma certa ambiguidade sexual. No Aniversário (2000) o filho machão é, na verdade, homossexual não-assumido perante a família. No Milagre Segundo Salomé (2004) é o personagem do Paulo Pires (ainda que seja muito ténue). No Um Amor de Perdição (2008) é o irmão do Simão, logo na cena de abertura do filme, numa cena de sexo debaixo do palco do teatro (de novo o teatro).
Eu vivi isso… Quando eu era miúdo estive no colégio e um houve um caso entre dois rapazes que foram apanhados, exactamente, debaixo de palco do teatro escolar. E um deles era um grande amigo meu. E foi daí que surgiu a ideia de começar o filme por aí.
Estas personagens, de certa maneira, estão a interpretar um teatro porque nenhuma delas é assumida, com excepção das mulheres. No Milagre Segundo Salomé há uma prostituta que é assumidamente lésbica e foge com uma sueca. E no Ordem Moral há também uma lésbica assumida das internadas do hospital psiquiátrico. Há sempre este lado teatral, de assumir uma persona diferente perante a sociedade e perante a família.
Qual é a razão? Não sei. Talvez seja o meu lado feminino. Provavelmente desde essa altura do colégio, por ser uma pessoa que me era muito próxima. E claro, naquela altura foi um caso chocante, era algo de que não se sabia. E provavelmente na sequência desse episódio passei a ser extraordinariamente tolerante e a ter, até, uma certa admiração pelas pessoas que têm coragem de assumir a sua sexualidade. Aliás… isto parece uma sessão de psicanálise. Uma das pessoas que teve por mim uma das maiores relações afectivas foi um homem. E isso teve em mim um tal efeito, tocou-me de tal forma, que eu disse, “vou tentar”, mas aquilo não funcionou.
Mas é o facto do Manuel Claro ser uma figura gentil, pouco masculina (no sentido pejorativo da palavra), quase apagada, que faz com que esta mulher tão forte se interesse por ele e se apaixone por ele. É quase uma espécie de crítica ao machismo, só que ao contrário.
Ela gosta daquele tipo, não é o marido, não é o filho, apaixona-se por um homem que não pode ser machista pela sua sensibilidade. A escolha do actor foi complicada (João Pedro Mamede)…
Que no filme anterior produzido pelo Paulo Branco, A Herdade (2019), também era um filho meio-efeminado e que o pai também reprova pelas mesmas razões.
É ele? É ele que o pai põe dentro da água fria?
Sim.
Bom, no que toca ao casting… Eu só consegui que o Carlos se interessasse pela história quando lhe disse que pensava na Maria de Medeiros. Ela está na génese do projecto sem eu ter falado sequer com ela, sem eu saber se aceitava ou não, se estava disponível ou não. E o resto do casting foi feito em função dela, embora também seja um casting afectivo. Sinto-me mais à vontade com pessoas com quem me entendo afectivamente, talvez até mais do ponto de vista profissional. Aparte aquela descoberta que continuo a achar que nasceu para isto que é o Albano Jerónimo, que eu só conheci n’A Herdade. Ainda tive vontade de ir pouco mais longe com o papel que lhe dei, mas não tive possibilidade porque estava a semanas de rodar quando ele entrou no projecto. Mas ele tem ali qualquer coisa: a presença, a voz, o olhar.
Ainda sobre a Maria de Medeiros e a personagem que ela interpreta, há dois factores que interessam para entender a personagem, para além da questão da identidade e da sexualidade. A primeira é a idade. O filme começa com os cabelos brancos dela, uma espécie de momento de viragem da vida dela quando deixa de ser jovem. E a própria Maria de Medeiros é uma actriz que, enfim, já tem alguma idade. Imagino que para uma actriz seja difícil fazer um papel sobre a sua própria velhice.
Ela fez. O que eu sei é que a Maria terá tido a certa altura receio. Também porque eu comecei por envelhecê-la no início do filme, com a maquilhagem.
Sim, ela vai envelhecendo progressivamente ao longo do filme.
Mas depois, quando ela foge, deixei-a voltar um bocadinho a uma imagem mais rejuvenescida, até por ela. Não era necessário. O envelhecimento da Maria Adelaide estava dado no início do filme. Eu sou muito sensível à fotogenia, e senti que não tinha o direito de carregar num lado que não era necessário. E, de facto, estou contente em não o ter feito.
E para além da idade, há a questão da classe. A Maria Adelaide é uma mulher rica, e não sendo evidente no filme, acho que ela tem uma espécie de consciência de classe, um remorso da posição social que ocupa pelo nascimento. Recorda-me um pouco o Ressurreição do Tolstoi, que acabei de ler há dias, mas com uma mulher.
Quando me fala nisso, de repente torna-se evidente. Mas não tinha pensado nisso.
De certa maneira, o Manuel Claro, é uma espécie de fuga airosa da culpa que ela sente por ser uma mulher rica de famílias ricas. O Mário acha que a Maria Adelaide tem esse remorso e que o Manuel é uma fuga para ela? Isto também à luz do passado político do Mário que o levou ao exílio na Bélgica quando tinha 20 anos.
Não fiz nunca um levantamento profundo de quem foi o Manuel Claro, mas interessou-me muito a ligação dele ao sindicato dos motoristas – “eles precisam de ti lá fora,” dizem-lhe, quando ele é preso. Tentei colocar alguns elementos que mostram que ele é um tipo culto, que sabe ler e escrever, enfim, que tem alguma formação. Queria dar-lhe alguma dimensão social. Mas sinceramente parece-me que ele seria um homem bastante anónimo.
A minha Maria Adelaide não é muito consciente do ponto-de-vista ideológico.
Remorso, não sei se terá. A minha Maria Adelaide não é muito consciente do ponto-de-vista ideológico porque eu queria fugir absolutamente da ideia de que ela pudesse ser associada ao movimento das sufragistas e do militantismo feminista da época. Não era necessário, e seria um pouquinho oportunista da minha parte por causa do MeToo e dos grandes movimentos feministas. Aliás, esta opção de afastar a personagem dessa realidade foi criticada por alguma pessoas da minha família. A minha mulher foi uma das dirigente do MLF (Mouvement de libération des femmes) nos anos 1960. Confesso que não li, com toda a sinceridade, o que a Maria Adelaide escreveu depois (o filme termina, não por acaso, nesse momento). Mas não me parece que ela tivesse uma consciência feminista. Ela tem uma consciência dela enquanto mulher e da recusa de viver um mundo insuportável de mentiras. Tudo aquilo é inventado: as amantes do marido, o papel do Cícero, o papel da Júlia Palha…
No filme da Monique, o marido também tem amantes.
Então é porque normalmente tinha, com certeza.
Já a personagem da criada, que tem sexo com o filho da Maria Adelaide e que depois fica grávida, surge no argumento como um aparte que não acrescenta muito ao arco narrativo principal. Mas está lá. Creio que para reforçar a revolta da Maria Adelaide sobre a forma como o corpo da mulher foi sempre dominado pelos homens (e materializado no aborto clandestino, feito excepcionalmente por um homem, que é de uma enorme violência).
Na altura, uma mulher assim ou era louca ou era prostituta. Prostituta o marido não podia aceitar, portanto, só podia ser louca.
Sabe o que é que nós fizemos? Em todo o discurso do Egas Moniz, não há uma palavra inventada por nós. Fomos ao que ele escreveu e retirámos frases. Aquilo era o que a ciência da época pensava sobre as mulheres. É aberrante que no início do século XX se tenha esta imagem da mulher, “um útero servido de órgãos”. É confrangedora a leitura. Agora, era o que eles pensavam na altura, era a ordem que reinava. Daí, aquilo ser apresentado um pouco como um complot por algumas das pessoas que pensaram o caso. Não é, no entanto, esse o meu ponto de vista. Aquilo foi o resultado de uma triste sucessão de coincidência. Isso não dou no filme, mas parece-me evidente. Diz uma miúda: “Ela quis foi humilhá-lo” (ao marido). E que a única maneira para que a humilhação não fosse muito violenta era considerá-la louca. Porque, na altura, ou era louca ou era prostituta. Prostituta ele não podia aceitar, portanto, só podia ser louca.
Mas o destaque que se dá ao Egas Moniz, ao Júlio de Matos… de certa forma dá ao filme uma dimensão de denúncia histórica ou uma maneira de recordar que a própria ciência (a medicina) é uma coisa dinâmica, constantemente em atualização e que não diz verdades.
Ainda hoje. Você já viu o que se diz a propósito da Covid? Daqui a 10 ou 15 anos, vamos a ver o que se diz sobre ele e o que é que se passou com isso. O meu pai era apaixonado pela medicina, estava sempre a ler, e disse-me sempre: “A medicina é de uma ignorância extrema. Nós não sabemos nada.” Sempre me falou disso. O meu irmão é médico e veio aqui com dois amigos médicos e disseram-me: “Nunca vi um ataque tão frontal à medicina.” Disse-lhe: “Não, eu não ataco a medicina, nem ataco a ciência. Pelo contrário.”
Pegando por aqui, há um espaço no filme, que é o do manicómio, e em particular o panóptico do Miguel Lombarda. Ainda que a verdadeira Maria Adelaide tenha estado presa no Porto, no Hospital Conde de Ferreira. Irem filmar lá é um pouco uma ousadia. Porque aquele é um espaço muito marcante do cinema português, por causa do Jaime (1974) e do Recordações da Casa Amarela (1989).
Foi por isso e foi o que mais me angustiou. Quero dizer, eu não me senti preocupado com este filme. Talvez aquilo tivesse saído mais forte se eu tivesse tido um bocadinho mais de ansiedade. O único sítio em que eu disse: “Eu não vou saber filmar aqui. Vai ser uma chatice, uma banalização.” Foi por causa do Jaime e das Recordações…. Tentei fugir ao máximo a isso. Mas o espaço, do ponto de vista cinematográfico, é extraordinário.
Quando estava a ver o filme, estava a pensar que a Maria Adelaide, quando saísse dali, “ia-lhes dar trabalho” (como o Luís Miguel Cintra diz ao João César). Mas o próprio espaço da “casa dos malucos” é um espaço recorrente do cinema português. O Manoel de Oliveira tem a sua casa de alienados n’A Divina Comédia (1991), o João César com o seu filme. Gostava de saber se, quando estava a escrever o filme e a pensar nele, se este espaço o atraía particularmente.
Não há ali citação nenhuma. Tive sempre uma grande preocupação: “como é que eu me desenrasco?” Já não vou falar dos filmes que vimos muitas vezes, como o Shock Corridor (Corredor de Choque, 1963), o One Flew Over the Cuckoo’s Nest (Voando Sobre um Ninho de Cucos, 1975)… Isso está feito e refeito. E depois o João César. E o Jaime. Acho que aquilo ainda tem uns desenhos do próprio Jaime nas paredes. E isso preocupou-me. E, de facto, não consegui fugir muito à banalidade daquilo que conheço.
Eu muitas vezes sinto, nos filmes do Mário, que o Mário está a filmar a tentar fugir do estilo das pessoas com quem trabalhou como director de fotografia.
Provavelmente a pessoa que mais me marcou não foi o João César, mas sim o Manoel de Oliveira.
Sim, o que é normal. Mas sente-se muito a influência. Provavelmente a pessoa que mais me marcou não foi o João César, mas sim o Manoel [de Oliveira]. Que mais me marcou e mais me ajudou como pessoa, mais nas conversas que tínhamos do que nas rodagens. Quero dizer, eu tomava o pequeno-almoço com o Manoel, eu almoçava com o Manoel, eu filmava com o Manoel, eu jantava com o Manoel… às vezes era um bocadinho demais. Mas eu acho que a maior parte das pessoas nem sequer tem consciência da imaginação daquele homem. Talvez não seja evidente nos filmes. Uma das coisas que me marcou muito, mesmo na minha maneira de enquadrar, mesmo fora dos meus filmes, é o ar em cima da cabeça das pessoas. Eu quando vou ao cinema e vejo que num filme se corta muito a cabeça, saio de lá, eu próprio, com a cabeça entre os ombros. Mas, por causa do Manoel, tenho sempre tendência a deixar ar quando enquadro, incluindo nos grandes planos. Essa tendência, a meu ver, só se consolidou a partir d’Os Canibais (1988), e uma vez terei dito, numa entrevista qualquer, que esse espaço remeteria para a presença de Deus.
Acho muita graça àquele plano muito famoso e bonito da Leonor Silveira junto à gaiola com o passarinho no Vale Abraão (1993). E o Mário no Um Amor de Perdição refaz isso, mas mata o passarinho.
[Risos] Exacto. Eu acho que nós não podemos fugir àquilo que fomos vivendo e fomos aprendendo. Um dos planos mais bonitos do Vale Abraão, para mim, é um aparente travelling para trás com a Leonor Silveira que vem por baixo de umas laranjeiras e é obrigada a mexê-las com a mão. Eu fiz exactamente a mesma coisa. A Maria Adelaide, quando sai da casa para ir à procura do marido, podia fazê-la descer outra escada e faço-a levantar os ramos para passar. E isso foi uma pequena homenagem. Você sabe como foi feito esse travelling da Leonor Silveira (que depois eu usei num filme do João César)? Aquilo não é um travelling verdadeiro porque o Manoel não queria que se mexesse a câmara. Pusemos dois plateaus, um atrás do outro, e ela vem em cima de um deles. Mas, como tinha dificuldade em passar, teve de mexer nos ramos. Acho muito bonito quando a câmara recua com ela.
Eu senti um pouco o Vale Abraão neste filme em duas coisas: uma, no início, com a leitura do poema. Uma das coisas que acho mais bonita nesse filme é a voz do Mário a fazer aquela narração. E outra coisa são os vários planos da Maria em frente aos espelhos, no quarto. O Oliveira tem imensos planos desses no filme.
E o João César também. Agora não me recordo de qual porque fiz cinco filmes com ele e confundo-os um bocadinho. Mas tem um plano que ele faz com uma miúda em frente de um espelho, que eu gostei imenso. Eu acabo por rever muito pouco os filmes, porque acho que já tenho pouco tempo, e tenho curiosidade para ver o que se está a fazer, mesmo que me mace um bocadinho.
Ainda sobre este lado um pouco mais técnico, há uma coisa que o Mário faz neste filme várias vezes e que eu acho muito bonito que é: certos travellings, onde o plano passa de objectivo para subjectivo. Quando, por exemplo, o filho dela percorre a casa. Vêmo-lo primeiro, o plano move-se, em continuidade, e a dada altura estamos a ver pelo olhar dele e depois voltamos a vê-lo, adiante, a passar para outra divisão.
A ideia, no início, prendia-se com a minha vontade de questionar: “como é que eu mostro a tristeza na casa? Como é que eu dou a entender solidão daquele espaço vazio?” Eu não queria que houvesse indiferença, queria que o filho e o marido ficassem tristes com a saída dela. Eles ficaram magoados. Como é que eu dou a solidão nesta casa que estava cheia de teatros? Era dar o filho sozinho. E para não fazer planos de solidão, perguntei-me: “E se eu fizer uma coisa onde ele entra, percebe-se que está sozinho, olha e eu sigo o olhar dele.” Não é citação de nada, vi isto em muitos filmes, não tem nada de particularmente original. Mas achei que naquele caso funcionava muito bem. Até aproveitando o próprio décor da casa.
E uma consequência dessa opção é que depois temos personagens a olharem directamente para a câmara.
A Maria, no monólogo do Miss Julie. Uma das minhas grandes hesitações foi decidir se lhe punha ou não o bigode. Mas nesse plano em que ela olha para a câmara, acho aquilo muito forte.
Mas é engraçado que o Oliveira estava sempre a dizer que punha o actor a olhar para a câmara para recordar o espectador de que o cinema era tudo uma aldrabice. Aqui, eu nunca sinto isso. As personagens olham directamente para a câmara, mas eu não sinto que elas estejam a olhar para mim, enquanto espectador.
Ela está a olhar para si própria, ao espelho. A câmara ali é um espelho.
Sabe o que é que eu penso? Que ela está a olhar para si própria, ao espelho. A câmara ali é mais um espelho. Ela está a dizer aquilo a si própria. A ideia foi essa. Como se estivesse à frente de um espelho a falar com ela. Tenho muita coisa do Manoel, muita coisa de muitos filmes que vi. Agora é sempre o pudor de estar a citar coisas quando o resultado é diferente.
Se calhar esta deve ser a questão que toda a gente lhe deve fazer, mas como gere o ser simultaneamente realizador e director de fotografia, mais ainda com um papelinho secundário?
Isso era uma brincadeira, eu não sou actor. Foi uma brincadeira inclusive com o João César. Porque tinha feito um pequeno papel n’A Comédia de Deus (1995) em que me chamava Dr. Cruel e contracenava com o Jean Douchet. Só que não me recordava do primeiro nome. Achei que era Anibal, mas na verdade, no filme do João eu era Pedro. Não é o mesmo personagem, mas é primo.
O único filme onde tentei ter um papel mais longo foi n’O Milagre Segundo Salomé, onde foi tudo para o lixo. Só se aproveitou um caganito, que era necessário para a cena da festa. Só quando eu vi os rushes é que me apercebi. Eu estava vestido com uma sotaina, a personagem era de um padre. E como não consigo estar parado – não sou ator… – estava sempre a balançar para um lado e para o outro, com aquela roupa parecia um sino a badalar… Tum, tum, tum. Era de um ridículo atroz.
Cada vez que eu tentei ter um director de fotografia, a vida complicou-se para mim.
Cada vez que eu tentei ter um director de fotografia, a vida complicou-se para mim. O meu trabalho de sobrevivência, o meu trabalho no cinema é como director de fotografia. E foi assim que eu ganhei a minha vida ao longo dos anos. Nunca tive a reputação de ser um grande técnico, não sou. Tenho algum gosto e a reputação, em Paris, de ser muito rápido e de que me adaptava facilmente às necessidades de produção. Mas a rapidez é para dar tempo. Não se esqueça que 80 ou 90% dos filmes que fiz eram telefilmes. Aquilo eram filmes de hora e meia tínhamos apenas 30 dias de rodagem (e, mais tarde, já só 24), não tínhamos tempo para filmar. Se uma pessoa perde três horas a iluminar um plano, o que é que fica para a representação, o trabalho dos actores, etc.? Ao início não sabem sequer onde pôr a câmara com tanta parafernália.
Ser director de fotografia, no próprio filme, é extremamente confortável. Se eu pedir ao electricista se não se importa de pôr um projector num determinado sítio, eu sei exactamente o que vou fazer. Se estou a trabalhar com outra pessoa, eu posso pedir o mesmo projector no mesmo sítio, mas a outra pessoa pode não gostar. É muito confortável.
Às vezes é aborrecido. São muitos anos a fazer muitos filmes. Mas a verdade é que há cinco anos que não fazia direcção de fotografia de filme nenhum, porque estive doente, à excepção deste meu filme, claro. Propuseram-me, mas não podia fazer ou não queria. E agora o Paulo Branco pediu-me se eu ajudava num filme de uns miúdos franceses [L’enfant (2021) de Marguerite de Hillerin, Félix Dutilloy-Liégeois)]. E estou muito contente com o resultado, apesar de já estar um bocado enferrujado aquilo veio rapidamente. Em cinco anos, o que perdi foi o conhecimento do que saiu. As novas máquinas, os novos materiais, aquilo hoje em dia… caramba, é por isso que há 250 novos filmes no IndieLisboa. Hoje, felizmente, toda a gente pode fazer um filme.
Disseram-me que havia uma espécie de entendimento silencioso entre o Mário e o João César.
Eu nunca quis trabalhar com o João César porque o conhecia desde miúdo. Aquilo não era pêra doce, embora fôssemos amigos. Mas para conversar, não para trabalhar. Até que um dia recebi um telefonema, do Joaquim Pinto, e encontrei-me com o João na Mexicana. A conversa começou, e eu disse-lhe que adoraria trabalhar com ele, mas ele tinha que ter calma e tal. E ele começou, “Olha lá, se nós quisermos filmar naquela porta (e apontou para uma porta qualquer) sem luz, tu filmavas?” [a imitar a voz do João César, lenta e melíflua]. “Ó João César, porque é que não hei-de filmar?”. “Mas sem luz?”. “Sim, sem luz.”. “E então?”. “Então, não sei. Se não houver luz, filma-se, e não se vê nada. Se houver um bocadinho de luz, filma-se, e vê-se qualquer coisa. Se houver muita luz, filma-se, e vê-se tudo”. “E achas que é possível fazer um filme sem luz?”. “Quem decide é o realizador, não é o director de fotografia. Tu é que decides”. A conversa foi assim, à João.
Acabei por trabalhar com ele e fiz coisas de que me orgulho muito, claro que às vezes aldrabei um bocadinho aquilo que ele me pedia… Porque se uma lâmpada já lá estivesse ele aceitava que se acendesse, mas se não estivesse ele recusava que se acrescentasse. Houve uma enorme cumplicidade entre nós, que era, também uma confiança da parte dele. Era película e ele tinha que acreditar que eu estava a fazer o que ele queria. E fiquei orgulhoso da imagem que fiz para esse primeiro filme da nossa colaboração, A Comédia de Deus. Aproveitou-se praticamente tudo, com excepção de uma sequência, filmada junto ao um bairro de lata, em que o João César estava já muito bêbado e já não havia luz…
E depois deixou de haver luz completamente, no Branca de Neve (2000). O filme tem dois ou três planos do céu lá pelo meio. Mas o Mário assinou a fotografia do filme.
Estava o João César, sentado, penteado de uma maneira esquisitíssima que o fazia parecer uma senhora, com os lábios pintados de vermelho – sempre provocador.
Sim, e fui muito gozado por muitos amigos meus, com insultos e tudo. Bom, não gostam que eu fale do processo, mas o que aconteceu foi que nós começámos a filmar outra coisa, a fazer um filme com imagens, numa rodagem que durou uns três ou quatro dias. E não resultou. Até que um dia ele me ligou e disse “Podes vir ter comigo à Cister?” Quando eu cheguei à Cister, havia um conjunto de pessoas a olharem através do vidro. Estava o João, sentado, penteado de uma maneira esquisitíssima que lhe fazia parecer uma senhora, com os lábios pintados de vermelho – sempre provocador. Entrei e disse-lhe: “é pá, estás com os lábios muito bonitos. Estiveste a beber qualquer coisa? Vamos lá para fora.” E andámos a passear perto da Cister, com as pessoas a olharem. Foi quando ele me disse que queria fazer tudo a preto. Mas bem, nós tínhamos falado muito dos situacionistas nos dias que antecederam essa decisão, e até fui eu que lhe falei do Guy Debord e do filme a preto, na véspera. E ele disse-me: “E tu achas que o director de fotografia vai aceitar assinar o filme?”. “Se o gajo não é parvo, acho que assina. O realizador és tu, porque é que não há-de fazer? Olha, pergunta-lhe.”, “Então vou perguntar ao director de fotografia…” [risos]. Era assim que se passavam as coisas. Eu gostava muito dele e acho que ele até gostava um bocadinho de mim. Porque no último livro que ele escreve, onde desanca toda a gente, sobre mim não diz nada de muito negativo.
É engraçado porque há um filme do Walter Ruttmann que é também todo preto [Wochenende (1930)] que o Oliveira viu na altura do Douro, Faina Fluvial (1931). Ele tinha um projecto dos anos 30, que se chama “Luz”, que ele nunca chega a realizar, que era um filme todo branco. Aliás, há um entrevista em que o Oliveira afirma que só o João César, ou ele mesmo, teriam a ousadia de fazer um filme sem imagens. E o Mário foi director de fotografia destes dois cineastas...
Sabe que eu falei com o Manoel a propósito disto. O Manoel também era muito mauzinho, contrariamente ao que as pessoas pensam, e disse-me: “Ó Mário, eu quero-lhe dizer que respeito muito o facto de ter aceitado ser director de fotografia do filme que o realizador queria fazer. Porque é, provavelmente, o filme mais interessante do César Monteiro.” E eu não percebi se era ironia ou se era sincero. Mas a verdade é que a maioria dos realizadores não sabe bem o que quer, e rodar é, para eles, uma angústia constante. E eu surgia um pouco como um amparo, “Mário, comme tu vois ça?”. O Manoel era exactamente o contrário disso, ele sabia perfeitamente o que queria.
Acho que havia alguma admiração do Oliveira pelo João César, mas não era necessariamente por ele gostar muito dos filmes.
Sim, ele não podia gostar do lado mais escatológico do João, isso eu sei que não.
E o João César escreveu um texto muito famoso sobre O Passado e o Presente (1974) a dizer que era o melhor filme do cinema português à época.
A admiração dependia. Se falavam muito do Manoel, o João ficava um bocado irritado.
Ainda a propósito dele, eu nunca conheci o Pedro Costa, mas alguém disse ao João que eu era seu amigo. Um dia cheguei a Portugal e fui ter com o João. Era na altura do No Quarto da Vanda (2000) e ele começou “Tu gostas muito de realizadores animalistas, cineastas que fazem filmes sobre animais”, “Mas eu não conheço nenhum realizador que tenha feito filmes sobre animais.”, “Ai conheces, conheces.” O animalista era o Pedro Costa. Disse-me o João: “Ele põe a câmara no quarto e espera que o animal venha.” [risos].
E sempre fui amigo de um realizador que me pôs sempre muitos problemas com a maior parte dos meus amigos, que é o António-Pedro [Vasconcelos]. Gosto dele humanamente? Sim. Gosto dos filmes dele? Uns mais do que outros, naturalmente. Não acho que ele tenha feito um filme escandaloso, contrariamente ao que as pessoas dizem. O António-Pedro foi o homem que mais me falou de cinema, um dos maiores cinéfilos da minha juventude. Ele foi uma pessoa que me ajudou bastante na montagem deste Ordem Moral. Mostrei-lhe uma primeira versão e ele deu-me algumas recomendações que foram muito úteis e construtivas. Ao contrário do Paulo, que é sempre duro nos comentários. Fico feliz que, agora, após a minha insistência ao longo de vários anos, o Paulo e o António-Pedro lá se tenham entendido de novo e estejam a trabalhar num novo filme.
Há uns tempos estava a ler, fascinado, os textos que o António-Pedro escreveu sobre o Godard nos anos 60 e 70. São de um entusiasmo pelo cinema e pelas possibilidades de um cinema moderno.
Eles eram muito Cahiers [du Cinéma], todo aquele grupo.
O António-Pedro era o mais convicto.
Era o mais activo. Porque o Alberto Seixas-Santos tinha de pensar muito antes de sair um artigo. Quanto ao Fernando Lopes, ele entra um pouco mais tarde, andava a trabalhar na televisão e sabia mais qualquer coisa do que os outros, que eram só teoria.
O Mário não conheceu nenhum deles no IDHEC (Institut des Hautes Études Cinématographiques), só cá.
Não, quem passou pelo IDHEC [Institut des hautes études cinématographiques] foi o Cunha Telles. Muitos anos antes de mim. Eu saí de cá com 20 anos por questões políticas. A decisão foi tomada em 24 horas. Frequentava o Cineclube universitário, mas o meu grupo de amizade, o meu grupo electivo, eram pessoas mais interessadas pela política do que pelo cinema. Eu era mais militante. Tínhamos em relação ao “grupo do Vavá” (como nós dizíamos) algum desprezo. E depois eu era muito atraído pelo PC [Partido Comunista]. Aquele grupo nunca foi PC, pelo contrário, eram mais conservadores. Daí o grande conflito entre o Fonseca e Costa e o António-Pedro durante anos e anos. O cinema era a razão da divergência, mas havia ali muitas divergências políticas. Eles não tinham nada a ver com o regime, mas eram menos interessados.
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[E subitamente o Mário Barroso apercebe-se que tinha que correr para um compromisso e a entrevista ficou por aqui. O compromisso: entregar um prémio Sophia, da Academia do Cinema Português a, nem mais nem menos, António-Pedro Vasconcelos.]
Esta entrevista não seria possível sem o auxílio de António Costa e Catarina Alves da Leopardo Filmes, o trabalho e a colaboração do walshiano Duarte Mata, as dicas de Paulo Cunha e Tiago Baptista e os conselhos de Ana Isabel Strindberg, Inês N. Lourenço e Jorge Mourinha.