Durante Agosto, mês de banhos e descanso para nós, a Medeia Filmes programou no cinema Nimas um mini-ciclo dedicado à Nova Vaga Britânica. Uma prenda para os cinéfilos mais desatentos em relação ao brilhantismo de um punhado de realizadores britânicos deste período, muitos deles oriundos do cinema documental (nomes representantes do Free Cinema) e da redacção da revista Sequence. Queremos destacar o esforço de recuperação de alguns destes títulos, encaminhando os leitores para a última sessão de um dos mais surpreendentes – e belos – títulos desta selecção: A Taste of Honey (Uma Gota de Mel, 1961) de Tony Richardson, que passa hoje, às 19h00, no cinema Nimas. A programação do que resta do ciclo pode ser consultada aqui.

Mackendrick nasce em Boston, porém a morte prematura do pai e as necessidades económicas da mãe, obrigam a família a regressar à Escócia. Mais tarde, Mackendrick parte para Londres, onde vai trabalhar como director de arte para uma companhia de publicidade. Com a eclosão da II Guerra Mundial, é contratado pelo Ministério da Informação para realizar filmes de propaganda. Esta breve introdução parece-me fundamental, não só porque territorializa o nome de Mackendrick em solo britânico, como será na Ealing Studios que Mackendrick terá o seu período áureo. Entre 1949 e 1955, Mackendrick irá realizar 5 filmes, dos quais destaco The Ladykillers (O Quinteto Era de Cordas, 1955). Sweet Smell Of Success surge dois anos após Mackendrick ter trocado Londres por Hollywood, depois de umas quantas voltas ao guião e à cidade de Nova Iorque. Comecemos então pelo guião, esse colosso que mesmo após os cortes sofridos, apresenta ainda uma impressionante envergadura. Considero que este aspecto é não apenas o mais marcante do filme, como determina em absoluto o ritmo da câmara. Ao contrário da quase totalidade do cinema clássico americano que verga a imagem à necessidade de contar, a imagem deste filme segue o fulgor de um texto repleto de acidez, trocadilhos e de ardilosas palavras. É pela língua viperina de Tony Curtis e pela palavra de ordem de Burt Lancaster que todo o filme se desenrola. A palavra desencadeia a acção da câmara, sempre pronta a recomeçar no limite de cada fôlego. O segundo aspecto impressionante de Sweet Smell Of Success é a forma como Mackendrick filma a cidade de Nova Iorque. Não é por acaso que este irá explorar ao longo de um par de meses a cidade antes de começar a rodar o filme. Mackendrick move-se como um perfeito nova-iorquino e raras vezes vimos a cidade de Nova Iorque incandescer desta forma, com ritmo absolutamente jazzístico — não fosse esta uma composição do magnífico Bernstein — e onde o noir é resultado e não formula. Não é o filme que torna negra a cidade, mas antes a cidade em todos os seus recantos que tornam noir o filme.
Bernardo Vaz de Castro

É talvez um pouco inconsequente procurar achar o protótipo do novo cinema britânico mas o filme de Reisz é, certamente, um dos melhores candidatos a este estatuto. Herda a técnica livre, o baixo orçamento e o universo das classes trabalhadoras britânicas do free cinema dos anos 50, bem como a corporização do jovem rebelde do pós-guerra que procura um espaço de distância face à proletarização das zonas industriais inglesas. Ainda antes de Tom Jones (1963), Albert Finney é o anti-herói “james deanesco”, mas mais brutamontes, que “apenas sabe que não é aquilo que as pessoas dizem que ele é”. O filme é bem um carrossel – uma das cenas mais relevantes – no qual a personagem de Finney vai distinguindo o bem do mal e tentando afastar-se da imobilidade da fábrica, da “cegueira” do pai que passa a vida em frente à TV, ou da surdez da mãe da sua querida (Shirley Anne Field), que lê todas as letras do jornal. A realização de Reisz faz-nos entrar bem no inglês vernacular, nas casinhas humildes de Nottingham, no beber até cair dos pubs britânicos da época e, claro, no espaço da fábrica do qual se procura sair rapidamente. Em muitos destes filmes saltita uma energia de luta, uma ideia de utopia ou projecção de revolução. Finney atira pedras ao sistema, mas Reisz enquadra sempre o resto do mundo “enlatado e formatado” no horizonte. O sábado à noite e o domingo da manhã são precisamente esses dois mundos: a crença no possível e na diversão libertadora e o dia seguinte, com sua ressaca e as horas em contagem decrescente antes de mais uma semana de trabalho…
Carlos Natálio

“What I wouldn’t give for a room of my own!” – desabafa Jo (Rita Tushingham), logo no início de A Taste of Honey (Uma Gota de Mel, 1961). O desabafo de uma adolescente que não o é, dividida entre ser criança e figura maternal. O pequeno gosto de mel de Jo acontecerá nos braços de Jimmy, um marinheiro que acaba por partir, deixando-a sozinha e grávida. Se é um mel de gosto amargo – de sonhos dissipados e bebés reais -, também é verdade que é a partir desse momento que vemos verdadeiramente florescer Jo – ela está sozinha, mas sozinha esteve ela sempre, tendo por única companhia uma mãe indiferente, incapaz de lhe dar qualquer afecto. Jo habita um mundo desolado, até mesmo nas lengalengas que as crianças cantam na rua, que soam como ameaças veladas [um eco de Marnie (1964), de Alfred Hitchcock]. Apenas quando encontra Geoff, o amigo gay com quem irá partilhar casa, Jo conhecerá o que é um lar. Tudo isto poderia ser a “accumulation of unrecorded life” mencionada por Virginia Woolf em A Room of One’s Own (para voltar ao desabafo inicial de Jo). Também poderia, invocando um outro eco (desta vez Morrisey), dizer-se que aquela noite abriu os olhos de Jo, abrindo as portas a toda a esperança que lhe adivinhávamos no rosto.
Daniela Rôla

“I believe God made me for a purpose, but he also made me fast. And when I run I feel His pleasure.” Roubo as palavras de Eric Liddell/Ian Charleson em Chariots of Fire (Momentos de Glória, 1981) apenas para fazer o contraponto com o conterrâneo The Loneliness of the Long Distance Runner (1962): se no filme de Hugh Hudson correr é um acto ligado à religião e ao sabor da glória, estando dependente da rapidez e da sede de aplausos, no título de Tony Richardson – que é o do conto de Alan Sillitoe, adaptado pelo próprio – a corrida assume-se como metáfora absoluta da vida enquanto “longa distância” e acto de libertação das ansiedades da classe trabalhadora inglesa, que não tem objectivos de louvor. Por isso, na cavada solidão da(s) maratona(s) deste jovem, Tom Courtenay, descobrimos o argumento das grandes jornadas interiores, com todo o desprezo pela ideia de vitória. É de vidas derrotadas que nos falam os angry young men, e o filme de Richardson dá fôlego à beleza amarga dessa juventude sem meta, que se deixa ficar com o sabor metálico do sangue na boca e o vazio a latejar nas têmporas.
Inês N. Lourenço

Lindsay Anderson realiza (e Karel Reisz produz) um drama adulto, que mergulha na psique do seu (anti-)herói (portentoso papel de Richard Harris), um angry man da cena britânica, que na realidade é um desperate man dominado por uma intempestiva vulnerabilidade sentimental – quando ele grita que “não tem medo delas (as mulheres)” nem ele, nem nós acreditamos. Mãos que lutam, que procuram a carícia, que se confiam a outras mãos, mas que são rejeitadas… Tentativas de aproximação que resultam em formas de agressão. Anderson cola fragmentos de um ou vários jogos de râguebi com imagens do quotidiano inglês, do cenário cinzento e depressivo da classe trabalhadora. Há um drama de classe que resulta, aliás, noutra cena, especialmente dura, em que o nosso (anti-)herói esbofeteia a amada (Rachel Roberts, talvez a mais relevante presença da Nova Vaga Britânica). Ela não o quer, precisamente porque esta não se sente digna das suas ofertas, já que estas não traduzem mais do que uma entranhada “culpa de classe” (aqui elevada a dor metafísica). Tudo é tingido por um fatalismo tanto sentimental quanto social, tudo está marcado por uma atracção pela morte e pela derrota. A imagem mais forte do filme envolve a mão deste “jogador profissional”: o murro contra o muro que esmaga a aranha tenebrosa (produto visível do pesadelo humano que aqui se desenrola). Buñuel e Bergman tecem a sua teia nesta sequência, puxando este drama para o domínio da mais dura e cruel alucinação.
Luís Mendonça

Numa das primeiras cenas de If…., Mick Travis – interpretado por Malcolm McDowell, que um par de anos depois protagonizaria A Clockwork Orange (Laranja Mecânica, 1971) de Stanley Kubrick – regressa ao colégio, depois da pausa estival, com o rosto coberto por um lenço. Atravessa várias divisões, sempre mascarado, até que, na segurança do seu quarto, revela, perante nós – os espectadores – e o espelho, que aquilo que escondia era um bigode adolescente loiro e traquinas. Explica, pouco depois, ao colega, que o usava para “esconder os seus pecados”. Agora, regressado ao colégio era hora de se ver livre dele, o que significa, por consequência, que é hora de assumir e envergar os seus pecados (no rosto). Lindsay Anderson começa, desse modo, por sublinhar um dos seus pecados capitais, a vaidade: “o meu rosto é um infinita fonte de fascínio”, afirma. E vários se seguirão: a luxúria, a espírito vingativo, a preguiça, a ira. Claro que pecaminoso é só aquilo que o quadro de valores da escola (profundamente religiosa) e da alta sociedade inglesa assim definem. If…. trabalha sobre esta ideia de relatividade moral, opondo pontos de vista que definem e contrariam a “realidade” em sucessivos “e se…” que perturbam a continuidade da montagem e o naturalismo do retrato. A forma progressiva como a “realidade” se esboroa ao longo do filme e se vai deixando infectar por suposições de uma mente pubescente anti-sistema e anarquista manifesta a grande força política do trabalho de Anderson. A entrada da fantasia revela-se, afinal, como forma de expiação proletária contra as estruturas da burguesia, culminando num final (anti-histórico) que certamente inspirou a fúria revisionista de Quentin Tarantino em Inglourious Basterds (Sacanas Sem Lei, 2009). Só que feito com uma subtileza em que as subjectividades cruzadas se fundem numa “realidade” tão real como qualquer outra, ou seja, como uma realidade possível, não apenas desejada. Daí que o fervor utópico de Travis e a sua pandilha seja, efectivamente, revolucionário… Ainda é possível mudar o mundo!
Ricardo Vieira Lisboa

As “estórias e façanhas” de Ned Kelly, um famigerado fora-de-lei australiano, constituem matéria de filme praticamente desde a origem do cinema. Nesse âmbito, importa salientar The Story of the Kelly Gang (1906) – uma das primeiras longas-metragens da história – como o biopic primordial da vida de um descendente de imigrantes irlandeses que, nos arredores do estado de Victoria, somou clandestinidade, desordem e, por desafiar os poderes económicos então instalados, um apego popular que o folclore tradicional tratou de mitificar. Contudo, a versão cinematográfica de maior destaque só surgiu, em 1970, pela mão de Tony Richardson. Ned Kelly, western austero, anti-climático e a necessitar de resgate crítico, cuja sóbria direcção de fotografia só permite fugazes relampejos de brilho idílico, é filme que vive de o protagonista ser encarnado pelo carisma de Mick Jagger, que, no entanto, canta pouco e “encanta” ainda menos na pele do “Robin dos Bosques australiano”. Só por essa curiosidade de casting, Ned Kelly já se revela como uma satisfatória proposta de cinema. Mas este é um drama onde a dedicação de Tony Richardson pela mise en scène expressa-se, mormente, nas sequências onde a narrativa aparenta não “avançar”; restará, nesses momentos, a convicção de sermos observadores de um primado retrato sócio-económico de época, e não apenas do percurso – desde o anonimato até à forca – de um lendário fora-de-lei.
Samuel Andrade