Senhores pandémicos, o cinema não parou de ser visto no À pala de Walsh. Os destaques de Agosto vão para o ensaio sobras as causas do terrorismo por André Téchiné, o sabor do mel na Macedónia, a comédia geracional de Judd Apatow, os escravos das flores de Jessica Hausner, o heist movie descolonizador de Ruizpalacios e o duelo de corninhos no último filme de Carlos Reygadas. Acima, as contas.
De onde brotam os ritmos no cinema? Talvez seja uma questão lateral do último filme de Téchiné, mas não deixa de ser a mais interessante. O realizador tem inscrito no seu universo, mesmo com uma mise-en-scène muitas vezes colada à acção e aos rostos das personagens, algo da ordem do drama clássico e de uma serenidade na composição. São aqui os separadores da narrativa, os dias longos e lentos que vão passando no início de uma primavera em que uma avó Muriel (Catherine Deneuve) recebe o seu neto, Alex (Kacey Mottet Klein) na sua quinta onde cria cavalos. A ruralidade e, por detrás, uma assumida qualidade burguesa, são o pano de fundo para esta espécie de continuação não assumida de Quand on a 17 ans (Quando Se Tem 17 Anos, 2016), acerca do crescimento de um jovem francês, no centro de famílias omissas e acidentadas, descobertas próprias da idade e a permeabilidade a boas e más influências. É o território de Techiné, mas aqui também laborando sobre recentes cicatrizes do terrorismo (a radicalização, a discriminação do outro), o que tem o condão de acelerar esse ritmo pausado, em torno de determinadas teses políticas. São elas, a domesticação familiar e as causas intestinas que levam um jovem francês a procurar a radicalização religiosa. Techiné dá os dados e parece apontar as respostas. O que é pena.
Carlos Natálio
Honeyland (Honeyland, A Terra do Mel, 2019), o documentário de Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov, leva-nos até uma povoação isolada nas montanhas da Madecónia, acompanhando Hatidže Muratova, uma mulher que se dedica a recolher o mel de abelhas selvagens. O ponto de partida do filme é essa vida simples, feita entre a recolha do mel, as viagens até à capital Skopje, onde Hatidže vende o mel, e os cuidados com a sua mãe de idade avançada, já cega e presa ao seu leito. Somos desde logo conquistados pela serenidade de Hatidže, em total harmonia com a natureza que a rodeia. Este ecossistema será, no entanto, fortemente perturbado com a chegada de uma outra família, que se instala na vizinhança. E aqui o filme assume quase um carácter operático, já que Hatidže parece capaz de convocar os deuses para que estes castiguem o arrojo de Hussein, que despreza o conselho de Hatidže – “tira metade do mel e deixa a outra metade para as abelhas”. Apesar de viver num lugar que parece sem tempo, pelo menos sem outro tempo que não seja o decorrer das estações, Hatidže não deixa de ter os seus momentos de melancolia (e também de feminilidade), indagando sobre um “o que seria se?” E a sua vida assim corre, feita de grandes problemas e pequenos prazeres, uma vida enganadoramente simples.
Daniela Rôla
O cinema americano popular de comédia morreu. Não tanto em termos de qualidade, mesmo até em termos de produção. O único género cómico que subiste é a “comédia de acção”, onde Tom Cruise reserva o seu lugar no trono, ladeado pelos infinitos infantes (e infantis) super-heróis que se injectam com doses moderadas de humor para que o espectador não se aborreça demasiadamente das fastidiosas cenas de acção geradas por computador. Resta, no entanto, um realizador: Judd Apatow (que paradoxalmente é melhor produtor que realizador). E se é certo que o seus retratos da vida adulta infantilizada se cristalizaram naquele que é, provavelmente, o seu melhor filme, Funny People (2009), este seu regresso à realização de ficções (há cinco anos que andava pela televisão e pelo documentário) marca uma assumida mudança. Mudança essa que não é tanto de tom – os problemas dos seus personagens mantém-se os mesmos -, antes de geração. Em The King of Staten Island o olhar do realizador desce uma geração (já não é o quarentão de classe média), centrando-se nos millennials, com a sua precariedade laboral, o seu rumo desvirtuado, a sua dependência financeira dos pais e as suas relações amorosas desprendidas. Ou pelo menos essa é a teoria. Apatow é um romântico e um clássico (sempre com o coração no sítio certo). O filme rapidamente se livra dos ditames geracionais para se deixar cair na comédia sexual de pendor nacionalista – e aí, de fato de bombeiro vestido, Apatow espalha-se ao comprido.
Ricardo Vieira Lisboa
Jessica Hausner tem-se mostrado como uma das mais coerente e persistentes realizadoras europeias a trabalhar o cinema de género, no sentido mais lato do termo. Não se poderá exactamente afirmar que Lourdes (2009) seja um filme de fantasmas – sendo-o – nem que Amour Fou (2014) seja uma tradicional novela gótica – capturando vários dos seus elementos mais característicos. No entanto, o anterior título da sua filmografia que partilha mais semelhanças com este mais recente tomo é (do que conheço) Hotel (2004). Tanto num, como no outro, as formas do terror e da ficção científica estão bem delineadas, mas tudo nos surge filtrado por uma câmara impassiva que filma o tempos mortos, as personagens zombieficadas (no fundo são thrillers bressonianos), os espaços vazios (perturbados por uma figura humana que os atravessa rapidamente) e, claro, o dilema ético-moral que reside no cerne narrativo de cada filme. Em Little Joe a pergunta é interessante (ainda que tenha o fraseado de um qualquer episódio de The Twilight Zone): é preferível a tristeza e a depressão conscientes ou uma felicidade apática de servo? Hausner resume, de certo modo, aquilo que vem sendo a sua direcção de actores (e todo o seu anterior trabalho) nessa pergunta. Só que a forma dos seus filmes já responderam à pergunta, antes mesmo desta ser colocada. Aí reside a subtil ironia deste filme, mortiçamente apaixonado por um mundo sintético, de cores postiças, fundos lisos, corpos em pose e rostos anestesiados.
Ricardo Vieira Lisboa
Em 2015 o IndieLisboa teve em competição a obra de estreia de Alonso Ruiz Palacios, Güeros (2014) que mostrava bem como a ideia de viagem – física e de crescimento – era o motor de uma obra de experimentação. Dois irmãos em busca do paradeiro do já doente músico Epigmenio Cruz, que se dizia que poderia ter salvo o rock mexicano. Museo (Museu, 2018) coloca novamente o pé no acelerador da viagem, aqui motorizada num heist movie de bases reais de dois jovens estudantes de veterinária que roubam um conjunto de artefectos históricos do Museu Nacional de Antropologia. Co-produzido pelo também protagonista Gael García Bernal, o filme de Palacios tem também outras duas marcas que já mostrava antes. Uma, o detalhe da reconstituição temporal, dada pelos jantares da Natal em família ou as referências musicais de uma juventude culta. Duas, a ideia da bifurcação ou escolha. O jovem Juan parece ter tudo mas vive contaminado por uma ideia de mediania, a qual quer transcender através do golpe do século. Na imagem em cima vemos espelhada essa duplicidade da escolha que é simultaneamente a relação entre o original e a cópia, a versão da história pura e a história da pilhagem e do colonialismo. Fico sempre com a sensação que o realizador mexicano acelera em demasia (e com ele, o talento devém mera virtuosidade técnica), mas Museo é certamente mais equilibrado no regresso do herói, transformado, à casa de partida.
Carlos Natálio
O cinema de Carlos Reygadas sempre teve a bunda meio de fora para levar tautau dos classicistas. Stellet Licht (Luz Silenciosa, 2007) e Post Tenebras Lux (2012) eram obras que dançavam na corda bamba dos flares e da tradição austera de Mr. Dreyer. As relações conjugais, familiares, comunitárias, sempre foram a sua arena, os seus “touros”. Nuestro Tiempo (O Nosso Tempo, 2018) vai decantar essas poções e devastar esse equilíbrio mágico. O que nos outros filmes era o sustento da formalidade – a narrativa absurda e misteriosa – aqui é uma pesadona metáfora sobre a fidelidade e os ciúmes. Reygadas auto-encena-se, o génio poeta (que poderia ter outra qualquer profissão) e os animais de cornos são o símbolo do marido cornudo. De corno em corno, tudo isto acaba por ruir rapidamente e Reygadas destapa o seu talento – rabiosque empinado – e fica à mostra, pela primeira vez (pelo menos, que me lembre) todo o seu formalismo desequilibrado e até sensacionalista. Por exemplo, a égua esventrada é um sinal dessa tentativa de choque “realista”. Depois, a cada momento algo original para fazer: um plano do interior de um carro aqui, um eclipse do som dos diálogos acolá, uma voz off infantil, a dada altura who cares? A soma não acrescenta, diminui. Reygadas tem demasiado talento, já o provou, e continuar a saber filmar a natureza como poucos. O mergulho vertiginoso em si mesmo – talvez venha daí essa auto-intitulação de poeta premiado – causou estragos. Venha daí o próximo filme.
Carlos Natálio