Como Kiarostami e Panahi, que enredam as suas histórias com filmes anteriores, começámos esta sequência de três textos com a primeira longa de Kiarostami, que apresenta um cineasta viajante, para pelo meio colocarmos um Panahi dedicado à infância, escrito por Kiarostami, com curtos, mas densos percursos, na urbana Teerão.
Jafar Panahi está em casa, sozinho. São as vésperas de ano novo, como em Badkonake sefid (O Balão Branco, 1995), e tal como em Offside (Offside – Fora-de-Jogo, 2006), da rua propaga-se uma miscelânea de festa e de conflito. A família deixara-lhe uma mensagem no atendedor, o filho diz que a câmara está sobre uma cadeira, ligada mas com pouca bateria. Panahi transporta a câmara e o espectador recebe, por momentos, aquelas imagens em movimento. O cineasta depressa instala, se não as premissas, pelo menos uma introdução ao objecto que começamos a assistir e que é também a sua circunstância, a de um encarcerado no domicilio que aguarda a decisão do tribunal de apelo sobre a sua condenação de 6 anos de prisão e 20 anos de proibição de filmar e de se deslocar ao estrangeiro, enquanto acerta a recepção a Mojtaba Mirtahmasb, co-autor deste In film nist (Isto Não é um Filme, 2011), que está a fazer um documentário sobre os cineastas iranianos impedidos de filmar.
A sala do domicilio é um estúdio onde Panahi traça cenários e desenha degraus de escadas com fita-cola, que acedem aos espaços (o quarto, a cama, os corredores e as janelas), em enquadramentos definidos por dedos e pela leitura de um guião de um projecto chumbado pela teocracia do Irão: uma rapariga de província, que a família fechou em casa para a impedir de se matricular numa escola de artes em Teerão, numa trama que se aproxima de Se rokh (3 Faces, 2018), que Panahi estreou em 2018, uma das obras produzidas na clandestinidade. Os dois realizadores induzem ritmo, alteram perspectivas e ângulos e dizem “corta”, fazem o filme à nossa frente, como uma resposta ao bloqueio institucional, uma torrente de formas criativas, de quem elaborou um sem número de projectos para responder às limitações dos temas e das condições da rodagem. Este fluxo de fantasia, de casa de bonecas, é combinado com imagens registadas por um telemóvel na casa da rapariga, imagens de baixa resolução e de curta duração, mas de alta potência, que nos metem num filme. Pelo meio do processo, os dois realizadores interpelam-se e interpelam-nos, questionam – “isto não é um filme” -, até que Panahi ensaia a mesma agonia de muitos dos seus personagens: “Se pudéssemos contar um filme, para quê fazê-lo, então?” É o filme que responde com um plano notável, em que Panahi de costas assiste à rotação de uma grua que parece invadir-lhe a sala, como se a realidade reunisse as condições de uma grande produção hollywoodiana.
Do ecrã da sala de Panahi soltam-se imagens de Hossein, protagonista de Talaye sorkh (Sangue e Ouro, 2003). É o inicio de uma aula orientada pelo cineasta, que aqui procura a sequência em que Hossein é humilhado na ourivesaria, um actor amador que dirige a cena, apesar de todo o planeamento envolvido: o filme faz-se primeiro e explica-se depois, remata o cineasta. Sangue e Ouro arranca com a sequência do assalto: o protagonista de capacete, como se fosse uma máscara, dispara sobre o dono da ourivesaria, a sirene alastra e ele fica separado da rua, barricado por grades – é um dos encarcerados de Panahi, talvez o mais memorável. Do lado de fora, da rua, as pessoas comentam e gritam, até que o protagonista encosta a pistola à cabeça e já só ouvimos o estoiro. Prodigiosa sequência, numa encenação à vista de todos, em que para lá do gradeamento, se assiste e se participa de um retrato de uma sociedade subjugada, como o auditório e um ecrã de um drama televisivo. Escrito por Kiarostami, o filme partilha o tema do suicídio como um esgotamento do discurso, com um protagonista que padece de esquizofrenia a interpretar-se: um entregador de pizzas, um rosto quase oculto pela viseira de uma motorizada, em percursos circulares numa Teerão imersa em pessoas, trânsito, barulhos, um peso urbano, a acentuar uma baixíssima condição social.
Sangue e Ouro é, também, uma resposta de Panahi, muitas vezes em contraponto como já referimos, a Ta’m e guilass (O Sabor da Cereja, 1995), protagonizado por Badii, um homem de 50 anos, que percorre com o seu jipe os arredores áridos e em transformação de Teerão, firme na decisão de se suicidar e procurando alguém, que a troco de dinheiro, lhe feche a cova num sítio já definido. A partir de um dispositivo simples, de pontos de vista no interior do veículo, campo/contra-campo entre o condutor e o passageiro, cortados por planos do exterior enquadrados pelos vidros do veículo ou com o serpentear do jipe diluído na paisagem em plano de conjunto e com o registo sonoro do que os personagens vão dizendo no interior, Kiarostami, através de uma narrativa deliberadamente omissa, convida o espectador a participar na estruturação do filme, através da imaginação e da reflexão. Sem nunca expor a razão que levou Badii ao suicídio, pelo veículo do protagonista, que funciona como um misto de espaço público e privado, vão passando os vários candidatos à função que nos referimos: um jovem soldado, um seminarista e um taxidermista; através dos diálogos, muitas vezes em conflito, vão sendo colocadas questões que promovem a participação do espectador, que o fazem meditar na vida e na morte, na legitimidade do suicídio: o resultado nunca é explícito, evade-se na vastidão da paisagem que o suporta. Onde Kiarostami é vago e até ambíguo, Panahi é incluso, sendo Sangue e Ouro um dos seus filmes banidos pelo regime, proibido até em sessões privadas. Se o inicio nos revela o destino de Hossein, o filme desdobra um quotidiano de humilhações, uma íngreme desigualdade, como quando trepa quatro lanços de escadas e a câmara o acompanha ao longo de um eixo vertical, enquanto ouvimos a sua respiração cadente a uma passada lenta: é como se aquela diferença de altura, a cércea do edifício, representasse a distância entre Hossein e uma vida digna. Obra nocturna, conforme a condição e a alma de um protagonista encerrado num quarto exíguo e sombrio, cercado por um quarteirão, onde chegam sons de detenções, mas que permite que Hossein nos surpreenda: após mais uma humilhação, com bondade distribui pizzas a quem aguarda no cerco definido pela vigilância policial a um edifício onde decorre uma festa. Eles divertem-se e eu para aqui, dizia Hossein na cena a que nos referimos atrás: ele testará pela última vez a sua condição de criatura desprezível, quando pede informações na ourivesaria sobre umas joias a oferecer à noiva, de cor carmesim, pedra preciosa que é também a púrpura do sangue, na implosão daquele mundo desencantado.
Panahi coloca mais um DVD na sua sala, desta vez do seu filme Ayereh (O Círculo, 2000): uma mulher corre numa zona fechada por grades. O cineasta diz que abriu o plano, que aqui, ao contrário de Hossein, a actriz não precisa de nenhum sublinhado do rosto, aquelas linhas verticais (do gradeamento), acentuam o seu estado mental: é o local quem dirige a cena. São várias histórias de mulheres, de rejeição, de desespero, de desigualdade, acompanhadas pela câmara de Panahi, que varre em círculo, os edifícios e as ruas de Teerão. O mesmo plano, a partir de um guichet, abre e fecha O Círculo: a princípio, anuncia o nascimento de uma rapariga, como uma maldição, que o último plano valida, com as mulheres até ali em fuga, agora encarceradas, empurradas pelo cerco policial para o mesmo destino, um fatalismo que dispensa subtilezas. Terá sido desta vez Kiarostami a responder a Panahi, a integrar de forma mais declarada o precário estatuto da mulher no Irão, com Ten (Dez, 2002). Prolongando o uso do veículo em movimento, mas, desta vez, talvez a questionar as opções dos filmes anteriores, com as câmaras voltadas para o interior, o que acentua o sufoco das histórias das mulheres, das suas privações: temos apenas dois pontos de vista cruzados, com câmaras fixas, direccionadas para os personagens, com destaque para o passageiro em detrimento da protagonista, a motorista. Num registo minimalista, quase maquinal (induzindo a ausência do realizador), apresentam-se, então, dez sequências, relativas a seis mulheres, entre elas uma idosa, uma noiva rejeitada e uma prostituta (que apenas ouvimos), que poderiam ser as mulheres aprisionadas de Panahi.
Apesar de Offside não estar na aula de Panahi, é útil olharmos para o filme que traça o período anterior à detenção do cineasta, e do apoio ao candidato oposicionista, Mir Hussein Mussavi, na Primavera de 2009, na progressiva equivalência do cineasta com as suas personagens. No Irão, a teocracia proíbe a presença de mulheres em jogos de futebol, por isso abundam casos de raparigas que se disfarçam, cobertas com lenços e bonés, para entrarem clandestinamente nos estádios. A razão oficial, iremos conhecê-la, a meio do filme, pela boca dos soldados que vigiam as raparigas capturadas nas imediações do estádio, no jogo da selecção iraniana com o vizinho Bahrain: um estádio não é um local adequado para mulheres, porque concentra muitos homens, que praguejam e dizem obscenidades que elas não devem ouvir. Num curioso paralelo, as autoridades apontaram como uma das razões para a detenção de Panahi, a sua colecção de filmes, de DVDs, descrita como um amontoado de obscenidades.
Passámos os primeiros minutos de Offside em pequenos autocarros, onde os rapazes identificam as raparigas disfarçadas, umas mais confiantes que outras, estabelecendo uma protagonista, como um animal acossado que permanece a um canto delimitado por uma grade, uma reclusa despida dos seus direitos, tal como Hossein. A câmara de Panahi salta de forma hábil entre os autocarros – empregados da mesma forma que Kiarostami usara o jipe, um espaço hibrido, entre o público e o privado, para facilitar a dispensa de autorizações para filmar na rua – e por vezes junta mais do que um veículo no mesmo plano, com pequenos tumultos, no interior e no exterior, que projectam uma sensação de cerco replicado.
Já depois da captura das raparigas e da sua colocação num rectângulo definido por um gradeamento, gera-se uma empatia entre elas e os jovens soldados vigilantes, na privação de liberdades, pois eles manifestam a vontade de regressar à província, um discurso que já víramos em O Balão Branco e O Sabor da Cereja, um pavor em ver prolongada a prisão do serviço militar, caso cometam algum erro, como deixar escapar uma das transgressoras. Ainda dentro das grades, desenvolve-se uma cena curiosa, as raparigas posicionam-se como se estivessem dentro do campo de futebol e atribuem-se posições, o que para o espectador antecipa Isto Não é um Filme, um rectângulo de fantasia como a sala estúdio no domicilio de Panahi. As raparigas e o espectador são novamente enfiados no autocarro durante os últimos minutos do filme, com a promessa de uma detenção pela Brigada de Costumes, um círculo a fechar-se, com o autocarro a atravessar as ruas lotadas de veículos e de pessoas que festejam a vitoria da selecção, numa tensão entre liberdade e cárcere, até que o autocarro se detém, misturado com a rua.
“Há um ditado: quando os cabeleireiros não têm nada para fazer, cortam os cabelos uns aos outros”, diz Mirtahmasb a Panahi, que está dividido entre o filme no domicilio e as noticias, barulhos e telefonemas que lhe chegam da rua, relatos de tráfego intenso, de postos de controlo da policia. Mirtahmasb pousa a câmara, entretanto anoiteceu e ele tem de ir buscar o filho, mas repete a importância de registar as imagens, diz a Panahi que deixa a câmara ligada e depois logo se vê. É mais uma fabricação, de narrativas e de dispositivos que se enredam uns nos outros e que estabelecem a sequência final de Isto Não é um Filme. Panahi acompanha, então, Mirtahmasb ao elevador enquanto o enquadra com o telemóvel que registará, também, a chegada àquele piso de Hasan, que está ali para levar o lixo dos apartamentos, e que acederá à galeria de personagens do cinema iraniano, ao interpretar-se, disponível para participar da fantasia. Pouco depois, Hasan entra no apartamento de Panahi e é apanhado pela câmara que Mirtahmasb deixara, num simulacro que nos permite aceder à montagem do filme. De regresso ao enquadramento do telemóvel de Panahi, no percurso para o elevador, pergunta ao cineasta porque é que o filma com um telemóvel quando tem uma óptima câmara parada na cozinha. Panahi anui, recolhe a câmara do interior do apartamento, que passa a debitar um fluido de imagens como um processo de realização automático. Enquanto Hasan recolhe o lixo porta a porta, piso a piso, chega-nos o discurso social: para estudar história da arte, tem de se desdobrar em vários trabalhos (em fábricas, como estafeta, a distribuir panfletos), e está ali para substituir a irmã grávida, que lhe permite tomar banho no apartamento, pois a residência de estudantes não tem água quente. Mas a conversa é constantemente interrompida pelas recolhas do lixo e por um fluxo notável de histórias e diálogos que nos chegam dos apartamentos, num ritmo frenético de uma screwball comedy de caixa de escadas, que só termina no portão do condomínio, onde vemos clarões e se ouvem explosões, ecos dos festejos de ano novo, mas que talvez sejam, também, resultado de protestos e conflitos de rua.
Isto Não é um Filme chegou a Cannes numa pen enfiada num bolo, mas essa clandestinidade superou o fait-divers: visto agora, quase dez anos depois, o filme é por inteiro um dos objectos mais sofisticados e desafiantes do nosso século e o ponto de partida para uma obra que passou a transgredir a reclusão, com Pardé (Closed Curtain, 2013), Taxi (Táxi de Jafar Panahi, 2015), e 3 Faces, os dois últimos estreados entre nós, e que passarão por esta crónica num destes dias.