O tempo não dá tempo. Solução: comprimimo-lo, torcemo-lo para caber no espaço reduzido, como quem tenta enfiar o Rossio na Betesga. Trocámos impressões por e-mail – a já velha tecnologia, sim… – em torno de um filme que nos fascina e que se tornou algo problemático na relação entre o grande público e alguma crítica de cinema. Queremos partilhar e insuflar o nosso entusiasmo por este objecto de monumental ambição, puzzle com peças a mais – ou peças em falta, consoante a perspectiva –, ainda que um jogo de irresistível arrojo intelectual que verdadeiramente funcionou para nós. Um super-blockbuster a tender para a abstracção? Uma presciente obra sobre os nossos tempos?

Oi senhor Luís,
Como tem andado o meu caro amigo?
Escrevo-te porque desde que vi o Tenet (2020), na semana da estreia, tenho andado envolto nas imagens e metáforas que o filme me inspirou. Talvez mais ainda porque me parece que se gerou um consenso antagonista sobre o filme que se me apresenta mais como uma reacção de grupo e menos como o resultado de um pensamento crítico sobre aquilo que o filme propõe. A generalidade das críticas negativas que se tem escrito funda-se naquilo que me parece um equívoco fundamental: desejar que Christopher Nolan seja um realizador que ele não é (nem deseja ser). Esperar que os filmes de acção do Nolan tenham personagens bem desenvolvidas, retratos tocantes de humanismo, tramas bem cerzidas onde tudo faz completo sentido e compostas por arcos narrativos perfeitamente delineados e cheios de densidade emocional é como esperar que o cinema do Straub seja “entertaining“, que o cinema do Costa seja cómico, que o cinema dos Farrelly seja transcendente ou que o Eastwood seja pós-moderno – no fundo não é muito diferente de ver um Lav Diaz com pressa ou um Benning com a sopa ao lume.
O que me interessa em Tenet é o caos, é o “foda-se, deixem-me brincar” de um miúdo hiperactivo que esfrangalha tudo o que lhe metem nas mãos.
Ao Nolan sempre interessou uma e uma só coisa: divertir-se (e sublinhe-se o pronome reflexivo) a torpedear os esquemas da narrativa tradicional (sem lhes fugir no essencial). Isto é, os melhor filmes do Nolan são essencialmente clássicos na estrutura, só que depois percebe-se o imenso gozo que ele tem em partir essa estrutura em pequenos pedaços, re-arranjando tudo numa colagem, por vezes tosca, que funciona como um puzzle em que o jogador forçou algumas peças a encaixar onde estas não cabiam. Para entender Tenet há que olhar para a figura desfigurada em que este se apresenta, e menos para o que aquela composição ofereceria caso fosse metodicamente organizada. O que interessa, ou melhor, o que me interessa (de novo os pronomes reflexivos), é o caos, é o “foda-se, deixem-me brincar” de um miúdo hiperactivo que esfrangalha tudo o que lhe metem nas mãos.
E o que (me) oferece esse caos? Uma reflexão sobre a contemporaneidade caótica, ou melhor, uma “explanação” visual das contradições dos nossos tempos. Se não consigo afirmar, com certeza, que Nolan reflecte (no sentido do pensamento) sobre o mundo, certo é que este seu filme reflecte (como um espelho, ou talvez como um sintoma) este nosso mundo.
O que dizer do protagonista sem nome que necessita de se afirmar constantemente como tal, mas que, no fundo, é apenas o peão de um movimento centrípeto que tudo captura para logo destruir? O que dizer de uma acção cuja espoleta é o seu próprio movimento (a história anda, literalmente, atrás da própria cauda e as personagens andam, de novo de forma literal, a reagir aos efeitos que elas mesmas causaram)? O que dizer da dimensão conceptual do palíndromo, que atravessa todo o filme, em constantes vais-e-vens, e que encontra a súmula na utopia da coexistência (“que ainda está por vir”) chamada… tenet. E que mundo será esse, em que os “direitos” e os “invertidos” coexistem num “aperto de mãos fraterno”, encontro esse que tanto poderá aniquilar o mundo, como, e mais certamente, poderá aniquilar este mundo, ou seja, o mundo do caos e da discórdia? E o que dizer do modo como o antagonista/vilão acusa de fanatismo o protagonista/herói? Não costuma ser ao contrário? Parece-me que Tenet coloca em movimento uma máquina alucinante de imagens reveladoras dos dias em que vivemos, e fá-lo sob a capa de um cinema de acção à la James Bond (como aliás já o fizera em Inception (A Origem, 2010), nessa altura misturado com o heist movie).
Enfim, gostava de te ouvir (de te ler) sobre isto. Porque sinto que estamos diante de uma monumento ao qual se está a dar demasiada atenção pelos motivos menos interessantes.
Um abraço,
Ricardo Vieira Lisboa

Excelso Dr. Ricardo,
Ainda bem que me escreves e ainda bem que começas onde começas: pelo princípio. Vou ser “anti-Nolan” e seguir esse passo, obedecendo à cronologia da minha relação com o filme e àquilo que dizes nessa primeira missiva.
Nolan não tem duas características que muito estimo nalguns dos grandes mestres da história: o sentido de humor e o apelo erótico.
Portanto, se a ti o filme espoletou uma série de reflexões que não se esgota no exercício de catalogação de tudo o que um dado cinema não é, a mim também me suscitou uma reflexão semelhante: Nolan é Nolan, não é outro cineasta, mesmo que por vezes se pareça com uma cópia pálida de Stanley Kubrick, por exemplo. E aqui entra uma coisa que já disse mais do que uma vez a propósito do realizador britânico: Nolan, de facto, não tem duas características que muito estimo nalguns dos grandes mestres da história: o sentido de humor e o apelo erótico. Apesar de tudo isto, ele tem esse sentido lúdico – por vezes enfatuado e vaidoso, é certo – do miúdo que sabe – e tem gozo em – brincar com os seus brinquedos favoritos de “material duvidoso”.
Na realidade, o brinquedo é só um: o tempo. Um brinquedo, mas um “senhor brinquedo”, não? Quantas vezes não sentimos que o cinema é isso: uma espécie de máquina do tempo, que nos subtrai ao fluxo do dia-a-dia para nos atirar para um “tempo sem tempo” ou “de múltiplos tempos”, para vidas inteiras, peripécias mil ou factos da História que são treslidos, recosidos (e reduzidos), torcidos, mastigados, triturados…? Os nossos olhos viajam, ou melhor, ingerem isto tudo. E vamos (quase) sempre na cantiga.
Entra aqui outra palavra importante: o tal “tudo” que é “tudo e nada” ao mesmo tempo, em cada momento, nos filmes mais intrincados deste realizador. Por um lado, física-quântica de último ano da faculdade, por outro, uma brincadeira de criança com brinquedos caros mas “made in China”. Há um divertimento infantil a perpassar as densas lições que desafiam o tempo histórico, a lei da gravidade e o xadrez da geopolítica internacional. O jogo pode ser complexo, mas também pode ser incrivelmente divertido, se aceitarmos, pegando no que dizes, que há peças que não encaixam; que, apesar de tudo, conseguimos resgatar sensações e até reflexões relevantes de uma experiência impante e ruidosa como esta.
De facto, como outro filme de Nolan, Inception, Tenet é uma brincadeira cinética de encher o olho – é verdade que Nolan não é o mais discreto dos realizadores e sentimos muitas vezes essa ânsia de produzir espectáculo para, precisamente, nos encher o olho. Contudo, como acontecia nesse filme, sinto que há espaço para produzir um espectáculo que pensa questões importantes e que torna, digamos assim, como uma criança audaz, sobredotada, o que é muito complexo numa brincadeira inteligente, divertida e, a espaços, poderosamente cinética. A receita nem sempre funciona – entre Inception e Tenet conto vários exemplares de um balofo cinema do espectáculo – mas aqui o realizador investe na criação de um labirinto temporal – espacializa-se, assim, a noção de tempo – baseado num refresh da história bélica recente, associada à Guerra Fria, a uma guerra por antecipação que, de repente, é já uma pura guerra temporal, deslaçando a linha que cose a causa com o efeito, produzindo uma coreografia/cartografia tão complexa quanto, no ecrã enquanto espetáculo cinético, enleante.
Na relação com outros títulos da sua filmografia, e por muito que Inception seja aquele que mais imediatamente nos venha ao espírito – até foi reposto em sala como aperitivo para este Tenet – devo dizer que “regressei” mais, na minha cabeça, a Memento (2000). Sobretudo aos minutos iniciais do filme, em que vemos a bala a regressar à arma da personagem interpretada por Guy Pearce – o projéctil sai da cabeça de alguém que nessa altura não sabemos quem é e que papel desempenhou/vai desempenhar na vida do protagonista. Os piscares de olho internos na obra de Nolan normalmente não são tão audazes – costumam ficar-se pela superfície desse jogo com o tempo – mas em Tenet eu sinto que há um filme que cola muitos “cacos”, sendo que quase ousaria rever Memento e ver no seu protagonista não alguém que padece de um problema de memória mas alguém que é um “invertido”. Um invertido numa narrativa que deve alguma coisa a Raymond Chandler.

Ao mesmo tempo, falando em narrativa e em referências cinéfilas, diria que Tenet é uma espécie de fábula que cruza (pelo menos na minha cabeça que gosta de se distrair com estas coisas) The Wizard of Oz (O Feiticeiro de Oz, 1939) com Blue Velvet (Veludo Azul, 1989) ou o Orphée (Orfeu, 1950) de Cocteau com um filme 007. Temos acção cool non-stop e depois há uma história de desejo – fria, “deserotizada”, é certo, mas nem por isso pouco pujante – que leva o protagonista a “dar o ouro ao bandido” porque a donzela – essa gazela extraordinária, íngreme como uma torre, que verdadeiramente descubro aqui, chamada Elizabeth Debicki – está em perigo, com uma pistola apontada à cabeça. Esta sequência de perseguição (re)bobinada, em plena auto-estrada, tem essa força icónica que falta a muitas produções recentes – não só de Nolan como da Hollywood dos super-blockbusters.
Penso que há uma noção de estilo que impera no conjunto das interpretações de Tenet.
Depois de se sujeitar à ameaça do vilão, o herói terá de entrar no mundo invertido – como o submundo de Orphée – para arrancar a donzela das garras desse cruel e velhaco mafioso interpretado por Kenneth Branagh. Já agora: para mim, Branagh está tão consciente de ser uma máscara quanto, por exemplo, Dennis Hopper estava ciente da sua máscara no mundo subterraneamente noir de Blue Velvet. As personagens de Nolan, claro, não têm grande densidade psicológica – o overacting que povoa Interstellar diz muito da falta de jeito do realizador para o (melo)drama – porventura com a notável excepção de Insomnia (Insónia, 2002) – das melhores interpretações e personagens tanto de Al Pacino quanto de Robin Williams. No entanto, como máscaras que são, peões pondo em movimento, com o corpo e as palavras, este xadrez alucinante e infatigável, penso que há uma noção de estilo que impera no conjunto das interpretações de Tenet. Há uma elegância nas máscaras do herói, John David Washington, e o seu parceiro, Robert Pattinson, que casa bem, no sentido em que luta bem, com a “frieza explosiva” – potenciada pela banda sonora “empática” do sueco Ludwig Goransson (vai de retro, oh Hans Zimmer) – do mau da fita encarnado por Branagh.
Por falar em máscaras, estava a ler um livro sobre drones e a nova “Guerra Fria virtual”, desenrolada remotamente, por múltiplos ecrãs, e dei com o nome de um antigo director do CIA, alguém que pediu a demissão no inícios dos anos 00 deste século por causa dessa mistificação de espectaculares proporções chamada “Saddam Hussein e as suas armas de destruição maciça”: George Tenet. Talvez “Tenet” não seja um conceito assim tão vago, reduzido a um efeito de palíndromo, talvez “Tenet” diga respeito a um modo de operar (policiamento sobre o que é “verdade hoje e é mentira amanhã”, fabricação de guerras reais como simulações, “viagens no tempo” que se parecem com fábulas cinematográficas), a uma instituição com corpo, com muitos corpos, muitas máscaras que determinam o rumo dos acontecimentos nos bastidores da História e, sem que saibamos, vão determinando o destino das nossas vidas.
Bem, depois de tanta especulação – reflexos e reflexões com Cocteau ou sem Cocteau –, não posso deixar de te ouvir (de te ler) sobre alguns destes temas.
Abraço,
Luís Mendonça

Oi Luís,
Gostei muito de ler essa tua (tres)leitura do filme à luz de Cocteau. De facto, a máquina de inverter funciona, perfeitamente, como um espelho que se atravessa como em Le Sang d’un poète (1930), motivo esse que Cocteau recupera amiúde em vários dos seus filmes posteriores, nomeadamente (e como não podia deixar de ser) nos outros dois títulos da trilogia órfica. O espelho é de facto uma máquina de inversão. Ele oferece-nos um mundo ao contrário. E, como um espelho, ele permite uma visão indirecta das coisas. Através do espelho podemos ver aquilo que os nossos olhos não alcançam em linha directa (ou que não ousam olhar de frente – a “aparência” de cinema popular de acção protege o filme da pretensão política de uma verdadeira “reflexão” política). E o espelho também pode deformar o olhar, alterando perspectivas e pontos de vista. O espelho também confunde. Tenet é, de certo modo, um labirinto de reflexos, em que nos perdemos e acabamos por dar um tiro na nossa própria imagem.
E gosto também que refiras as “fábulas cinematográficas” das viagens no tempo. Por osmose, talvez, apanhei o gosto pelos filmes de viagem no tempo do nosso amigo João Lameira. Se estes muitas vezes dão origem a objectos que caem rapidamente em “enleantes” paradoxos narrativos que existem na sua própria complexidade (e se esgotam no vazio dos seus esquemas narrativos – acusação que se vem fazendo ao filme de Nolan), alguns títulos recentes têm explorado a dimensão do paradoxo temporal como forma de dar corpo a dilemas morais ou contradições sociais que caracterizam os nossos dias. Por exemplo, Arrival (O Primeiro Encontro, 2016) transformava a filosofia da linguagem de Wittgenstein num filme de ficção científica popular com nuances sobre a política de emigração norte-americana (e ocidental). Outro exemplo, excelente, encontra-se em Predestination (O Predestinado, 2014), que encontra num loop temporal uma manifestação narrativa do debate ao redor das questões da identidade de género, dando novo sentido (e espaço de destaque) às pessoas intersexo. E muito haveria para dizer sobre Primer (2004), Los cronocrímenes (Os Cronocrimes, 2007), Edge of Tomorrow (No Limite do Amanhã, 2014) ou, ainda, Terminator Genisys (O Exterminador Implacável: Genisys, 2015).
Tenet pode integrar-se na onda destas recentes produções de ficção-científica temporal onde as viagens no tempo além de se revestirem de um intrincado quebra-cabeças que o espectador tem que desmontar (ou remontar – ainda que em Tenet seja, mais ou menos, impossível acompanhar todos os contornos narrativos, em especial na batalha final), são, ao mesmo tempo, um veículo para problematizar algumas questões sobre a natureza da heroicidade (essa figura narrativa em total decadência nas narrativas contemporâneas), os resultados reais ou potenciais das palavras e das acções (a grande oposição que caracteriza as “guerras culturais”) e, de forma mais declarada, sobre a incomunicabilidade na era da comunicação (de certo modo, toda a trama de Tenet resulta de uma série de mal-entendidos – que são, igualmente, partilhados pelo espectador).
Tenet é um dos filmes mais ludicamente inteligentes que vi nos últimos anos.
Declarando-me fã incondicional da série dedicada à personagem de James Bond, todas as actuais variações sobre o modelo do cinema de acção cool me interessam. Tenho acompanhado com particular prazer a versão adolescente que é a série Kingsman, deliro, com gosto, com cada iteração das Mission Impossible, e delicio-me com os Johnny English. Faço este reparo porque a relação que apresentas com Memento, apesar de ser muito bem esgalhada, não me “distrai” do vínculo uterino com Inception. Nesse filme, o Nolan parece ter tido uma revelação pragmática: tomando consciência das limitações que um filme de acção costuma ter – isto é, por norma, são desmiolados, colam um monte de cenas, cada uma com mais explosões que a outra e constroem-se nos efeitos, sendo a narrativa um acessório – a solução encontrada para “solucionar” (ou maquilhar) este problema passou por criar uma estrutura narrativa que suporte inteligentemente (ou melhor, que integre) a colagem de sequências sucessivas de acção de “encher o olho” (e uma história que justifique os efeitos especiais). A estrutura das matrioskas de sonhos justificava a passagem de um templo oriental para um país do Médio Oriente, indo à neve fazer ski, para logo depois ser perseguido numa cidade cosmopolita, ou seja, um Bond a passear-se pelo(s) mundo(s) [dos sonhos].
Tenet procura repetir a mesma estratégia, mas fá-lo de forma mais atabalhoada e com um ritmo de montagem completamente alucinante e alucinado: uma torrente imparável de sons e imagens que se torna, a certa altura, asfixiante. E aqui abro um parêntesis: esta é talvez uma das características mais interessantes do estilo noliano, a montagem que quebra, consistentemente, a continuidade do tempo e do espaço. O exemplo típico é acompanharmos dois personagens que estabelecem um diálogo que, tendo uma continuidade lógica, se apresenta disperso por diferentes lugares, quebrando, desse modo, as noções de geografia, a favor de uma continuidade narrativa alienada. É verdade que as constantes viagens pelo mundo (diz-me a Internet que o filme foi rodado na Dinamarca, Estônia, Índia, Itália, Noruega, Reino Unido e Estados Unidos) em busca de uma corrente interminável de sucessivos Macguffins é, de facto, uma solução narrativa preguiçosa (coisa que é habitual nos filmes por ele escritos). Mas a forma como o esquema das viagens no tempo constrói algumas das mais audaciosas e divertidas sequências de acção do cinema mainstream dos últimos anos revela que Nolan percebe o âmago do filme de acção e acaba por o reduzir a uma quase pura abstracção. Dei por mim a rir-me, “a bandeiras despregadas”, quando percebi o twist temporal das melhores sequências de perseguição e luta. É isso que faz de Tenet um dos filmes mais ludicamente inteligentes que vi nos últimos anos.
Um abraço,
Ricardo Vieira Lisboa

Aloe vera,
Tocas num dos meus “pontos fracos”: não só os filmes de viagens no tempo como precisamente os ditos “filmes-puzzle“. Pensei num Coherence (2013), obra que transforma a fórmula do Gato de Schrödinger num quebra-cabeças fílmico. O realizador James Ward Byrkit verte num thriller indie, filmado com a verve de um Joe Swanberg, uma complexíssima teia temporal, que leva a que, a dado momento, cenas se repitam com as personagens – as mesmas que as protagonizaram – a assistirem e a participarem, em duplicado, nelas. É um filme em que esse gesto de entrar e sair, de sair e entrar, sugere a possibilidade de converter o esqueleto das antigas “comédias de portas” em puros dispositivos de ficção sci-fi. E aqui penso ainda – e sempre – em Cocteau, precisamente Le Sang d’un poète, para recordar a magnífica sequência de luta, homem a homem, que acontece no começo e – spoiler alert – é “reciclada temporalmente” mais perto do fim de Tenet. O bailado realizado pelos corpos, um deles invertido, é quanto a mim um pequeno milagre áudio/visual, no sentido em que subitamente não estamos de maneira alguma a assistir a um combate discernível, mas a um bailado quase perfeitamente síncrono – uma Pina Bausch no coração de uma mastodôntica superprodução de Hollywood? Qualquer coisa assim.
Em Tenet há imagens, capacidade de tornar o discurso – do argumento, das palavras – em acções, sons e movimentos.
Falavas das matrioskas de Nolan e também não me esqueço nem das perseguições e lutas pelo tecto, naqueles cenários que rodam nos sonhos dentro de sonhos de Inception, nem dessa sua imagem da carrinha – a potência do ralenti redescoberta! – que nunca mais cai ao rio – todo o filme cabe nesse instante ínfimo em que o veículo fica suspenso no ar, como o coiote no precipício, nos desenhos animados com a avestruz Bip Bip. Era isso que faltava – e muito – noutros filmes, mais recentes, do Nolan: força visual, qualquer cena, gesto ou movimento, que fixasse uma ou outra ideia-força proveniente dessas suas narrativas inundadas de informação, mas não com tantas boas ideias de cinema quanto isso… E em Tenet há imagens, capacidade de tornar o discurso – do argumento, das palavras – em acções, sons e movimentos.
Esse desinteresse – é uma forma de soberba até – pelos limites impostos pela geografia parece-me que é outra boa ideia e esta é “lançada” logo nos primeiros instantes: o ritmo é alto, a acção é cut the bullshit e o nosso herói saltita de destino em destino, pelo mundo, não conhecendo diferenças horárias (não dormindo?) – Nolan dispensa muitos daqueles establishing shots bem chatos que emprestam essa continuidade verosímil à globalidade dos filmes, mas aqui essa verosimilhança espacial pouco interessa, porque em Tenet o tempo, esse conceito, esse brinquedo, serve para ser desmantelado desde o início. E continuará a ser e a estar desmantelado até ao fim. Outro momento de assombro: o teste da luva que permite agarrar em objectos invertidos ou a carreira de tiro em que as balas regressam à arma (o tal “momento Memento” na minha cabeça).
Por fim, há uma mensagem – uma leitura política – forte que não podemos ignorar: a bomba que não explodiu é tão determinante quanto a bomba que explodiu. Mas no caso da bomba não detonada, ninguém (quer) cria(r) heróis. O herói de Tenet nunca vai ser reconhecido como tal – sente-se que é um herói conformado, “desmitologizado”, de maneira alguma não um “conformista”, mas alguém que sabe bem que faz parte de um jogo jogado na sombra (no outro lado do espelho…). Parece-me interessante – e cool de facto – que um filme com tanto espectáculo – muito ruidoso para alguns ouvidos e olhos – queira tanto – e a meu ver seja bem sucedido – a prestar homenagem a quem fica, tantas vezes, fora de cena, longe dos holofotes. Discretos heroísmos.
Face a tudo isto e ao teu entusiasmo, que compartilho inteiramente, resta-me perguntar-te uma coisa que me ocorre: porque será que gostamos ou gostamos muito de uns filmes de Nolan e de outros nem por isso ou nem por sombras? E, já agora, trocando todas estas altas especulações por “miúdos”, ou melhor, por “palas”, afinal, quantas dás a este Tenet?
Abraço e até já,
Luís Mendonça

Senhor Luís,
Essa referência ao Coherence é realmente certeira. Esse filme, até dado ponto, é uma versão de baixo orçamento e de produção independente deste Tenet. O “jogo de gato e rato” narrativo que se estabelece dentro do próprio filme com as personagens e a relação “alienada” do espectador com aquelas imagens é muito semelhante. Dariam uma excelente sessão dupla de fritanço espácio-temporal.
Sobre a questão do ritmo e da montagem ageográfica, ela não é nova nos filmes do Nolan. No Inception isso já surgia, a espaços (wink wink), mas o primeiro filme dele em que notei isso de forma flagrante foi o Interstellar. Nele, especialmente numa das primeiras sequências de introdução à mecânica da agência espacial, essa desregulação geográfica e arquitectónica, guiada pela continuidade linear dos diálogos, causou-me enorme aflição (até que percebi que essa era uma solução rítmica típica da montagem nolaniana – solução que não é “descoberta” na montagem, uma vez que os raccords sonoros foram todos pensados em antecipação). O movimento saltitante desses espaços impõe uma grande dinâmica aos diálogos (desviando um pouco a atenção para a pomposidade épica que lhes é característica). E também Interstellar, apesar de bem mais fraco (porque bem mais pífio nas suas pretensões dramáticas), se diverte a jogar com a fragmentação narrativa em “cenas de encher o olho”, usando a estadia em cada planeta (com características “espácio-temporais” específicas) como solução airosa para a colagem maquinal dos sucessivos tours de force.
O cinema do Nolan só se reveste de graça quando assume a sua monstruosidade estilhaçada.
De facto, nem Interstellar nem Dunkirk (2017) conseguiram produzir imagens, sons, movimentos e gestos dignos de lembrança. Parece que a realização do Nolan é um bocado “tiro ao pato com metralhadora”, umas vezes acerta mais, outras menos, mas é muito difícil falhar completamente o alvo. Os seus melhores filmes surgem-me, sempre, recheados com uma série de ideias que trabalha em turbilhão, impondo uma regime de caos na experiência do visionamento. Esse é um caos produtivo, mas cuja produção depende de um olhar trabalhador. O turbilhão, em si, é apenas energia em rodopio. O trabalho está em interpretar os detritos que o remoinho deixa no seu encalço. Interstellar e Dunkirk preferem, apesar das vicissitudes de cada um, um trajecto mais limpo, e é aí que está a sua pecha. O cinema do Nolan só se reveste de graça quando assume a sua monstruosidade estilhaçada. Só aí o peso da sua magnânima figura cai por terra, revelando-se, nos encaixes mecânicos, os sinais de uma consciência do mundo. E Tenet é particularmente falhado, de muitas formas diferentes, o que só o reveste de múltiplos e surpreendentes sentidos.
Assim sendo, e para resumir tudo a uma expressão aritmética, dou três palas ao filme – porque, como já procurei justificar antes, a sua grandeza resulta das suas muitas fragilidades.
Um forte abraço higienizado,
Ricardo Vieira Lisboa

Cá estou mais uma vez (sempre de máscara, como mandam as regras).
Faço um pouco de auto-psicanálise no meu “caso com Nolan” e chego a uma conclusão possível neste momento, algo simplista se pensar demasiado nela, mas cá vai: eu acho que o Nolan é um construtor de mundos e é um cineasta de acção. Quando o mundo nasce – é construído – com base num jogo de ideias, um jogo cinético (e assaz lúdico) de conceitos, o seu cinema tende a resultar para mim. Quando assim é, Nolan consegue sintetizar ideias em imagens com força. Quando o mundo vem “construído por encomenda” – os sisudos Batman metafísicos que me fazem quase gostar dos exercícios kitsch e despretensiosos de Joel Schumacher – ou está excessivamente vinculado a regras deste mundo, da física ou física quântica (as viagens espaciais em Interstellar), ou da História (o chatérrimo e frio Dunkirk), a coisa não pega para mim.
Ele foi acusado, desde cedo, de ser um cineasta preso ao gimmick, mas posso dizer que isso me chateou.
Ele foi acusado, desde cedo, de ser um cineasta preso ao gimmick, mas posso dizer que isso me chateou, porque acho Memento um filme essencialmente teórico, ainda que já se revista aqui de alguma pompa e vaidade que oferece pouco do ponto de vista dramático, a tal “pecha” de Nolan – podemos agarrar em quase tudo, mas nas personagens… às vezes saímos com a sensação que elas nem chegaram a conseguir “meter a cabeça de fora” e respirar, não se salvando do afogamento por excesso de informação e alto pretensiosismo.
Posto isto, Tenet é para mim o filme que “puxa para cima” as melhores qualidades que conheço no seu cinema. Quase me apetece prognosticar que, dentro do seu “programa” (Insomnia é porventura o filme menos noliano destes todos, pelo que o excluo desta equação), este cinema dificilmente pode dar mais frutos ou, vá lá, melhores frutos. Senti que Tenet funciona como um cimento que vem relançar o interesse pela obra – pelo “mundo” – deste realizador. Uma injecção que renova a esperança nesta empreitada fílmica.
Estou um pouco como estava quando saí de Inception, ainda que Tenet me pareça possuir uma economia de ideias mais expurgada. Portanto, acho que daria a nota “quatro palas”.
Podemos enterrar o assunto e seguir para bingo?
Abraço e desejos de muito álcool gel para ti e camaradas do Porto,
Luís Mendonça
Lisboa