Frequentemente descobrimos no corpus fílmico de um determinado autor obras pejadas de um poder terapêutico. A raison d’être das últimas parece despontar quase exclusivamente de uma necessidade endógena de restituir a estabilidade mental de quem as engendrou, como se artista e arte fossem dois domínios inextricáveis, vasos comunicantes onde se decide, mais do que o futuro de uma carreira, o propósito de uma vida. Mas se é verdade que a acção criativa do homem gera os produtos com os quais os críticos de arte depois se entretêm a discutir e classificar, muitas vezes são esses próprios objectos que moldam os seus criadores e fazem as suas exigências – o que inverte por completo a relação causal, facilmente observável, entre a mão que pinta e aquilo que é pintado. Dodesukaden (Dodeskaden, 1970), de entre todas as películas de Akira Kurosawa, é, quiçá, a que exemplifica melhor a imagem escheriana de uma ilustração desenhando a mão que, por sua vez, a ilustra. Neste caso particular, o de Dodeskaden, um filme que filma o seu cineasta, a compulsão gerativa de continuar a criar, mesmo contra todos os obstáculos, juntou-se à antinomia de um olhar-espelho que reenvia as fragilidades de um convalescente. E era na condição de convalescente que Kurosawa tomava as rédeas deste novo projecto, pedindo consolo ao cinema, mas desconhecendo se este lhe apareceria sob a forma de antídoto ou cicuta.
Conhecido pela metodologia autocrática e pelo perfeccionismo obsessivo – características outrora encorajadas e celebradas pelo sistema de estúdios, especialmente o japonês no qual os kantoku eram considerados pelos seus subalternos como pequenos deuses – Kurosawa era, na viragem da década de 1960, sobretudo durante e depois de Akahige (O Barba Ruiva, 1965), um cineasta anacrónico. O studio system que tinha proporcionado uma certa maneira de fazer cinema desintegrava-se e uma nova geração de cineastas assalariados conseguia satisfazer bastante melhor as limitações financeiras das produções, bem como as vontades de um público mais marginal que vagueava nas salas de cinema, procurando temas arriscados, violência gráfica e conteúdos sexuais. Depois de sair da Tôhô em 1966, Kurosawa virou-se, então, para investidores americanos em duas ocasiões frustres que ficaram célebres e provaram fatalmente o desajuste de um artista fora do tempo. Em primeiro lugar, escreveu o primeiro argumento puramente de acção e falado em inglês, Runaway Train, mas uma quantidade de dissidências criativas (algumas curiosamente relacionadas com o uso da cor, já desejada pelo cineasta) levaram ao cancelamento da empreitada – mais tarde, já nos anos 80, o russo Andrei Konchalovsky retomaria o projecto, finalizando-o. Mas pior, muito pior, foi o que aconteceu a seguir.
Contratado pela 20th Century Fox, o embaixador da sétima arte nipónica filmaria metade daquilo que viria a ser Tora! Tora! Tora! (1970), um épico sobre o ataque a Pearl Harbor visto das duas perspectivas. A metade americana estaria ao encargo de um realizador ocidental – originalmente prometeram a Kurosawa o nome do britânico David Lean, mas mais tarde o menos renomado e capaz Richard Fleischer assumiu a direcção dos segmentos. Esta troca trazia consigo uma conotação simbólica: a coordenação de todos entre todos e não a subordinação de todos por um parecia ser o mote de trabalho – algo que não poderia estar mais nos antípodas do método imperioso do japonês. Aquilo que aconteceu no set de Tora! Tora! Tora! foi motivo dos maiores mitos e especulações. O consenso dos relatos dispersos de quem lá esteve diz-nos que Kurosawa foi sabotando o cumprimento do seu próprio ofício, fazendo exigências cada vez mais melindrosas e excêntricas, repetindo ensaios até à exaustão e filmando muito pouco contra todos os prazos. Consequentemente, em Janeiro de 1969, a 20th Century Fox demitia Kurosawa, alegando a existência de uma “doença mental” impossibilitadora de honrar o contrato que ele tinha assinado. Um circo mediático montou-se em seguida e o realizador, nada habituado a este tipo de exposição, passou, aos olhos da opinião pública, por louco caprichoso com manias megalómanas. De mestre respeitado a tirano inflexível e descontrolado, apenas a percepção do exterior tinha mudado.
O importante era filmar, ou seja, exorcizar os demónios de uma mente inventiva congelada e com propensões auto-flageladoras se deixada mais ao abandono.
Renegado tanto na frente doméstica como internacional, desesperado e instável, Kurosawa pediu auxílio à geração “humanista” que ele próprio encabeçara décadas antes, composta por cineastas que tinham iniciado a carreira nos anos 1940 com o sonoro instituído e haviam sido os primeiros a aceitar e a explorar, mais do que as causas, as consequências dos novos valores do pós-guerra na sociedade japonesa. Keisuke Kinoshita, Kon Ichikawa e Masaki Kobayashi, juntamente com ele, formaram um colectivo apelidado de Yonki no Kai (O Clube dos Quatro Mosqueteiros) com o objectivo específico de produzir filmes independentes, fora dos constrangimentos de uma indústria, aos olhos deles, irreconhecível.
A produtora bem intencionada, contudo mais unida pela amizade do que por uma partilha de um projecto de cinema comum, estaria condenada ao fracasso. Para Kurosawa, no entanto, não se prefigurava outra alternativa e pouco importava se a estratégia estava para durar. O importante era filmar, ou seja, exorcizar os demónios de uma mente inventiva congelada e com propensões auto-flageladoras se deixada mais ao abandono – um documentário para televisão sobre cavalos chamado Uma no uta (Song of the Horse, 1970) seria rodado posteriormente numa espécie de asilo do pensamento humano (gerador de neuroses várias) em virtude dos gestos belos, selvagens, irreflectidos do mundo animal e equestre. No meio da miséria e jejum criativo que antecedeu essa tímida passagem no pequeno ecrã, virar a objectiva para um bairro de lata parecia igualmente rimar com o estado de espírito vigente de desconsolo. Mas a superação de todo o negrume dar-se-ia pela cor, irrompendo febrilmente como num delírio. Assim nascia Dodeskaden, primeira colaboração da Yonki no Kai e vigésima quinta longa-metragem de Akira Kurosawa.
Basta atentar a estas circunstâncias de pré-produção para nos apercebermos do quão capital foi Dodeskaden para o seu autor. Tratou-se de um acto vital, uma questão de sobrevivência e, no entanto, representou o primeiro falhanço crítico de um percurso até então imaculado. Em The Films of Akira Kurosawa, Donald Richie, comparando-o a filmes prévios, descrevê-lo-ia como uma “mera sombra” e apontaria para uma perda qualquer da argúcia humanista e dinamismo cinético substituindo-os por aquilo que se considerou ser uma submissão indesejada ao mujô, a transiência de todas as coisas, algo que, na perspectiva rígida do jovem Akira do passado, o de, por exemplo, Yoidore tenshi (O Anjo Bêbedo, 1948), seria uma justificação cultural imperdoável para a aceitação passiva do sofrimento. Dodeskaden foi a película mais barata de Kurosawa e a única que não viu retorno no investimento. Um ano depois da malfadada estreia e da dissolução da Yonki no Kai, uma tentativa de suicídio assombraria o então Imperador do cinema japonês que, não sem razão, jamais havia deixado sucumbir os seus heróis samurai à sorte traçada do seppuku. Era como se as circunstâncias da vida levantassem a voz à obra integral de um autor e a quisessem anular de um só rasgo.
Não obstante, o que importa reter desse triste episódio, por sorte malogrado (a despeito dos cortes profundos nos pulsos do seu responsável), é o que ele nos informa sobre a obra que o precedeu e que em certo sentido, avançamos nós, o causou. Dodeskaden digladiava-se no seu interior com dois instintos contraditórios: um regenerativo, absorto na capacidade de suster tanto o infortúnio social como a tragédia subjectiva através das miragens da mente; outro aniquilador, tendendo para a morte, quando a realidade implacável violentamente choca contra as divagações escapistas de um sonhador e pede sacrifícios como pagamento. Tal confronto no filme surgia equilibrado, mas o lado luminoso saía sempre em vantagem, sem nunca ser necessário recorrer à batota de um optimismo idealista. Talvez aí se ambicionasse exprimir a dimensão reveladora da arte, ela que “vê mais do que a vida”, desempatando as trevas com a luz – e, inversamente, a tentativa de suicídio subsequente corresponderia a uma pulsão de morte, querendo vingar-se das vãs ilusões e carências de alguém demasiado crente nos poderes curativos da ficção.
O facto de Kurosawa ter adaptado oito contos (de quinze) do livro Kisetsu no nai machi (tradução literal, Uma Cidade Sem Estações) de Shûgorô Yamamoto e tê-los congregado finamente numa só narrativa, prova a adopção de um novo paradigma diegético, sob a forma de mosaico, paradigma afeito a uma horizontalidade dispersa onde diferentes instintos, isto é, cada um dos habitantes do bairro de lata, são livres de conversar e até confrontarem-se. É o processo criativo entendido enquanto sessão introspectiva, no divã, que prescinde de protagonistas (no sentido clássico do termo), a não ser o próprio autor, nas sombras, desdobrando-se em todos e em nenhum. Stephen Prince em The Warrior’s Camera descreve justamente os pressupostos desta partição diegética e a maneira como ela contraria a lógica existencialista do cinema anterior de Kurosawa. Leia-se:
“Para Kurosawa, a narrativa linear tinha sido uma estrutura de compromisso. Ela tinha exposto o crescimento da subjectividade e da consciência moral, era focada e dirigida pelos objectivos obsessivos do herói e era posta em marcha pela actividade dele. Porque tudo é assolado pela pobreza em Dodeskaden, porque a figura humana tinha-se tornado tão expressionista como mero atributo de uma paisagem composta por carros deteriorados, porque o abandono pela sociedade tinha obliterado a possibilidade do heroísmo, a narratividade – enquanto sintoma de tudo isto – colapsava.”
Contemplar adquire aqui mais importância do que compreender através da acção.
Como vemos, o que igualmente colapsava era a pró-actividade dos personagens. A estrutura narrativa assente na progressão diacrónica de momentos decisivos implica uma modificação extrema dos elementos iniciais, bem como um personagem que se descobre enquanto agente livre, capaz de transformar (e, nesse processo, ser transformado) pelo mundo que habita. Obedecem a este parâmetro, entre muitos outros casos, os sacrifícios grupais de samurais e camponeses em Shichinin no samurai (Os Sete Samurais, 1954), a epifania ética do burocrata cancerígeno em Ikiru (Viver, 1953) ou o sentido de aventura e justiça do salvamento da princesa em Kakushi-toride no san akunin (A Fortaleza Escondida, 1958) – foi esse parâmetro que, aliás, durante anos, fez de Kurosawa o “cineasta japonês mais americano de sempre”, aquele que mais longe levou a iluminação de significado decorrente da tripartição diegética. Em Dodeskaden, por contraste, as oito estórias são tableaux mais ou menos estanques, sugerindo não um desenvolvimento subjectivo – um character study – , mas, quanto muito, pequenas punch lines quase que deduzidas de suposições levantadas desde o seu início. São, de facto, quadros, mas na acepção anti-temporal que toda a pintura subsume. Contemplar adquire aqui mais importância do que compreender através da acção.
Então, o retrato do microcosmos da indigência social cristalizava-se – será que Kurosawa se inspirava na condição inescapável do miserável para desobrigar, por completo, o heroísmo do seu cinema? Com efeito, em Dodeskaden, só existe espaço para duas categorias positivas de carácter, a imaginação supressora do real e uma sabedoria que nasce da inversão do senso comum, nenhuma delas comparável já a atitudes motivadas pelo livre arbítrio, esse impulsionador da transição de personalidade A para B. A natureza dos personagens, antes, é encarada enquanto condição (também no sentido de condição mental), isto é, características irredutivelmente inerentes a personalidades esdrúxulas – eis o denominador comum de todos os moradores do bairro empobrecido. No primeiro caso, o do autismo da imaginação, encontramos o menino Roku-chan, o pivô das múltiplas narrativas, que todos os dias acredita conduzir um comboio que existe unicamente na sua cabeça, mas também o pai e o filho mendigos que sonham com uma mansão luxuosa enquanto moram num carro abandonado. No segundo caso, o da serenidade do absurdo, contamos com o ancião Tanba, capaz de desarmar um bêbado violento com um convite para o substituir na revolta, aconselhar um ladrão como roubar mais confortavelmente a casa alheia (a do próprio Tanba) ou dissuadir um suicida, assistindo-o na vontade de se suicidar.
Trata-se, pois, de um eco-sistema virado do avesso em que justamente se exploram as insuficiências da ordem e da racionalidade. Noutro episódio, dois vizinhos trocam de companheiras quando chegam embriagados da noite, mas o momento da lucidez no dia seguinte nunca chega deveras a irromper. O engano prolonga-se e converte-se em verdade funcional, acompanhada pelos solavancos de uma bebedeira que se afigura constante. Outro segmento evidencia-nos algo similar quando um chefe de família aceita os filhos da mulher adúltera que dormira com vários homens do bairro. Questionado pelas inúmeras crianças que suspeitam da falsa paternidade, o bonacheirão sossega-os, convertendo a bastardice em consanguinidade. No que diz respeito à salubridade das relações conjugais, as coordenadas também parecem trocadas noutras duas estórias. Numa, um mudo espectral é visitado pela ex-mulher que apresenta uma devoção e uma auto-culpabilização fora do comum, mas que nunca são reciprocadas por ele; noutra, um homem com um tique defende, com unhas e dentes, a esposa carrancuda e colérica face às críticas, apesar de tudo, ajuizadas dos colegas de escritório. Há mais dissonância na plenitude do que na imperfeição.
Nada é o que parece: a confusão proveniente do inebriamento descodifica temática e esteticamente todo o filme. Ela é simultaneamente pitoresca e apavorante. É, se quisermos, o verdadeiro filtro da câmara. A abordagem anti-naturalista da cor comprova-o – reza a lenda que Kurosawa, durante anos contra-feito ao uso dela no seu cinema, foi convencido a adoptá-la por Henri Langlois quando este lhe mostrou na Cinemateca Francesa a magistral sequência da dança de Ivan Groznyy, Skaz vtoroy: Boyarskiy zagovor (Ivan, o Terrível – Parte II, 1958) de Sergei Eisenstein. Análogas às dessa fita e mais do que apenas expressionistas, as cores de Dodeskaden vêm de um lugar intoxicado, uno, em que carnavalescamente se misturam os contrários e se suspende a apresentação corriqueira do real. Se o preto-e-branco era, de certa forma, o princípio da identidade, as cores eram a manifestação material da sua desintegração.
Semelhante dissolução é igualmente alcançada pelo papel que o cineasta atribuí à imaginação – e o modo como ele, por meio da sua câmara e montagem, substancializa as alucinações em coisas concretas (os sons fora de campo da carruagem do “maluquinho do comboio” ou os planos pomposos da casa utópica), fazendo o cinema participar no intenso devaneio dos seus personagens. Tal como acontecia no remoto Subarashiki nichiyôbi (One Wonderful Sunday, 1947), a imaginação é divertissment, fuga temporária da desgraça e mecanismo de compensação – parafraseando ainda Richie, uma parte da doença e jamais a cura. É uma entrega à infinitude do mundo das possibilidades e essa é a razão do seu vício e efeito entorpecedor. Podemos alegar que Roku-chan, paralelamente ao próprio Kurosawa, vence a loucura por se entregar a ela como um serviço: o que são os artistas senão isto, loucos que “pegam” a loucura como um trabalhador “pega” o seu trabalho? O pai mendigo, todavia, é refém da fantasia de uma forma extrema. No final, confunde-a perigosamente com a vida ao ponto de esquecer que a vive: enquanto o filho agoniza com um envenenamento alimentar, ele imagina ainda a piscina que nunca irá possuir.
Tonalidades de verde-musgo inundam aí o décor e esborratam as faces, como se o fantasiador estivesse já num estado de decomposição em relação à existência. Antes disso, um sol quente, ofuscante, agredia os olhos, um agoiro desolador. Esse momento macabro, juntamente com o episódio da jovem florista violada pelo tio no qual rosas azuis jorram o vermelho de uma virgindade roubada, são a amostra da pulsão auto-destrutiva que Dodeskaden também acarreta. Se quisermos, essa equivalência entre arte e doença corresponde ao lado soturno da irracionalidade, o contrapeso da arte na qualidade de profilaxia.