Pensar em Équation à un inconnu (1979) leva-me a recorrer à ultima estrofe de um poema de Frank O’Hara (em título) por um duplo motivo. Em primeiro lugar, porque O’Hara era homossexual e a poesia deste, ao contrário da poesia tão habitualmente dirigida às musas, sempre teve como motor desejante a figura masculina. Em segundo lugar, penso que nenhuma outra estrofe poderia traduzir tão bem a duplicidade que há contida neste filme, como o desejo último de ser amado e, ao mesmo tempo, o desejo primordial de ser perder por entre corpos. Ao ver este filme, penso no dia de Verão a que o poema se refere, tanto na cidade de Nova Iorque de O’Hara, como nos subúrbios parisienses de Francis Savel, dois lugares absolutamente desterritorializados – e por isso próximos -, onde a cartografia obedece unicamente ao mapa do desejo. Um desejo livre, que se forma entre olhares que se cruzam e que se abandonam, uma busca por entre jardins ou casas de banho públicas. O desejo homossexual sempre foi o mais paradoxal na sua vivência, porque enquanto entredito estava votado ao silêncio da esfera privada, porém, a procura e a consumação desse desejo habitualmente ocorria em espaços públicos.
Naquele que eu considero ser um dos livros mais importantes “recentemente” publicados – Retour à Reims (Regresso a Reims) – o filósofo Didier Eribon fala precisamente na incoincidência entre a planta de Paris e a planta vivenciada pelos homossexuais. O desejo não respeita esferas, assim como não respeita as convenções burguesas, os limites da propriedade ou mesmo a natureza dos lugares. Talvez por isso, Équation à un inconnu atravesse tantos lugares de desejo, onde a própria cama se desdobra até aos limites de uma garagem. Se antes de mais estamos perante um filme pornográfico e, portanto, os lugares que este invoca são de certo modo lugares fetiche – não é por acaso que o filme começa num campo de futebol e a posterior cena sexual se desenrola nos balneários, lugar idílico ao desejo homossexual, onde floresce a pulsão através dos códigos da masculinidade -, há de igual modo uma intensa carga onírica em cada lugar.
O sonho é precisamente a dimensão que impede os lugares de se territorializarem, assim como das situações, no limite, serem apenas projecções fantásticas de um solitário. Em muito esta sensação perpassa graças à belíssima fotografia que imprime sobre o próprio filme uma patine discreta e levemente esbranquiçada que serve quase de segunda tela, uma mediação que nos impede de aceder por completo à realidade do filme. Estamos sempre perante uma gaze, um acontecimento velado que durante alguns momentos assistimos às mais variadas cenas sexuais no recobro dessa protecção; somos voyeurs livres de constrangimentos.
É curioso, no contexto actual, o contrassenso que o filme gera ao ser projectado no espaço de um cinema dito comercial, junto a tantas outras pessoas, na medida em que desvirtua a natureza original do filme, ou seja, retira a sua imensa carga erótica, para dar lugar a uma experiência puramente estética. Com a quase extinção dos cinemas porno um pouco por todo o mundo, parte desta abundante e extraordinária produção pornográfica dos anos 70 e 80, quando é resgatada e transposta para um contexto expositivo, a sua exibição justifica-se unicamente pelo seu valor artístico e não pela sua qualidade pornográfica. Ou seja, em última análise, se actualmente alguma erecção causa, esta deve ser discreta e solitária, ao contrário do antigo propósito, onde o filme servia como estímulo à interecção entre espectadores.
Assim, podemos integrar numa historiografia do cinema “sério” nomes como Savel, Arch Brown, Peter de Rome ou ainda considerar a parte “maldita” de cineastas como Jacques Scandelari ou Arthur J. Bressan Jr.. Importa de igual modo relembrar, que o cinema porno homossexual é de igual modo um terreno profícuo a cineastas como William E. Jones que encontraram nos arquivos dos anos 70 e 80, matéria para os seus próprios filmes, como é o caso do belíssimo V.O. (2006) ou ainda The Fall of Communism as Seen in Gay Pornography (1998).
Podemos então admitir que Équation à un inconnu é uma espécie de apologia ao amor graças à cena final? Não creio que a resposta seja assim tão simples, ou estaríamos a reduzir todas as potencialidades contidas no filme.
No entanto, quem foi ao certo Dietrich de Velsa? Velsa foi um pseudónimo criado por Francis Savel, artista plástico, escritor e cineasta. Savel trabalhou ao lado de Joseph Losey em Monsieur Klein (Um Homem na Sombra, 1976) e ainda Don Giovanni (1979), participou enquanto actor no belíssimo Au Pan Coupé (1968) de Guy Gilles e podemos conhecer melhor a sua obra pictórica através do documentário, também de Guy Gilles, intitulado Le Journal d’un Combat (1964). No entanto, tanto Gilles como Savel são nomes aparentemente (e injustamente) esquecidos e importa relembrar o papel determinante de Yann Gonzalez na rememoração destas figuras através do seu extraordinário filme Un Couteau Dans Le Coeur (Faca no Coração, 2018).
Não só Yann Gonzalez foi o responsável por redescobrir e restaurar este filme, assim como, é por demais evidente que Un Couteau Dans Le Coeur vai captar a mestria do porno artístico da época no qual Équation à un inconnu é indiscutivelmente o apogeu do género. No entanto, o filme de Gonzalez está repleto de tributos, gestos que atravessam desde Le Déjeuner sur l’herbe (Um Piquenique no Campo, 1959) de Jean Renoir – a cena onde o assassino ataca uma das suas vítimas à lá Brain de Palma durante o piquenique, após um vendaval, tal como no delirante filme de Renoir – à obra magistral de Guy Gilles, Absences Répétées (1972), onde se ouve a terna canção de Jeanne Moreau no rádio da porteira.
Mas é sobretudo a dimensão melancólica de Équation à un inconnu que mais tocou a Yann Gonzalez, certamente. Porque aquilo que faz o filme de Savel ser mais do que um simples porno – além da sua indiscutível qualidade formal -, é precisamente esta dimensão solitária e insatisfeita que devolve uma espécie de prazer frustrado ou malogrado ao espectador. Ao contrário do que seria expectável de um porno – a satisfação de uma necessidade -, o filme de Savel, mesmo no seu júbilo luxuriante de corpos belos, jovens e de pilas erectas, contém o travo sempre amargo do prazer vedado, distante, incompleto. E por vezes chega mesmo a ser brutal, tal como na cena da casa de banho do café, onde um jovem é sodomizado e posteriormente abandonado, privado da possibilidade de um orgasmo; ou ainda, no belíssimo traveling, onde vemos a mota afastar-se do rapaz da gasolineira.
Savel está consciente do preço do prazer, de um prazer que não é mais o prazer da libertação sexual, da livre circulação dos corpos, mas antes o prazer apropriado pelo próprio capitalismo. Se hoje é por demais evidente esta dimensão em aplicações, onde imagens de corpos convivem lado a lado com anúncios de publicidade e estão sujeitas à lógica dos algoritmos, também era no final da década de 70. Basta relembrar aquilo a que Michel Foucault se refere, quando afirma que não estamos mais perante um controlo-repressão mas antes um controlo-estimulo. Este estímulo estava nos novos produtos gays, numa parafernália que nasce de dispositivos para domesticar estes corpos, para os tornar belos, desejáveis, prontos a consumir. Talvez por isso Foucault tenha sempre desconfiado dessa libertação através do sexo, tal como Savel parece duvidar em parte.
Podemos então admitir que Équation à un inconnu é uma espécie de apologia ao amor graças à cena final? Não creio que a resposta seja assim tão simples, ou estaríamos a reduzir todas as potencialidades contidas no filme. No entanto, consciente dessa incompletude através do prazer, Savel decide revelar a outra dimensão, essa ainda mais obscura, porque negada. O que foi sempre negado aos homossexuais, não foi a possibilidade sexual, mas antes e sobretudo a possibilidade, à semelhança dos heterossexuais, de também eles poderem-se apaixonar. Foi essa, e ainda é hoje, a dimensão que aos homossexuais é vedada. Por isso, Savel longe de querer reproduzir os códigos burgueses da monogamia heterossexual, revela o aspecto que mais afronta pode causar à moral vigente, que além do prazer sexual, há a possibilidade de um prazer amoroso nessa relação.
O que resta de Équation à un inconnu é então essa terna imagem de dois jovens numa mota vagueando sem destino num dia de Verão – e não consegui evitar de pensar em Mama Ronma (1962) de Pasolini – , que poderia ser sintetizado num outro poema, do belíssimo poeta português António Franco Alexandre: «vamos por aí fora, ao deus dará, vertidos/ em rima tosca,/ serão sempre horas de partir, de beijar,/ de voltar a casa para um jantar de madrugada,/ de ir ao cinema pra esquecer, de ficar/ solto numa esquina, esquecido,/ depois basta deitar fora toda a água parada/ e será verão».
Filme programado na última edição do festival QueerLisboa.