[Ford] acreditava em várias coisas, que puxavam para sentidos diferentes; e a tensão entre as ideias e a expressão das ideias é o que torna um filme óptimo. A ambiguidade é o território do artista, do grande artista.
Walter Hill, em Directed by John Ford (1971) de Peter Bogdanovich
No filme onde Bogdanovich pretendeu retratar John Ford, este furtou-se, muitas vezes de forma rude, a cada pergunta, em especial as que incidiam sobre temas e significados atribuídos aos seus filmes, sendo que um dos realizadores chamados a depor, Clint Eastwood, na procura de aclarar a obra e o homem Ford, disparou: “Não foi influenciado pela geração politicamente correcta em que vivemos. Ele não tinha estribeiras, essa era a imagem de Ford. John Ford não tinha medo de nada”. É com estes dois artistas, Eastwood e Ford, defensores da ambiguidade e de posições políticas autónomas, libertários soltos de tribos, que procuraremos dialogar nos próximos textos.

Os soldados buffalo, soldados negros da nona e décima cavalaria dos EUA, eram antigos escravos que lutavam sob a liderança de um homem branco, sendo que a mais elevada posição a que um soldado buffalo podia aspirar era a de primeiro sargento. Em Sergeant Rutledge (O Soldado Negro, 1960), é o primeiro sargento da companhia buffalo que será julgado pelo assassinato do Major Dabney, seu superior, e da sua filha, a jovem Lucy, estrangulada e violada, encontrada seminua no chão da casa do pai. Ford instala o julgamento como uma parada de circo, com a população aglomerada na sala, incluindo damas vestidas a rigor, tudo à espera do enforcamento; com o habitual interesse na descrição do folclore americano, o cineasta é meticuloso no registo dos procedimentos da instituição, do tribunal marcial, como uma redacção de um livro de História, sediado no sudoeste americano, em 1881, pouco depois da guerra civil e do período de reconstrução que deixou sérias fracturas entre o sul derrotado, privado da mão de obra escrava, e o norte dominado, então, pelos republicanos.
A obra de John Ford, e as consequentes leituras políticas, geraram quase sempre incompreensões, sendo no presente olhado como um reacionário, que glorificou o passado da América e os seus mitos.
A acusação começa por chamar Mary Beecher (Constance Towers) e a sala de tribunal é substituída por um extenso flashback que nos coloca no comboio que traz miss Beacher a casa, depois de uma permanência de 12 anos no Leste. Antes de ficar apeada na estação, a jovem mulher trava conhecimento com o tenente Tom Cantrell (Jeffrey Hunter), que reconhecemos da sala de tribunal como advogado de defesa do soldado Rutledge. A primeira vez que o flashback encontra o soldado negro, o grande plano da sua mão está a tapar a boca de Towers e a ordenar-lhe que não grite, num enquadramento que parece trabalhar a favor da acusação, associado ao depoimento da jovem que descreve, inadvertidamente, aquela aparição como um pesadelo saído da escuridão. O advogado de acusação pede para a testemunha identificar na sala de tribunal o sargente de cor a que se referira. Hunter protesta, para exigir a retirada da etiqueta da cor da formulação, mas a intenção de condenar permanece, sem que conheçamos a acusação, como se aquele pequeno relato, que nem diz respeito ao crime de que Rutledge será acusado, fosse suficiente para o condenar à morte – uma sentença proferida por uma comunidade racista.
Uma nota para o casting do protagonista: a Warner Brothers pretendia que o soldado negro fosse interpretado por Sidney Poitier ou por Harry Belafonte, actores com notoriedade na época, mas Ford considerou que eles não eram suficientemente duros e por isso contratou Woody Strode, com a pouca experiência adquirida na televisão, mas portador de um físico invejável, adquirido enquanto jogava futebol americano pela equipa da UCLA.

Rutledge, que se tinha declarado inocente na abertura do julgamento, recebeu os primeiros relatos e insinuações com o queixo forte e erguido, numa postura de confiança, dir-se-ia de desafio. Depois de Hunter, com o livro da lei nas mãos, como algo sagrado (um quase contraponto à presença da bíblia nos procedimentos institucionais), invocar que estão mandatados pelo tribunal para procurar a verdade e rejeitar qualquer tentativa de suprimir ou distorcer os factos, Ford volta a ligar a sala de tribunal com o flashback, com elegantes encadeados que colocam a iluminação sobre a jovem Towers, como se o cinema estivesse ali para apontar o trilho da verdade, num depoimento que vale a pena seguir pelas peculiaridades da personagem: uma mulher progressista, instruída pelos anos passados a Leste. Descobrimos, então, que o sargento negro e a jovem mulher tinham cooperado no alvejamento dos índios que rondavam a estação, sendo que Towers também se ofereceu para tratar o ferimento de Rutledge, que lhe pediu para que ela fosse para a sala ao lado, já que eles não poderiam ser vistos juntos, pois as mulheres brancas só lhe trouxeram problemas. Antes de voltarmos ao tribunal para revelar que o sargento negro lhe salvou a vida, Towers, espantada, respondera a Rutledge: “que disparate, somos apenas duas pessoas a tentar sobreviver”.
O filme escuta o clamor de Rutledge, como um porta-voz na defesa da comunidade afro-americana, a recordar a herança das perseguições racistas.
O rol de testemunhas de acusação continua a expor uma comunidade dominada pelo preconceito, a defender um mundo apartado para os negros, enquanto empilha um conjunto de avaliações de carácter ditadas pela cor da pele do soldado e indícios que colocam o acusado no sitio errado e na hora errada, com Ford a aproveitar o testemunho da esposa do juiz, para assinalar a proximidade temporal e os resquícios da guerra civil: à provocação lançada pelo juiz de que a mulher não sabia ver as horas, ela respondeu que ouviu as batidas no relógio de porcelana que ele roubou quando incendiou Atlanta, episódio que voltará ao filme e que provocará os mesmos silêncios e olhares cúmplices de um conjunto de homens. Esse diálogo com um passado vergonhoso prolonga-se no flashback, quando vemos os pulsos de Rutledge a receberem as algemas que parecem devolvê-lo à escravidão, depois de na detenção, os outros soldados buffalo e Hunter, que os liderava, terem encontrado no bolso do soldado negro uma carta em que o anterior proprietário o libertava.
O filme escuta o clamor de Rutledge, como um porta-voz na defesa da comunidade afro-americana, a recordar a herança das perseguições racistas, no diálogo com Hunter: “foi bonito Mr. Lincoln dizer que íamos ser livres, mas isso ainda não é verdade, talvez um dia”. Esta frase poderia ser um refrão do movimento Black Lives Matter, que desde 2013 tem organizado manifestações em forma de denúncia da violência sobre a população afro-americana, principalmente a exercida pelas forças policiais, que conheceu uma escala estendida por mais de 500 cidades dos EUA, e cerca de vinte milhões de pessoas envolvidas, em Junho passado, na condenação do assassinato de George Floyd (estrangulado por um joelho de um polícia nas ruas de Minneapolis, perante a suspeita de ter usado uma nota falsa de vinte dólares num supermercado).

A obra de John Ford, e as consequentes leituras políticas, geraram quase sempre incompreensões, sendo no presente olhado como um reacionário, que glorificou o passado da América e os seus mitos, designadamente nas narrativas traçadas sobre as comunidades ameríndias, apesar de terem sido os seus filmes que lhes deram rostos e nomes, que difundiram os seus ritos e tradições, à medida que a obra se complexificava no diálogo e nas tensões das várias versões da História e da identidade da América conquistada para Oeste, numa problemática tão sustentada na memória como na ficção, de narrativas e de paisagens. Em Young Mr. Lincoln (A Grande Esperança, 1939), Ford boicotou as expectativas do produtor Darryl F. Zanuck que esperava uma glorificação da figura de Lincoln, para agradar aos republicanos, com o cineasta, que tinha um interesse notório na figura de Lincoln (com várias aparições nos seus filmes), aqui mais dedicado ao homem do que ao mito: um Lincoln a tentar impor-se como advogado, subjugado pela perda de um grande amor de juventude.
Na sala de tribunal, Ford enquadra quase sempre Rutledge com um ligeiro contrapicado: os ombros e o rosto numa posição integra, a salientar um olhar altivo e zeloso.
Ford, nessa época conotado com a esquerda, pela defesa do New Deal rooseveltiano, ganhou fama de simpatias pelo marxismo depois de filmar The Grapes of Wrath (As Vinhas da Ira, 1940), uma adaptação do romance realista de Steinbeck, que acompanha o êxodo a caminho da Califórnia, das vinhas e dos pomares, protagonizado pelos Joads que foram empurrados das suas terras no Oklahoma pelos tractores e pelas hipotecas, aquando da grande depressão do final dos anos vinte. É, então, aqui que podemos situar Sergeant Rutledge, produzido no inicio da década de 60, quando Ford decidiu que deveria participar desse confronto da América com a herança de Lincoln, que nesse período conheceu inúmeras acções e protagonistas, como os mártires Malcolm X e Martin Luther King Jr., a reclamarem o fim da discriminação institucional, que conduziram a reformas, ainda iniciadas por Kennedy, mas concretizadas depois do assassinato de Dallas, pela presidência de Lyndon B. Johnson, que asseguraram, para a comunidade afro-americana, o fim da segregação social e o acesso ao voto universal.

Na sala de tribunal, Ford enquadra quase sempre Rutledge com um ligeiro contrapicado: os ombros e o rosto numa posição integra, a salientar um olhar altivo e zeloso. O advogado de defesa, que reparte com o soldado negro os close-up do julgamento, é filmado horizontalmente, como um fiel representante da lei, da simetria, a garantia de que o preconceito não pesaria na balança da justiça. Com a narrativa a avançar como duas rectas paralelas, flashbacks ao ritmo dos testemunhos na sala de tribunal, cada um encarregue de um capítulo, o presente em tribunal e o passado reconstituído pela memória e pelo carácter das testemunhas, a figura de Rutledge engradece, um líder da sua comunidade, como quando ampara nos braços um soldado negro moribundo, depois de um combate com os apaches, e lhe fala do futuro como a terra prometida, do orgulho que para eles deve representar aquela farda: é como se lutar ao lado da população branca lhes dê um horizonte de plena integração, uma pacificação com a nação americana, como os afro-americanos que defenderam os EUA na II.ª Guerra Mundial.
Como muitos dos heróis de Ford, é um homem que não ficará na História, mas que para lá de ser superior dentro da sua comunidade, aspira a uma complexidade como a de Ethan Edwards em The Searchers (A Desaparecida, 1956), a lidar com uma herança de vingança e de morte, dos estados mais divididos do que unidos, com Ford a colocar Rutledge sozinho, primeiro entre os militares e os apaches e, finalmente, com a grandeza de um herói, num plano americano, de perfil e ancorado na estampa física de Woody Strode.
O actor Woody Strode regressaria ao cinema de Ford, dois anos depois, em The Man Who Shot Liberty Valance (O Homem Que Matou Liberty Valance), interpretando Pompey, que faz um aparente contraponto com o corajoso e robusto Rutledge. Quando o velho senador James Stewart e a esposa Vera Miles, de regresso a Shinbone, entram na morgue apenas encontram Pompey junto do caixão de um mero desconhecido, Tom Doniphon (John Wayne). A acção estabelece-se em 1910, com um flashback de 25 anos, ditado pelo interesse da imprensa local em desvendar o enigma da presença de uma importante figura da nação, o que nos coloca na mesma época de Sergeant Rutledge. Liberty Valance ficou como a obra do ocaso do cinema clássico, com um preto e branco aglutinador, em que Ford questiona a celebração do mito, um olhar irónico sobre uma História construída em cima de lendas que se revelam necessárias ao progresso, expressas na punchline enunciada pelo jornalista quando confrontado com os factos: “Isto é o Oeste. Quando a lenda se torna num facto, publica-se a lenda”.

Mas, aqui, interessa-nos mais a relação de Pompey, ajudante e cúmplice de Wayne, sendo este o verdadeiro representante do povo, o desconhecido que faz História e que permite a ascensão das elites, com muitas afinidades com Rutledge. Quando Lee Marvin (Liberty Valance) faz tombar Stewart no restaurante, a lei da bala a impor-se à lei dos livros, é Wayne quem volta a auxiliar Stewart, protegido nas costas pelo silencioso e obediente Pompey, o único negro presente no filme, apresentando, por um lado, Wayne como o pragmatismo e o coração de um povo, protagonista de uma cultura de compromisso entre mundos, necessária à lenta imposição da lei e da ordem contra as pulsões do álcool e da violência de Marvin, e por outro lado, a presença de Woody Strode na gradual convivência entre as raças, ainda sujeita a uma clara segregação, como quando observamos Pompey à porta dos locais onde se tomam as decisões, ou quando tentam impedi-lo de entrar no saloon, em que mais uma vez Wayne impele à transição, embora lenta, forçando o taberneiro a servir-lhe uma bebida.
É Woody Strode, com o retrato de Lincoln nas costas do plano, quem se levanta para responder qual a lei fundamental da nação e para citar o arranque da declaração de independência de Thomas Jefferson – “consideramos estas verdades óbvias por si mesmas, que todos os homens são iguais”.
Apesar de quase escondido em grande parte dos planos, encostado a um canto, imóvel, Pompey conseguirá reivindicar o estatuto de porta voz da sua comunidade. Numa das cenas da escola, do ensino da leitura, ministrada por Stewart numa sala contígua ao jornal da terra, é Woody Strode, com o retrato de Lincoln nas costas do plano, quem se levanta para responder qual a lei fundamental da nação e para citar o arranque da declaração de independência de Thomas Jefferson – “consideramos estas verdades óbvias por si mesmas, que todos os homens são iguais”, sendo que a cena termina com Wayne, a ordenar a Pompey que volte para casa: há trabalho a fazer e ele perde tempo na escola. Wayne, sempre a funcionar como um elástico, uma ambivalência entre o idealismo frágil de Stewart e a força bruta de Marvin, com Pompey como cúmplice, que culminará no embuste do assassinato de Liberty Valance. Ford ergue, então, o seu protagonista na sombra de um beco: Tom Doniphon abdicará de tudo em prol do bem comum, do amor por Vera Miles, que entregará a Stewart, tal como o alívio da consciência daquele – “é homicídio a sangue frio, mas consigo viver com isso”, diz-lhe Wayne, que terá em Woody Strode o seu actor secundário, como aqueles pequenos papéis que valem toda uma filmografia.

De regresso a Sergeant Rutledge e à sala de tribunal, o soldado negro responde com eloquência ao advogado de acusação, que não foi só a coragem que o impediu de fugir e o levou a liderar mais uma vez os seus homens: a cavalaria era a sua verdadeira liberdade e o seu amor próprio, e se desertasse, nada o distinguiria de um escravo a fugir de um pântano. Rutledge levanta-se, mas a câmara fica em baixo, e exclama que não é um escravo, “sou um homem”, o que nos traz à memória a mesma frase proferida em Malcolm X (1992), do combatente Spike Lee, pelo reverendo e pai do protagonista, enquanto escapava da casa em chamas, cercada pelos encapuçados do ku klux klan. Como é habitual em Ford, há uma tensão entre as vontades próprias e o cumprimento escrupuloso das obrigações ditadas pelas instituições, explicitado quando um dos buffalo, o mais velho, diz que um militar não pode pensar com o coração, tem de seguir os regulamentos, a propósito da decisão de Hunter de entregar o sargento negro à justiça, com o risco inerente de uma condenação injusta. Apesar dos sucessivos depoimentos, que atestam a integridade, a entrega ao dever, a disposição ao sacrifício para salvaguardar a instituição militar, apenas a exibição de uma prova material ilibará Rutledge, o que nos coloca em diálogo com True Crime (Um Crime Real, 1999) de Clint Eastwood, objecto da próxima crónica: um século depois, em Oakland (Califórnia), o mesmo preconceito institucional, assente na cor da pele, colocou Frank Beechum no corredor da morte.