I’m a huge Ozu fan. (…) For me, my very first movie ‘Heavy’ was incredibly influenced – even though it took completely place upstate New York – by the films of Ozu.
James Mangold
Houve quem se risse quando James Mangold disse que, com Logan (2017), tinha tentado fazer “um filme de Ozu com mutantes”. Talvez a declaração fosse menos controversa e mais acertada se tivesse referido Clint Eastwood (como o camarada Ricardo Vieira Lisboa explicou impecavelmente no seu texto), mas a verdade é que o cineasta nova-iorquino é um enorme admirador do mestre japonês, referindo-o com entusiasmo em entrevistas e apontando-o como uma referência para alguns dos seus próprios filmes [Wolverine (2013)], mesmo que o resultado final seja manifestamente distinto. Só que, no cinema, paixões assim podem levar, de facto, à origem de uma obra onde a filiação é perfeitamente evidente, fortemente palpável, dando o riso de outrora lugar à admiração na forma como um realizador importa o estilo de outro sem deixar de gerar algo original e de traços pessoais. Pensemos no caso de Paul Schrader, admirador extremo de Bresson [a ponto de replicar o final de Pickpocket (O Carteirista, 1959) em American Gigolo (1980) e Light Sleeper (Perigo Incerto, 1992)], mas cujo estilo expressivo e movimentado em nada evoca a austeridade e ascetismo do colosso francês. E, no entanto, como não usar o termo “bressoniano” para falar do seu extraordinário First Reformed (No Coração da Escuridão, 2017)? Tal como Schrader concebeu esse descendente americano de Bresson no seu último filme, Mangold criou o seu filho ocidental de Ozu no seu primeiro, Heavy (1995).
Pequena história de amor não correspondido, o filme de estreia de Mangold fala de um cozinheiro obeso, solitário e introvertido (Pruitt Taylor Vince num admirável desempenho lacónico sustentado essencialmente no rosto e no olhar) que se apaixona pela jovem rapariga (uma lindíssima Liv Tyler pré-Bertolucci) recém-contratada como empregada na sua modesta taberna pela mãe. Como as grandes personagens dos melhores filmes de Mangold [Cop Land (Copland – Zona Exclusiva, 1997) ou Logan], trata-se de um homem percorrido por uma permanente sensação de tristeza e solidão, aqui provocada pelo peso enquanto principal obstáculo para obter a coragem, confiança e auto-estima necessárias para o difícil acto da confissão dos sentimentos afectivos. Este cozinheiro é, pois, um Cyrano tímido de avental posto e ventre anafado, fazendo pizzas no lugar de poemas, tendo pela sua barriga a mesma inquietação existencial que o herói da peça de Rostand tinha pelo seu nariz.
Bastaria isto para dizer que Heavy é um belo drama desenvolvido em surdina sobre a necessidade de relações humanas e o medo da rejeição. No entanto, com o cinema de Ozu como crucial ponto de referência, torna-se ainda mais impactante pelo seu rigor formal e sensibilidade estética, reflectindo-se essencialmente no ordenamento e composição dos planos, na captura e organização do espaço, no posicionamento e orientação da câmara. Este texto não pretende mais do que mostrar algumas das influências do mestre nipónico no aprendiz americano a nível de realização e montagem.
Primeiro, a forma como o espaço doméstico é filmado, a obsessão metódica de pintor com a geometria e ritmo visual na composição da imagem, com janelas, corredores e passagens de portas a criarem enquadramentos dentro de enquadramentos, várias camadas no plano onde predominam as linhas paralelas e verticais, mas também diagonais longas, sendo o olhar do espectador encaminhado em planos maioritariamente estáticos, bilateralmente simétricos e de grande profundidade de campo, por onde as personagens caminham calmamente ou são meramente observadas. Em alguns casos, esta criação de densidade visual é também obtida pela colocação de objectos ou colunas em primeiro plano que, no caso de Heavy, juntamente com a pouca presença humana nos cenários, reforçam a sensação de inadequação social vivida pelo protagonista.
Seguidamente, os tão afamados ozuianos “pillow shots”, com objectos quotidianos, paisagens amplas e quartos vazios a marcarem a transição (geográfica e/ou temporal) entre cenas e, simultaneamente, a poetizarem o dia-a-dia das personagens. Mangold filma caixas de correio, pratos ou gaiolas com o mesmo cuidado e efeito com que Ozu filmava estendais de roupa, vasos ou bules, suspendendo o fluxo diegético para criar naturezas-mortas em celulóide dos espectadores silenciosos que são os artefactos domésticos, mostrando-nos a beleza que os utensílios simples de uma casa acarretam e atentando à maneira como aparentam evocar a memória dos seus residentes. Como escreve Bordwell no altamente recomendável Ozu and the Poetics of Cinema: «São divisores de cenas dramáticas, narrativas e de diálogo que ajudam a estabelecer um sentido de lugar; influenciam o ritmo do filme; aumentam a impressão de que Ozu é um documentador sublime da vida quotidiana nos seus detalhes mais minuciosos.»
No entanto, alguns destes pillow shots transportam também um relevo simbólico particular. Após a morte da mãe do protagonista, este toma a decisão de fazer dela um segredo, com medo de que a rapariga por quem está apaixonado abandone a taberna para procurar trabalho noutro local, concebendo assim um pseudo-estado de tempo suspenso onde a tragédia nunca aconteceu, um falso limbo onde as horas e os dias pararam e a relativa estabilidade anterior permanece. Esta dimensão de paralisação temporal psicológica é transmitida no gesto insólito do cozinheiro em não lavar os pratos ou deitar fora o pequeno-almoço que fora a última refeição da mãe, planos individualizados que Mangold usa e reusa (juntamente com os dos corredores inabitados do lar) enquanto a mentira é preservada.
Outros motivos visuais repetidos de Ozu (mas mais esporádicos) são os pillow shots de candeeiros ou relógios dependurados, a colocação dos actores ligeiramente de costas para a câmara (neste caso, quando o protagonista revela à rapariga a verdade quanto ao estado da mãe, postura sugestiva da vergonha sentida) e até os enquadramentos fixos a baixa altura reminiscentes da câmara-tatami (aqui usados enquanto planos subjectivos de um cão).
Quanto à montagem, esta é influenciada por Ozu no modo como o corte é induzido com base em correspondências gráficas ou geométricas entre um plano e o seguinte, fazendo frequentemente arcos de 90º ou de 180 de uma posição para a outra. Estes últimos chegam a ser conduzidos pelo princípio da colocação das personagens com posturas semelhantes a olharem na mesma direcção ou a fazerem um mesmo movimento, tornando-os composicionalmente análogos, algo particularmente presente na cena do hospital onde um paciente conversa com o protagonista no refeitório: Mangold coloca tanto um como o outro no lado esquerdo do enquadramento a olharem ligeiramente para a esquerda da câmara enquanto usam os materiais e alimentos da refeição, características equivalentes às cenas de mesa do realizador japonês, como, por exemplo, em Akibiyori (O Fim do Outono, 1960), com a disposição das pessoas no centro do plano e tacinhas e pauzinhos na metade inferior.
Não quer dizer que Mangold se limite ao papel de aluno aplicado. Para além das evidentes diferenças culturais, o seu filme é mais negro que os de Ozu, abrindo portas para perturbadoras sequências mentalmente subjectivas, como aquelas em que o cozinheiro imagina a sua apaixonada afogada ou o cadáver desta a passear sonambulamente pela casa. Mesmo em termo de opções de mise en scène há divergências como, por exemplo, uma inusitada panorâmica de 360º perto do final que reúne num movimento contínuo (capaz de atravessar o espaço pela montagem) as diferentes personagens essenciais, presentes em cenários distintos, mas vivendo o mesmo desalento, dando-nos o tom emocional justo compartilhado por todas elas.
São estes alguns dos aspectos estilísticos, visuais, em suma, estéticos do filme de Mangold. Mas quero também falar de éticos. Heavy acarreta o mesmo olhar sobre o mundo que caracterizou o cinema de Ozu. É daqui que vem a noção da transitoriedade que habita em cada fotograma, sugerida desde o começo naquele plano de um avião no céu, metáfora da passagem do tempo e das mudanças que o ciclo da vida implica, tal como Ozu sugeria por imagens de fumo ou ondas. É entre o voo de dois aviões (o do primeiro e o do derradeiro plano) que decorre este conto melancólico de auto-conhecimento, onde um anti-social inseguro aprende a estar em paz consigo próprio pela aceitação vagarosa da sua condição física, assim como pelo ganho de uma percepção resignada da brevidade da condição humana com os seus sofrimentos. É a moral ozuiana no seu estado mais puro: há que ultrapassar os conflitos individuais, a anuir ao futuro incerto e a assentir à efemeridade de tudo, sempre com uma sabedoria estóica e serena, sabendo estar deitado no berço embalado pelo som da vida e da morte, da felicidade e do desgosto, da chegada e da partida, em suma, da melodia de duas notas que define o ritmo da existência.