Mesmo que eu mande em garrafas
mensagens por todo o mar
meu coração tropical
partirá esse gelo
e irá
como as garrafas de náufragos
e as rosas partindo o ar
“Corsário” de Aldir Blanc e João Bosco,
na voz de Elis Regina
A imagem é recorrente em todo o filme, como a pontuar tanto a distância a cumprir entre dois destinos, como a marcar a proximidade da palavra e seu fluxo permanente em busca de precisão e generosidade. O mar em seu movimento, com as águas singrando de lado a lado no mesmo plano. Tudo é água, tudo é ar, entre Brasil e Portugal.
O filme, por óbvio, é de Manoel de Oliveira, o genial cineasta português que atravessou o século XX como um de seus mais lúcidos artistas e adentrou o XXI como um nonagenário e ousado pensador de imagens. Em Palavra e Utopia (2000), expressão e sonho, língua e ideia, fato e ideal, documento e desejo atravessam o mar e levam a terras estranhas a possibilidade de um país inteiro. Para isso, Oliveira se vale de Padre Antônio Vieira, vida e obra, vivência e texto, no dizer de Fernando Pessoa, o “imperador da língua portuguesa”, o mais brasileiro dos portugueses.
Manoel de Oliveira e Padre Vieira nos parecem adequados para compartilhar os mesmos sentimentos manifestados no ensaio que inaugurou, em setembro, a parceria entre Estado da Arte e À Pala de Walsh. Lá, a botelha lançada ao mar por Ricardo Vieira Lisboa foi dar em terras brasileiras por meio de nosso Glauber Rocha e sua viúva Paula Gaitán. Agora, mandamos mensagens em garrafas por todo o mar, para, então, nos aproximar ainda mais. E aqui nos valemos de Manoel de Oliveira e Padre Vieira.
Palavra e Utopia, o filme, se compõe ― e aqui a palavra é precisa, exata, porque Oliveira efetivamente compõe um filme, cumprindo sem querer, talvez, o papel reivindicado por uma das máximas godardianas do início dos anos 80, qual seja, mais do que dirigir, no cinema, o artista compõe. É o que faz o diretor português. Para esta composição, claro, lança mão dos sermões, cartas e reflexões de Vieira, que se transformam em ação, matéria prima de um filme-pensamento. Olhamos para a tela para ouvi-los de uma maneira inédita, ditos e interpretados pelos três atores que desempenham o papel de Vieira: os portugueses Ricardo Trêpa, na mocidade, e Luís Miguel Cintra, na meia idade; e o brasileiro Lima Duarte, no fim da vida. O barroco português em alto e bom som, na oralidade esplendorosa de Padre Vieira.
Oliveira faz dos sermões, dos textos de Vieira – ditos de forma clara, com dicção aguçada e perfeita pelos três atores – um elo, uma forma de diálogo entre imagens e planos. Nada aqui ilustra. Tudo aqui completa, adiciona, afirma e nos estranha. A sonoridade das palavras se torna também música, como a ser trilha das imagens. O diálogo, para além do sentido de cada palavra, de cada frase, de cada sentença, se estabelece na comunhão entre escrita e imagem. Uma comunhão de outra ordem – tão intelectual quanto a própria concepção do texto. O que se vê, o que se ouve, o que se apreende é o mar, a mata, os jardins e os céus como aquilo que são, obra de Deus; e é a construção, a arquitetura, as igrejas, os castelos, o navio, os pátios, como aquilo que também são, obra humana. Padre Vieira, pelo olhar de Oliveira, nos diz da comunhão do humano com o divino, para o completo.
Os magníficos planos fixos, constantes no cinema de Oliveira, aqui atingem o sublime. O diretor procede a montagem no próprio plano. Vieira fala e o vemos na profundidade do campo, enquanto a plateia que o ouve – sejam soldados, populares, estudantes, nobres ou escravos – está em primeiro plano. Os cortes, quando surgem, se mostram tão elegantes – cortam para um detalhe de uma escultura ou uma porta entreaberta – e nos dão o papel de quem também se coloca como espectador. Quando nos damos conta, o sentimento de estranheza instala-se em nós. Para Oliveira, o seu espectador nunca fica na zona de passividade, de conforto. Somos provocados a cada plano e, claro, a cada palavra. A câmera pouco se movimenta em planos sequência longos, austeros, rigorosos. Oliveira conduz uma narrativa com elementos reduzidos ao essencial. Nada exagera, nada extrapola. Não há arroubos, truques ou efeitos estilosos. Como se nos dissesse a todo instante que a vida segue. Mesmo uma história contada em certa ordem cronológica, nada no filme se presta ao tratamento convencional, ou tradicional, a uma biografia filmada. Pelo contrário. Estamos no Século XVII, mas nos esquecemos de tempos muito distantes e sentimos que as questões de Vieira são nossas, hoje, nesse nosso contemporâneo mundo.
Quando chegou aos 100 anos, em 2008, alvo de homenagens, perfis e retrospectivas, um repórter indagou, como óbvio nesses momentos, sobre o “segredo” de sua motivação, de continuar filmando, já centenário.
Não há segredo – é trabalho! É fazer algo, é um impulso natural. […] O cinema é um espelho da vida. Acredito que não seja um espelho simples, não existe outro! A produção de filmes é o único reflexo da vida. E, além de ser um reflexo da vida, é também um registro da vida.
O filme Palavra e Utopia surge oito anos antes. Em 2000, o cineasta pensa o mesmo sobre como abordar Vieira no cinema. Há muito o padre o fascina, com seus sermões, com suas cartas, que são espelho, reflexo e registro da vida, em palavras, nossa língua portuguesa no estado da arte. Aos 92 anos, com plena disposição, Oliveira reúne os recursos necessários para lhe dedicar um filme. O resultado, meio caminho entre o rigor do documentário histórico e a evocação ficcionada e poética, é a recriação da vida de Vieira e de seus sonhos e aspirações, por meio da palavra. Daí palavra e utopia. Premiado no Festival de Veneza, o filme se impõe em toda sua plasticidade textual.
Como bem resumiu a RTP – Rádio e Televisão de Portugal, a sinopse é simples:
Em Coimbra, no ano de 1663, o padre António Vieira apresenta-se perante o Tribunal do Santo Ofício. O célebre padre da Companhia de Jesus, cujos sermões tornaram célebre e perigoso, é agora alvo do sempre inquietante interesse da Inquisição, que vai acabar por o privar da pregação. Nascido em 1608, Vieira foi com a família para o Brasil em 1614, onde foi ordenado padre jesuíta. Através dos seus sermões denunciou as injustiças do seu tempo, com especial dedicação à causa da dos índios e dos negros, sujeitos à mais brutal escravatura. Amigo pessoal de D. João IV, Vieira é vítima das intrigas da corte e refugia-se em Roma. Cai nas boas graças do Papa, torna-se confessor da Rainha Cristina da Suécia e regressa a Portugal, acabando por ter seu pedido atendido por D. Pedro II (de Portugal), passar os últimos anos de vida no Brasil.
Manoel de Oliveira desenvolve esta sinopse como uma exegese cinematográfica. O texto segue como se o “compositor” Oliveira quisesse dissecá-lo conceitualmente por meio do diálogo entre natureza e arte, mais uma vez entre o que é divino e o que é humano. Não há metafísica aqui. Há a mise en scène cuidadosamente elaborada para traduzir conceitos complexos a partir da aparente simplicidade. O resultado é intelectualmente sofisticado e poderoso. Mas, claro, exige muito de nós. O cinema de Manoel de Oliveira é simples em sua alta complexidade, com várias camadas de leitura.
Permitam-me compartilhar uma dessas possíveis leituras. Nesta, o cineasta nos traz Vieira, seu mundo e sua arte, em três segmentos, que se intercambiam, cada um deles personificado por um dos atores que o interpretam nas três fases de sua trajetória. Como a vida, a narrativa segue: O Mar, O Corpo e O Vento.
O Mar
O mar
Quando quebra na praia
É bonito
É bonito
O Mar, Dorival Caymmi
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
“Mar Português” de Fernando Pessoa
Os negros cantam e dançam um ponto de umbanda, com o mar ao fundo. Pouco antes, ao fazer seus votos como sacerdote e jurar obediência ao Papa e à Igreja, no final de sua fala, baixinho, como a dizer a si mesmo e, claro, a nós, Vieira sussura “comprometo-me também a dedicar minha vida ao serviço dos índios e dos negros”. Da dança dos negros, corta para plano aberto da igreja. Os escravos lotam a igreja e muitos ouvem o sermão do lado de fora. Corta para o interior da igreja. Vemos os escravos a ouvir, do ponto de vista de Vieira. Oliveira compõe quadros com esculturas nos extremos do plano. O mar, cuja imagem funciona como o fluxo próprio da narrativa, aqui se traduz no meio em que se dá concretamente a transmigração a que ele se refere,
Uma das grandes coisas que se veem hoje no mundo, e nós pelo costume de cada dia não admiramos, é a transmigração imensa de gentes e nações etíopes, que da África continuamente estão passando a esta América. […] entra uma nau de Angola, e desova no mesmo dia quinhentos, seiscentos e talvez mil escravos. […] o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e se compra. Oh trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias, e os riscos das próprias!
CORTA PARA PLANO ABERTO DE VIEIRA NO ALTAR. OS NOBRES Á FRENTE DOS ESCRAVOS, OS OUVEM. CORTA PARA PLANO MÉDIO, VIEIRA E OS NOBRES DE PERFIL. OS NEGROS POSTADOS NA ENTRADA LATERAL DA IGREJA.
(…) Os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da servidão, e espetáculos da extrema miséria.
CORTA PARA PLANO FECHADO DE VIEIRA NO ALTAR.
Oh Deus! Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem, como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga e tão cruel? E que coisa há na confusão deste Mundo mais semelhante ao Inferno que qualquer destes engenhos?
O Corpo
Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem
“Tatuagem” de Chico Buarque e Ruy Guerra
Letreiro: S. Luís do Maranhão. Corta para o alto da fachada da igreja, contra o céu.
O sermão de hoje todo será do corpo, e para o corpo. Nos passados tratamos de como havemos de alcançar os bens espirituais; hoje ensinaremos como se hão de alcançar, e ainda acrescentar os temporais.
A maior pensão com que Deus criou o homem é o comer. Lançai os olhos por todo o mundo, e vereis que todo ele se vem a resolver em buscar o pão para a boca.
CORTA PARA PLANO ABERTO DA ENTRADA DA IGREJA. OS NEGROS ESTÃO DO LADO DE FORA, AO CENTRO. MAIS UMA VEZ LOTAM A IGREJA. OLIVERIA COMPÕE UM PLANO FIXO, UM QUADRO QUE REALÇA O PRETO E BRANCO. EM CADA EXTREMIDADE DO PLANO, NA FACHADA, ESTÃO DUAS ESTÁTUAS DE SANTOS.
Que faz o lavrador na terra, cortando-a com o arado, cavando, regando, mondando, semeando? Busca pão. Que faz o navegante no mar, içando, amainando, sondando, lutando com as ondas e com os ventos? Busca pão. O estudante nas Universidades, tomando postilas, revolvendo livros, queimando as pestanas? Em buscar pão se resolve tudo, e tudo se aplica ao buscar.
NA SEQUÊNCIA, UM CORTE MUDA A IMAGEM, O ASSUNTO E O SENTIDO.
Padre Vieira está no púlpito, mas desta vez em uma cripta da igreja, local incomum para falas e sermões. Em sua tese de mestrado Eterno Retorno: biografia como espaço de memória e reflexão, defendida na Universidade de São Paulo, Edimara Lisboa diz que “O Vieira maduro prega, aparentemente sem a presença de ouvintes, num cemitério vertical. Posicionada numa extremidade do edifício, a câmera mostra em plano geral inclinado e com profundidade as paredes repletas de lápides e a vacuidade do corredor, em cuja outra extremidade está uma estátua do Cristo crucificado. À esquerda da estátua e mais adiantado está Vieira sobre o púlpito e à direita e mais afastado um homem vestido de preto. Mais acima e emoldurada por uma janela, a imagem da Virgem completa este primeiro frame da cena, já em si enigmática.”
Padre Vieira:
Não há terra mais dificultosa de governar que a pátria, nem há mando mais sofrido, nem mais mal obedecido que o dos iguais.
Fulminar raios, estremecer o mundo com trovões, escalar torres, derrubar casas, matar homens, tudo é muito fácil ao poder, em quem abusar dele. Domar feras, amansar rebeldias, e reduzir a que vivam conforme a razão os que, por natureza e costume, não têm uso dela, esta é a dificuldade grande em toda a parte, e, na terra em que estamos, maior que em nenhuma outra. Menos há de cinquenta anos que nesta terra se não conhecia o nome de rei, nem se tinha ouvido o de lei; e que dificuldade será fazer obedecer e guardar nela as leis dos reis?
Desde o mesmo tempo se sustentam os que a conquistaram, não dos pastos de animais domésticos, senão da caça e montaria de homens; e que dificuldades será ainda maior manter em paz e justiça os que só se mantêm da guerra injusta?
Onde está a tua sabedoria que não te pode livrar disso?
Vieira é retirado do púlpito por dois homens.
A professora Edimara Lisboa conclui, aqui, sobre a mise em scène de Oliveira, “Parece-nos que essa escolha traz para o plano físico (e digo eu, do corpo) o que se passa com o personagem”. O Vieira maduro retomando o ministério do Vieira jovem, que é a defesa dos índios e negros. E a caveira simbolizando, talvez, o que iria acontecer na sequência com esse ministério: expulso do Brasil e perseguido pelo Santo Ofício, o Vieira maduro será impedido de lutar mais diretamente contra a escravidão. Somente o velho Antônio Vieira, de Lima Duarte, conseguirá dar sequência ao voto que fez quando jovem, entendido no texto oliveriano como a vocação e grande legado intelectual e artístico do autor jesuíta dos seiscentos, que fez dele um visionário, muito à frente de seu tempo.
O Vento
Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No Sol de quase dezembro
Eu vou
“Alegria, Alegria” de Caetano Veloso
“Pois que é tudo vento e fumo”. O padre, cansado das andanças, dos maldizeres, das perseguições e incompreensões está de volta ao Brasil, sua província religiosa. Oliveira nos mostra, em um único plano, a rejeição sofrida por Vieira ao retornar. Ele não merecia isso e manifesta em carta a sua decepção e mágoa:
Não merecia Antônio Vieira aos portugueses, depois de ter padecido tanto pelo amor da sua pátria, e arriscado tantas vezes a vida por ela que antecipassem as cinzas e lhe fizessem tão honradas exéquias.
Na Universidade da México, me dedicaram umas conclusões de toda teologia. E posto que da empresa da Fênix, das palmas e das trombetas, nenhum caso faço, pois que tudo é vento e fumo.
Não posso deixar de me magoar, e muito que ao mesmo tempo que numa Universidade portuguesa se afronte a minha estátua, numa universidade de castelhanos se estampe a minha imagem. Por certo que nem a uns nem a outros merecia eu semelhantes correspondências.
Como o vento que tudo leva e o fumo que sempre se acaba, Padre Vieira sabe que seu tempo está findo. Viveu mais 16 anos em solo brasileiro. No fim, em seu leito de morte, Manoel de Oliveira lhe dá um retrato digno da pintura seiscentista, com a luz plena em seu rosto; ouvem-se as badaladas dos sinos. Não há silêncio depois de tanta palavra e oratória. Há o som do sino.
Pois que é tudo vento e fumo.
Jeffis Carvalho
Jornalista, roteirista, pesquisador de cinema e coeditor de Cinema do Estado da Arte.
Este texto foi publicado, em simultâneo, no À pala de Walsh e no Estado da Arte – Revista de Cultura, Artes e Ideias.