O actor Michael Lonsdale faleceu no passado dia 21 de Setembro, em Paris. Tendo trabalhado com alguns dos mais importantes autores do cinema europeu (Alain Resnais, Ermanno Olmi, François Truffaut, Jacques Rivette, Joseph Losey, Luís Buñuel, Manoel de Oliveira, Marguerite Duras, Orson Welles, entre tantos outros) e também no centro da indústria norte-americana de Hollywood (interpretou um dos vilões na série 007, trabalhou com Steven Spielberg e John Frankenheimer), a sua carreira espalhou-se pelo continente Europeu e Americano, desmultiplicando-se nas línguas que dominava e nas mais diversas e subtis abordagens. O que agrega as mais de duas centenas de participações em filmes, rodados ao longo de mais de sete décadas, é um corpo, curvado, e a finura do seu desempenho. Recordêmo-lo.
A primeira imagem que nos chega quando recebemos a notícia da morte de Michael Lonsdale é a de um recorte de um homem vestido de branco, reflectido num lago, acompanhada da narração da noticia da queda em desgraça do vice-cônsul francês em Lahore, desprezado em Calcutá; é também o primeiro plano que Marguerite Duras oferece a Lonsdale em India Song, a obra máxima de escritora cineasta, que como em outras ocasiões aponta a latitudes remotas, resgatadas das suas memórias de infância e juventude: da mesma forma que a Literatura de Duras disputa com o seu Cinema, se impõe nele como uma linguagem que ensombra a outra, as vozes, que narram e dialogam, rivalizam e guiam as imagens, com os actores e os seus corpos, que dividem a composição dos planos com os objectos, candeeiros, portas e janelas, mobiliário e cortinas, numa modorra com a cadência das baladas de Carlos D’Alessio e das águas nas margens do Delta do Ganges. Lonsdale é, então, o fantasma apaixonado, um homem devoto a Anne-Marie Stretter, que primeiro chora em close-up perante a imagem da mulher de peito descoberto no chão partilhado com dois homens adormecidos, mas que o contra-campo de Duras empurra para um campo de ténis deserto.
Delphine Seyrig continuará a dar-se aos amantes, acessível a todos que a procuram, mas inatingível para o vice-cônsul, um Lonsdale quase sempre ausente da imagem, mesmo quando os narradores e as vozes dos personagens falam do seu amor e da sua desgraça, como uma doce doença, uma lepra do coração, outrora fonte de esperança de amar, disponível para o consumar através do prazer de outros homens que partilham a intimidade de Anne-Marie Stretter, um amor louco. A figura taciturna do vice-cônsul volta às imagens de Duras e Seyrig devolve-lhe o olhar uma única vez, mas Lonsdale acaba engolido pelo espelho, e é já a sua voz que lhe mendiga a intimidade, a partilha dos salões e das danças, por uma única noite. O vice-cônsul, que se guardara virgem para aquela mulher e para Calcutá, para ouvir India Song, é expulso do palácio e apenas lhe resta um grito, um lamento insuportável que ecoa até ser dia, que fala do seu amor e repete o nome da origem daquela mulher, Anna Maria Guardi, o seu nome de Veneza no deserto de Calcutá, a que Duras haveria de dedicar um outro filme, lado b que replica a metragem de India Song, preenchido da mesma banda de som, das mesmas vozes que narram amores e desejos, calor e chuva das índias, desespero e morte, mas com outras imagens, talvez um possível contraponto, travellings preenchidos por ruínas exteriores do palácio, como um prolongamento do suplicio do vice-cônsul e das memórias de Anne-Marie Stretter: Son nom de Venise dans Calcutta désert (1976).
Vitor Ribeiro
Lonsdale é daqueles actores que ficam sempre bem, mas não é bibelot nenhum, atenção! A sua carreira internacionalíssima está repleta de aparições mais ou menos curtas que deixam, quase sempre, a sua marca, o seu imprint, na obra que estamos a ver. É como uma água ardente velha em noites geladas: a sua presença reconforta e confere status aonde quer que seja que damos de caras com ela. Lonsdale era – é! Será sempre! – essa presença que eleva toda uma produção, mas Jean Eustache reservou-lhe um papel que vinha desafiar-nos também por causa disso: estávamos na companhia da “melhor companhia” do cinema europeu – a seu lado estava o crítico mais gourmet do mundo, o saudoso Jean Douchet – e o que este nos vinha contar, entre cigarros e subtis esgares, era uma história feia, suja, desconfortável de se ouvir.
Une sale histoire (1977) tira partido do dispositivo mais simples do mundo: num serão entre amigos, alguém conta uma história. Mas esse alguém era muito especial: Lonsdale fazia da sua presença, da sua elegância natural, uma espécie de engodo para o que vinha aí. A “história porca” que conta tinha de ser narrada por alguém como ele: a souplesse é o grande efeito especial aqui – aliás, havia actor com uma voz mais elegante no cinema europeu? Não havia. Ora, à medida que a história sai da sua boca e se conspurca, vamos reciclando o choque ou o espanto, fazendo de uma tusa de merda matéria para reflectir, algo a saborear como se fosse a tal água ardente cara – se Lonsdale acha por bem contar esta história, então devemos prestar atenção e ponderar sobre o que ele (nos) conta. O filme de Eustache tira partido desta “arte da narrativa”, que é inata a este grande actor, para descer – quase literalmente – à porcaria e, depois, eleva-nos, lá para o fim, depois de maturarmos muito, por força de uma das mais provocadoras – buñuelianamente insinuantes – metáforas sobre o cinema – sobre o cinema, não, sobre a cinefilia, assunto belo e porco, porque devora tudo, e nos devora, provocando muitas vezes digestões difíceis, diarreias intensas. E não há tempo sequer de puxarmos o autoclismo…
Luís Mendonça
Não é tarefa fácil escolher um filme a que associemos de forma mais particular Michael Lonsdale. Por um lado, porque a sua carreira se compõe de um número impressionante de filmes, fluindo entre cinematografias muito diferentes (também em resultado do seu bilinguismo). Por outro lado, porque muitos dos seus papéis são fugazes (o que não quer dizer que sejam, de algum modo, despiciendos). Daí ter escolhido justamente o filme em que o carácter fugidio da sua participação é expressamente declarado – “et la participation fugitive de Michael Lonsdale”.
O filme chama-se Nelly & Monsieur Arnaud e constrói-se nos ambientes a que Claude Sautet nos habituou – em cafés parisienses, onde os relatos mais íntimos se fundem com o tilintar de chávenas e copos. Monsieur Arnaud (desempenhado por Michel Serrault) é um homem envelhecido, antigo magistrado e homem de negócios, que decide reunir em livro as suas memórias. Perante as frustrações que a utilização de um computador lhe provoca, confia a Nelly (uma radiosa Emmanuelle Béart) o trabalho de dactilografar essas memórias. Michael Lonsdale é Dolabella, uma figura algo misteriosa que vai fazendo incursões (ou participações fugitivas) na vida de Monsieur Arnaud. Nunca sabemos muito sobre ele, já que tudo o que sabemos resulta de uma breve e não muito credível narrativa que Arnaud partilha com Nelly. Dolabella é um velho amigo de Arnaud que, afinal, será um chantagista suave, mas que parece condenado a deixar pequenas notas escritas na sua tentativa de contactar Arnaud. Tudo se afigura plausível, o que resulta do charme e da serenidade de Lonsdale (com uns piropos à Béart pelo meio). Não nos é difícil acreditar que Arnaud entregasse dinheiro a Dolabella sem que fosse necessária grande persuasão, quer se tratasse de ajudar um velho amigo ou de evitar que verdades inconvenientes fossem reveladas.
Daniela Rôla
No obituário o Le Monde chamou-lhe “actor extraterrestre” e descreveu a sua figura ligeiramente curvada “como um ponto de interrogação”. É assim que também vejo Michael Lonsdale, reconhecendo nessa figura a fleuma britânica da parte do pai e a veia francesa do lado da mãe. Mas há ainda uma alma beatífica que aqui e ali espreita no corpo e fácies enigmáticos. Como se algo do segredo da sua postura, não apenas física, perante a arte (e a vida) estivesse na inclinação religiosa que descobriu aos 22 anos, quando se converteu ao catolicismo, e que simbolicamente culminou na personagem de um monge no filme de Xavier Beauvois, Des hommes et des dieux. Antes desta, várias entidades eclesiásticas atravessaram o seu currículo: o padre de Le procès (O Processo, 1962) de Orson Welles, o outro de Le souffle au coeur (Sopro no Coração, 1971) de Louis Malle, um abade bibliófilo em Der name der rose (O Nome da Rosa, 1986) de Jean-Jacques Annaud, o cardeal Barberini em Galileo (1975) de Joseph Losey, e o velho pároco de Il villaggio di cartone (A Aldeia de Cartão, 2011) de Ermanno Olmi.
Acima de todos eles paira o tal frère Luc de Des hommes et des dieux, sobre quem o próprio Lonsdale escreveu um livro. Homem de fé, o actor que tão bem se encaixou no universo anticlerical de Buñuel, assume aqui o semblante da espiritualidade telúrica mais próxima da sua pessoa. Neste elevadíssimo filme de Beauvois, que retrata a história verídica da resistência dos monges de Tibhirine ameaçados por fundamentalistas islâmicos durante a guerra civil argelina em 1996, Lonsdale tem margem para revelar um pouco mais do extraterrestre que habitou o planeta do cinema. Ele é a imagem concreta do humanismo, do amor e do “cuidar do outro”, sem adereços ascéticos ou água benta – nem o filme se presta a isso nem Lonsdale, mesmo o crente, era dado à psicologia de adorno. Para ele estava tudo na palavra dita. Por isso é tão perfeita e luminosa, na sua simplicidade, a cena em que a jovem Rabbia (Sabrina Ouazani) lhe pergunta o que é estar apaixonado. Luc, o monge, explica-se nestes termos: “Il y a quelque chose en vous qui s’émeut, la présence d’un être, qui est incontrôlable et qui fait que le cœur bat, généralement… C’est une attirance, c’est un désir… C’est très très beau. Donc il ne faut pas trop se poser de questions. C’est un état de fait: on est comme ça puis tout d’un coup, c’est le bonheur, enfin l’espoir du bonheur, c’est un tas de choses. Enfin c’est un trouble, un grand trouble”. Michael Lonsdale, o homem, di-lo com autoridade na matéria, porque na graça de Deus o seu tímido coração bateu outrora por Delphine Seyrig.
Inês N. Lourenço
Em O Gebo e a Sombra, o nosso Gebo / Michael Lonsdale é um homem responsável pela recolha de dividendos de uma grande empresa, Ramires & Ramires. Um homem poupado e simples que trabalha todos os dias com o dinheiro dos outros sem que daí cresça qualquer tipo de tentação (“Nem me lembro que é dinheiro”). Tudo se passa num pequeno quarto e nesse quarto tudo se passa à volta de uma mesa e nessa mesa tudo se passa à volta de uma maleta e nessa maleta vivem setecentos mil reis, quase um conto! Come-se nessa mesa, conversa-se, enfim, vive-se, mas o dinheiro está lá sempre (nunca o vemos, só vemos a maleta). O Gebo foi a última longa-metragem de Manoel de Oliveira e surgiu em plena administração da Troika, em Portugal. Em termos político, o filme liga-se com A Caixa (1994), onde uma caixinha de esmola de um cego gerava cobiça entre os vizinhos, numa alegoria sobre a entrada de Portugal na então CEE – ainda que os anteriores Singularidades de uma Rapariga Loira (2009) e O Estranho caso de Angélica (2010) já reflectissem sobre o a crise econonómico-financeira de 2008. Embora esta tenha sido a primeira e única vez que Michael Lonsdale tivesse participado num dos filmes de Manoel de Oliveira, a sua ocupação do espaço desnaturalizado, a presença dos seus gestos repetitivos, a disposição das deixas mecânicas e a forma do seu movimento ruminante integram, na totalidade, o universo oliveiriano e a sua direcção de actores. Como escreveram António Preto e Mathias Lavin, na Cahiers du Cinéma, este é um filme “particularmente comovente pela força com que todos os intérpretes incarnam os seus papéis. A escolha de atores consagrados e, nalguns casos, já idosos [além de Lonsdale, Claudia Cardinale, Jeanne Moreau e Luís Miguel Cintra] torna ainda mais sensível a passagem do tempo. (…) Michael Lonsdale oferece-se, em O Gebo e a Sombra, como um espelho de Oliveira.”
De facto, Lonsdale apresenta-se, neste filme, como a figuração final de Oliveira, literalmente fixada em luz. O filme termina num freeze frame, o primeiro momento em que entra luz natural naquela casa (o primeiro momento em que “Gebo projecta uma sombra”), congelando o olhar do velho actor perante o desaire de uma vida sem finalidade. Uma luz que invade o espaço cinzento daquela casa, e que queima os olhos e os rostos. A mesma luz da explosão que iluminava o rosto horrorizado de John Malkovich no final de Um Filme Falado (2003), de novo num freeze frame onde se congelava, mais uma vez, o olhar de um capitão de um barco à deriva na história. E não é essa mesma luz, que ilumina e fixa esses dois personagens, a luz do projetor de cinema que tudo preenche (e tudo queima) no final – aí definitivo – de Visita ou Memórias e Confissões (1982-2015)? Com a morte de Michael Lonsdale perdeu-se não só um dos mais ecléticos actores europeus, como um dos vários alter-egos de Oliveira na tela, depois da partida de Marcello Mastroianni e Michel Piccoli. Resta-no, ainda, Luís Miguel Cintra, o sedutor, Ricardo Trepa, o galã, Malkovich, o profissional, Lima Duarte, o pregador (é João Mário Grilo que vê no retrato do Padre António Veira um espelho de Oliveira, outro…), entre outros. A demonstração de que os atores, em cinema, são, muitas vezes, e em particular no cinema de autor, “pontos de vista”, “veículos” ou meras “presenças” – como defende Jorge Silva Melo. Um homem e um modo de olhar e encarar o mundo decomposto em vários corpos, que o reinterpretam e o moldam à sua media. Lonsdale foi engolido por essa máquina, preservando, ainda assim, toda a sua finura e delicadeza. Fica-nos a sua sombra. A seu gebo (que é sinónimo de corcunda) a sua sombra.
Ricardo Vieira Lisboa