The Nest (O Ninho, 2020) inicia num amanhecer normal de uma família. Os filhos tomam o pequeno-almoço, o pai vai fazendo café enquanto ouve as notícias da manhã, a mãe acorda mais tarde com uma chávena de chá que lhe é trazida pelo marido. Mas já antes disso, num primeiríssimo momento (quase) testemunhamos um telefonema estranho (num filme em que abundam as coisas que não estão bem). Percebemos depois que se trata de uma chamada intercontinental e daí a sua hora matinal. E quase nem reparamos que aquele telefone é antiquado, já que a localização temporal vai-nos sendo servida às colheradas.
As coisas parecem correr bem a Allison (Carrie Coon, que tem em Allison e em toda a sua infelicidade a sua hora feliz) e Rory (Jude Law). Ele trabalha na área dos negócios, Allison ocupa-se de um estábulo. Samantha é a filha adolescente, fruto de um casamento anterior de Allison e Ben é o filho mais novo do casal. Rory parece também ter uma boa relação com os filhos, ainda que haja um momento de competitividade exacerbado que deixa algum travo desagradável.
Estamos em meados da década de 80, mas isso é algo que nos vai sendo paulatinamente ensinado, pontilhado na narrativa: primeiramente, o tal telefone em que quase não reparámos, depois o noticiário com referências à presidência Reagan, depois a música, claro. Além da excelente música original composta por Richard Reed Parry, membro dos Arcade Fire, há também um povoar das cenas com a sua cor musical própria. E a música é também o lugar confortável das personagens, aquele que lhes permite sentirem-se no seu espaço próprio. Numa cena inicial, em que Allison conduz o seu carro em direcção ao trabalho, ouvindo “These Dreams” dos Heart no rádio, enquanto fuma e bebe o seu chá, conduz-nos a uma cena semelhante no recente Nuestro Tiempo (O Nosso Tempo, 2018), de Carlos Reygadas, dessa vez ao som de Genesis, mas onde o carro era também o reduto último da privacidade. Obviamente, o universo musical da filha adolescente é especialmente diversificado, como seria próprio de uma adolescente, mas também neste caso é possível que a música é utilizada com propósito, permitindo-nos sentir uma sombra que vai tomando conta do mundo de Samantha.
Por um lado, há o deslumbramento do sonho americano, do sucesso e do dinheiro, da rápida ascensão social, por outro lado há o desconforto face ao old money, face a um mundo aristocrata inacessível.
Aqueles pequenos sinais de desconforto que nos foram sendo dados começam a concretizar-se no momento da grande alteração na vida da família O’Hara. É em mais uma manhã em que leva o chá à sua mulher que Rory lhe anuncia os seus planos para abandonarem os Estados Unidos e irem viver para Inglaterra. Trata-se de aproveitar o iminente boom económico na city londrina, a oportunidade de uma vida. Algo que Allison aceita com muitas reservas, como quem já ouviu a mesma história demasiadas vezes.
A nova casa que passará a ser a residência dos O’Hara em Inglaterra é uma belíssima mansão, situada no campo. E a nova vida em Inglaterra vem com todos os acessórios: o Mercedes-Benz vermelho de Allison, o seu cavalo, o casaco de chinchila, a escola seleccionada para o filho, os jantares em restaurantes luxuosos.
Por um lado, há o deslumbramento do sonho americano, do sucesso e do dinheiro, da rápida ascensão social, por outro lado há o desconforto face ao old money, face a um mundo aristocrata inacessível (veja-se o desdém com que, mais tarde, o chefe de Rory desconsidera a sua proposta, relembrando-lhe que é o dono do dinheiro e do poder). Embora Rory tenha todo o à-vontade de outros sedutores impostores, como o Frank Abagnale Jr. de Catch Me If You Can (Apanha-me Se Puderes, 2002) ou o Stephen Glass de Shattered Glass (Verdade ou Mentira, 2003), há uma espiral descendente que o vai sugando, a ponto de ele próprio acreditar nas suas mentiras (até que, num momento de extrema solidão e frustração, abre totalmente o seu jogo com um confessor improvável, um taxista que se afigura o cruzamento entre um bartender bom ouvinte e um guru de auto-ajuda, numa cena de efeito magistral).
Por outro lado, há uma enorme sensação de invasão de terreno estranho. A família O’Hara entra naquela casa tal como a segunda Mrs. de Winter havia entrado em Manderley – nada ali lhes pertence verdadeiramente, a mobília transportada dos Estados Unidos não encaixa bem, há uma persistente sensação de desadequação. Se há coisa que aquela casa não é para eles é, justamente, um ninho. No jogo esquivo lançado por Sean Durkin, somos em alguns momentos levados a pensar que a casa ocupada é uma casa assombrada. Mas não é disso que se trata: é a própria casa que lança a sua sombra sobre a família que nela procura a sua morada. O vazio da casa é o mesmo vazio que vai tomando conta dos seus ocupantes.
“No one is the same here. Nothing is the same here.“
Um sítio em que tudo é diferente, em que as pessoas (as poucas pessoas que nos são dadas a conhecer além da família O’Hara) são diferentes, tal como desabafa Allison. Não há, na verdade, qualquer dispersão que nos afaste do contexto familiar e do contexto profissional de Rory, o mundo em que ele monta a sua teia de ilusões. Dos filhos Samantha e Ben sabemos que a sua adaptação à escola e aos novos colegas não está a correr bem, mas nada é dado a ver, tudo converge para o “ninho”.
O verdadeiro sismógrafo das inquietações e problemas da família é o cavalo de Allison. O sofrimento do cavalo é o sofrimento de Allison. Depois da travessia do Atlântico, o animal nunca consegue recuperar a tranquilidade, acabando por claudicar quando os problemas são demasiados para poderem ser ignorados. A década de 80, que parecia materializar a promessa de sucesso, riqueza e rápida ascensão social, imortalizada em filmes como Wall Street (1987), não ofereceu paliativos aos falhados. O que fazer, perante a ruína do sonho americano?
Sean Durkin não nos deixa, todavia, sem esperança para o destino daquela família. Aquilo que Rory pretende nada tem de inovador e até mesmo um taxista poderia dizê-lo ao fim de cinco minutos de viagem e de conversa: procurar dar aos filhos um pai melhor do que ele teve. Allison quer ser mais dona de si mesma, não entregando a sua capacidade de decisão cegamente nas mãos do marido (algo que a filha lhe censura severamente). Depois da longa caminhada de sombras de Rory, sombras que quase o engolem na sua escuridão, a família reencontra-se em casa em plena aurora. E a casa é tomada pela luz da manhã – mais uma manhã, tal como quando havíamos iniciado a viagem.