A propósito do seu último filme, The Human Voice (A Voz Humana, 2020), cuja estreia comercial nas salas portuguesas se anuncia para breve, Pedro Almodóvar fez por diversas vezes afirmações que, “nas presentes circunstâncias”, são um interessante motivo para pensar o cinema e para avaliar os seus efeitos e o seu lugar na vida de um espectador.

De entre as várias declarações públicas do realizador, feitas inicialmente por ocasião da participação do filme no Festival de Veneza, onde foi apresentado na secção Fora de Concurso, e reiteradas depois numa entrevista para o Festival de Cinema de Nova Iorque e, mais recentemente, retomadas aquando da estreia do filme em salas de cinema em Espanha, começaria por destacar a seguinte reflexão:
“O confinamento fez-nos ver a casa como um lugar de reclusão. Um lugar a partir do qual podemos trabalhar, podemos fazer compras, podemos encontrar o amor da nossa vida, podemos encomendar comida; podemos fazer absolutamente tudo, mas de modo sedentário. Isso a mim parece-me perigoso. Aliás, as empresas já descobriram que os trabalhadores podem trabalhar em sua casa e que isso fica mais barato. Por isso, eu contraporia a esta situação de reclusão ― apesar de no caso da covid se tratar de uma reclusão obrigada, mas dado que não me agrada que a situação se perpetue ― eu contraporia a tudo isto o cinema. O cinema é absolutamente o oposto disto. Ir ao cinema é lançar-se numa aventura. É preciso vestir-se, é preciso pensar que imagem se quer dar aos outros; além disso é preciso ir à rua, dar de caras com a vida lá fora, é preciso escolher um filme e, depois, é necessário partilhar, num espaço escuro, na companhia de um monte de desconhecidos como acontece cada vez mais, dizia, partilhar emoções, passar por algo que os gregos chamavam catarse, aterrorizar-se, chorar, emocionar-se entre os outros. Creio que isso é uma experiência essencial a nível humano”[i].
Nas crónicas que publicou no jornal digital elDiario nos primeiros tempos do confinamento e que a revista Sight & Sound (BFI) reproduziu em inglês, com um desfasamento de uma semana, como o seu “diário de confinamento” em quatro partes, Pedro Almodóvar dá testemunho, depois de um primeiro momento de recusa, da vida que leva “como um selvagem, ao ritmo marcado pela luz das janelas”, mas em que nunca faltou a leitura e os DVD. Na ocupação dos seus dias tem lugar de destaque a “programação de cinema, telejornais e cultura” servindo quer para uso próprio quer de “recomendações” para os outros, enquanto a sua laboriosa memória evoca momentos profundamente marcados pelo afecto, e justifica também a oportunidade para convocar revelações indiscretas. Para o realizador, entregue a tarefas de espectador-leitor, a escrita torna-se “uma forma de fuga em frente” e um exercício de “muita confiança no cinema”.
Se é verdade que durante o confinamento o recurso à ficção e, mais genericamente, à cultura pôde demonstrar até que ponto há uma tão grande dependência da ficção e teria mesmo tornado mais fácil explicar por que é que a cultura é absolutamente necessária para todos, tal não impediu que, ao mesmo tempo, se produzisse uma bem visível retracção dos consumidores e, por parte das grandes distribuidoras, um efectivo bloqueio à estreia e circulação de novos filmes; aliás, de semana para semana, multiplicam-se as notícias cada vez mais inquietantes sobre o encerramento de salas de cinema.
Ainda assim, num momento em que tudo parece indicar que temos pela frente tempos de grandes provações em que todo um mundo e uma forma de viver se afundam irremediavelmente, ao contrário dos que usam prognósticos de agoiro para invalidar as possibilidades de sobrevivência do cinema, irei recorrer a Roberto Calasso para afirmar que uma situação limite contém preciosas indicações sobre aquilo de que não devemos de todo largar mão em tempos difíceis. Foi numa conferência feita em Moscovo em 2001, sobre a arte da edição livreira, que Roberto Calasso, director editorial da prestigiada casa de edição Adephi, evocou essa situação limite protagonizada pela Livraria dos Escritores:
“Um exemplo que chega da Rússia. Em plena Revolução de Outubro, (…) quando as tipografias foram fechadas por tempo indeterminado e a inflação fazia disparar os preços de hora a hora, um grupo de escritores (…) pensou lançar-se no projecto aparentemente insano de abrir uma Livraria dos Escritores, que continuasse a permitir que os livros, e sobretudo certos livros, circulassem. (…) Aquilo que Osorguin e os seus amigos gostariam de ter criado era uma pequena editora. Mas as circunstâncias impossibilitavam-no. Então usaram a Livraria dos Escritores como uma espécie de duplo de uma editora. Já não era um lugar onde se produziam novos livros, mas onde se tentava acomodar e fazer circular livros de toda a espécie (…). Era importante manter vivos certos gestos: continuar a manusear aqueles objectos rectangulares de papel, desfolhá-los, encomendá-los, falar sobre eles, lê-los nos intervalos entre tarefas, em suma, continuar a partilhá-los. Era importante estabelecer e manter uma ordem, uma forma: reduzida à sua definição mínima e essencial, é esta precisamente a arte da edição. E assim foi praticada em Moscovo entre 1918 e 1922, na Livraria dos Escritores”[ii].
Na tentativa de gizar uma possível correspondência em que, atravessando o cinema uma situação extrema, o exemplo da Livraria dos Escritores pudesse servir de “modelo e estrela-guia” para a “definição mínima e essencial” da sua forma, será de considerar antes de mais o cotejamento histórico a que David Rodowick procede nos seguintes termos:
“Durante todo o séc. XX, no que respeita à produção cinematográfica, os processos tecnológicos tiveram inovações constantes, as suas formas narrativas evoluíram continuamente e os seus próprios modos de distribuição e fruição variaram amplamente. Mas o que resistiu foi uma certa forma de investimento psicológico ― uma modalidade de desejo, se assim lhe quisermos chamar”[iii].
A consistência da proposta de aferir a capacidade de resistência do cinema tendo como critério de referência o investimento do espectador pressupõe atribuir a essa experiência a importância a nível humano que Pedro Almodóvar reivindicava para a aventura de ir ao cinema.
Foi ao ler um texto de Julia Kristeva[iv] (num livro colectivo construído a partir de encontros em que os protagonistas demonstram que “a admiração é o reconhecimento surpreendido da alteridade” e que, no caso em apreço, diz respeito ao “encontro entre uma humanista não crente e um crente”) que, para dar corpo à hipótese que agora me interessa, me veio à cabeça a ideia de voltar à figura de Gregório Magno (cujo papel no enquadramento da representação visual e do uso das imagens para ensinamento dos fiéis já não me era desconhecido). A tese[v], originalmente publicada em 1977 e reeditada em 2014, de Claude Dagens (o crente), que Julia Kristeva (a humanista não crente) admira e elogia, tem como propósito compreender, a partir de dentro, a experiência cristã de Gregório Magno e a sua concepção da cultura num momento em que esta já não é a cultura antiga, mas também ainda não é a medieval. A remissão para uma interioridade psíquica que se constitui não como confinamento ou reclusão, mas como alicerce para uma nova forma de relação entre o interior e o exterior é o que a marca como humana. Quando inquirido sobre o que realmente aprendera com o estudo da “cultura e da experiência cristãs” tal como foram vividas por Gregório Magno, na defesa da sua tese Claude Dagens não hesitou em dar uma resposta inequívoca: “a esperança cristã em tempo de provações”.
Por referência a essa nova cultura da esperança, o que da parte de Julia Kristeva é posto em relevo são as “metamorfoses”, como lhe chama, da experiência interior cuja configuração se operou através de uma série de rupturas e de inovações. Com o aprofundamento da experiência interior proposta por Gregório Magno como fundamento da cristandade, para além da complexidade intrínseca da mesma ao ser vista em diferentes configurações históricas, será, porventura, possível discernir um núcleo firme que é posto à prova ao explorar os limites da condição humana na experiência interior, num contexto histórico de violência e ameaças do início do séc. VII, cujas semelhanças com as do tempo presente não deixam de constituir fonte de curiosidade e de inquietação.
Deixo assim em aberto a hipótese a que já aludi: a modalidade de experiência interior subjacente ao dispositivo cinematográfico representará, talvez, a “metamorfose” moderna que no séc. XX confiou ao cinema o “terreno da nossa humanidade” comum, imenso e precioso. Ao diagnóstico sobre o que nos aflige no tempo presente, que Julia Kristeva caracteriza como comportando simultaneamente o desaparecimento de si-mesmo e a anulação do outro, haverá que juntar o acanhamento crescente do nosso universo semântico que, porventura, contribuirá para explicar o facto de andarmos à nora, por exemplo, relativamente à designação adoptada para definir as três dimensões ou estruturas fundamentais ― interioridade, conversão, escatologia ― da experiência protagonizada por Gregório Magno. E, no entanto, relativamente à experiência vivida no cinema, essa ocupação (criativa) do tempo que Stanley Cavell definiu como “hora e meia de solidão especulativa”, a transposição dessas orientações constantes da experiência interior, quais invariantes que teimam em reaparecer, não seria totalmente fora de propósito.
Nestas crónicas, que previsivelmente serão umas dez (a não ser que algum remate se justifique), à semelhança do livro de Italo Calvino[vi] em que acabei por encontrar a variação pretendida para o título, antecipa-se a intenção de em cada uma abordar a forma vitae cinematográfica, acreditando que se confinado um espectador “afasta o frio, repondo sem parcimónia na lareira / a lenha”[vii] descobre que o que há de melhor no seu olhar, mas não pode alcançar por via directa, continua em brasa e iluminado no cinema, e anima a dar um passo em frente em direção a um mundo que corresponda aos nossos desejos.
Os perseverantes ― entre os quais me incluo ― sabem por experiência própria que os tempos são sempre difíceis e, por isso, acolhem de bom grado a recomendação de Almodóvar para que “vão ao cinema, pois toda essas emoções se descobrem apenas num grande ecrã, entre desconhecidos, e às escuras”.
[i] Jasmila Zbanic, Biennale Cinema 2020 – The Human Voice/Quo vadis, Aida? (Red Carpet) (BiennaleChannel, 2020).
[ii] Roberto Calasso, «L’editoria come genere litterario», em L’Impronta dell’editore, vol. 64, Piccola Biblioteca Adelphi (Milano: Adelphi Edizioni, 2013).
[iii] D. N. Rodowick, The Virtual Life of Film (Cambridge and London: Harvard University Press, 2007), 22.
[iv] Julia Kristeva, «Claude Dagens, veilleur de l’expérience intérieure», em Cinq éloges de la rencontre (Paris: Albin Michel, 2015).
[v] Claude Dagens, Saint Grégoire le Grand: Culture et expérience chrétiennes (Paris: Editions du Cerf, 2014).
[vi] Italo Calvino, Se numa Noite de Inverno Um Viajante, trad. José Colaço Barreiros (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2018).
[vii] Horácio, Odes, trad. Pedro Braga Falcão (Lisboa: Livros Cotovia, 2008), (I.IX), 65.