Em 2020 a realizadora Cláudia Varejão estreou dois filmes: este, uma longa, que chama mais à atenção, e outro, uma curta, encomendada pelo projecto Campanhã É a Minha Casa, produzido no âmbito do programa Cultura em Expansão da Câmara Municipal do Porto. Essa curta, também exibida no Curtas de Vila do Conde, ficou com o título O Ofício da Ilusão (2020), roubando a expressão a uma passagem de Vale Abraão (1993), de Manoel de Oliveira, que por sua vez a “roubou” ao livro homónimo de Agustina Bessa-Luís. Nela, Lumiares explica a Ema que ela, enquanto mulher, para se emancipar, tem de aprender o “ofício da ilusão”, sim, porque “não se nasce homem ou mulher, aprende-se” (Agustina citando Simone de Beauvoir). E, para completar as linhas cruzadas de intertextualidades, Lumiares acrescenta que a Madame Bovary também não tinha aprendido esse ofício, por isso lhe chama, a ela, a Ema, de Bovarinha. No entanto, Cláudia Varejão cortou o excerto sonoro antes que Lumiares lembrasse a famosa boutade de Flaubert, “Madame Bovary sou eu”, e da réplica de Ema, “Eu não sou um homem, e muito menos Flaubert.”

O Ofício da Ilusão apropria-se de filmes caseiros de uma família do referido bairro do Porto (como impunha a encomenda), usando-os para refletir sobre o lugar da mulher na sociedade portuguesa dos anos 1960 e 70 e os papéis que lhe eram atribuídos (e que esta assumia como seus). O filme começa com o casamento, primeira ferramenta de aprisionamento feminino. Neste ponto há que recordar que Ema “Bovarinha”, no seu casamento (do filme, pelo menos), vê, premonitoriamente, as alianças caírem-lhe das mãos do marido (anunciando-se assim todas as quebras e quedas dela) e em Amor Fati, em dado momento, uma mãe cigana explica à filha as consequências de se casar dentro da comunidade segundo os preceitos tradicionais (não vais poder tomar banho de bikini, não vais poder ir dançar para a discoteca, não vais poder aprender a conduzir… ). A essa sequência do casamento seguem-se várias imagens de tarefas domésticas junto ao fogão ou ao tanque de lavar. Varejão complementa-as com outras, de animais domesticados: um pássaro numa gaiola e um leão numa jaula.
A metáfora, apesar de simples, é delicada, porque a sucessão de imagens nunca trabalha segundo uma ideia directa de produção de sentido. O lirismo deste Super8 colorido basta-se. Depois há uns passeios pelo parque e uma televisão que emite um qualquer campeonato de atletismo, onde uma jovem demonstra as suas incríveis capacidades acrobáticas (a força e a elegância da “emblemática Nadia Comăneci”). Afinal a delicadeza do pássaro e a firmeza do leão não se esmorecem com as grandes. Uma nova luz se anuncia (trazida pelo televisor), mas o dia já vai longo, o sol põe-se e amanhã será outro dia (para que tudo fique igual, ou para que tudo seja diferente).
Varejão, que aqui é também a directora de fotografia, trabalha a ideia de raccord dentro do plano ao construir todo o filme em redor da coincidência visual entre as duas (ou mais) figuras de cada encontro.
Chamo à colação a pequena curta-metragem de Cláudia Varejão porque me parece que nela se revelam e sumarizam vários dos aspectos mais interessantes de Amor Fati. O primeiro deles prende-se a com a discussão “central” de Vale Abraão e a que Amor Fati alude logo no início: a busca do amante pelo par que os fará unos. A nietzchiana expressão amor fati refere-se a isso mesmo, à sintonia perfeita do indivíduo com o seu gémeo (e destes com o que os envolve, e de tudo em tudo). O filme começa com uma passagem (lida em arménio) do conhecido discurso de Aristófanes n’O Banquete, onde se justifica o desejo humano a partir de um ser andrógino primordial que tendo sido separado (por um fio que, tragicamente, o cortou em dois) eternamente busca a complementaridade (ainda que em quase todas as culturas existam semelhantes mitos da criação que partem da ideia de um ser uno que acaba desfeito em dois: lembre-se o Adão e Eva ou a Hermafrodite de Ovídeo).
As questões da androginia são igualmente fundamentais na compreensão da personagem de Emma Bovary e de Ema Bovarinha. Baudelaire salientou isso na conhecida crítica ao livro de Flaubert e João Bénard da Costa não esqueceu de referi-lo, a propósito do filme de Oliveira: “Perante as costas nuas de Narciso [personagem que, no filme, por oposição ao livro, concentra a androginia de Fortunato noutro corpo], lembramo-nos de perguntar: ‘Porquê homem?’. ‘Porquê mulher?’. E a câmara vem então até à mulher, até Ema. Só até ela, com toda ela, para ela ter esse espantoso monólogo da Rosa em que se auto-define como ‘alma em baloiço’, segundo o étimo sânscrito da palavra rosa. ‘No balouçar é; e deixa de ser’. Quando a imagem se dissolve, já Ema é e deixou de ser.”

Amor Fati começa com a referida passagem de Platão onde se fala do ser como uma “face da moeda” dividida em metades, que, uma vez reencontradas produzem “uma estranha impressão de amizade, parentesco, de amor, a tal ponto que já não aceitem separar-se um instante que seja!”. Esse é o “assunto” do filme de Cláudia Varejão: os encontros inseparáveis de almas irmãs. Duas velhotas transmontanas simétricas em tudo, e duas gémeas que vestem igual e trabalham no mesmo sítio, um homem de cabelos brancos e o seu cavalo branco, um cachorro e o seu humano de companhia (ou um filme e o seu espectador), a filha e a sua mãe, uma parelha de pessoas com uma mesma e ambígua expressão de género, um músico e o seu instrumento (ou uma família e a sua arte), uma mãe e o seu filho (ou um filho e o seu telemóvel), entre outros.
No entanto as ligações entre O Ofício da Ilusão e Amor Fati não se ficam pelo bovarismo. Além de também em Amor Fati se trabalhar com imagens de filmes familiares (um dos pares de “almas irmãs” é retratado quase exclusivamente através de imagens desse género), o que surpreende é a forma como a montagem, nos dois filmes, se mostra como uma espécie de conceptualização do próprio corte, enquanto acto de ligação. Se Amor Fati é sobre as conexões profundas entre as pessoas, as coisas e os animais, naturalmente que o filme teria que se focar (quase exclusivamente) na arte do raccord. Varejão, que aqui é também a directora de fotografia, trabalha a ideia de raccord dentro do plano ao construir todo o filme em redor da coincidência visual entre as duas (ou mais) figuras de cada encontro. A sua câmara delicia-se com os efeitos de espelho e semelhança entre o rosto humano e a fisionomia de um animal ou entre duas pessoas muito parecidas (ou praticamente iguais). Mas o filme desenvolve aquilo que poderia ser uma mera superficialidade ao estabelecer jogos de continuidade entre aqueles que não se relacionam diretamente na vida, mas o fazem no filme (através da montagem).
O raccord revela-se, afinal, como uma forma (apaixonada) de encarar o mundo: a mão que sacode o cabelo curto depois de provar um vestido de noiva na loja da Humana na Almirante Reis faz-se a mão do jovem negro cego que descobre o busto de Eusébio à porta do estádio do Benfica, onde, por sua vez, decorre um jogo que as duas gémeas acompanham no tablet, e o peluche destas olha-nos como o encantador pugg bebé. Já um bebé por nascer produz os mesmos sons que outro, já nascido, num vídeo de família; uma mãe exausta que dorme uma sesta verte-se numa velhota que acorda ao nascer do dia; o cavalo branco num bosque confunde-se com outro de uma sessão fotográfica nos arrabaldes lisboetas; de uma tosquia vamos para uma barbearia; um quadro, com as gémeas Elizabete e Maria faz-nos recordar o casal transmontano; um violoncelo reaparece, em diferentes tempos e lugares; uma sessão de manicura antecipa as garras de uma águia que despedaça uma lebre selvagem e um álbum de fotografias desemboca numa série de retratos que subitamente alargam o espectro do filme para uma realidade que, no fundo, habita o olhar de quem observa o mundo com doçura. É no modo como Varejão (juntamente com o montador João Braz) estabelece essas ligações que o filme se reveste de um humanismo terno e é também aí que o exercício das formas do cinema se revela de um ponto de vista ético.
Amor Fati é, no fim de contas, um objecto delicado que pesquisa uma forma delicada de encarar o universo. Um olhar fascinado com a beleza das pessoas, dos animais e das coisas. E essa é, mais uma vez (depois de várias curtas e de duas longas), aquilo que de melhor e de pior (se a isso se quiser reduzir um filme) se encontra no cinema de Cláudia Varejão: um encantamento fotográfico que acredita na beleza como um fim. E, paradoxalmente, é um filme “sobre” a montagem que não consegue decidir (sinal do seu encantamento) por apenas um desenlace, optando por três: o álbum, a morte e a festa do nascimento. Fica-se com um fim que reforça a circularidade das coisas e a sua contínua renovação, como o pôr do sol em O Ofício da Ilusão. Mas se na curta se refletia sobre um percurso evolutivo (sobre uma mudança latente e necessária – amanhã será um novo dia), em Amor Fati nada trabalha num sentido de crescimento, antes pelo contrário, a horizontal é a sua linha de fundo. Mas não é essa a definição de amor fati?