Maya Deren confidenciou, certa vez, que ser cineasta é uma “dor terrível”. Ao contrário de outras expressões artísticas, como a pintura ou a literatura, o acto de filmar não só acarreta “problemas criativos, mas problemas financeiros que os outros não têm. Problemas técnicos que os outros não têm”, rematando com um substantivo “se és um cineasta, é porque há qualquer coisa no próprio meio capaz de fazer uma declaração, que desejas realmente fazer, e que nenhum outro meio se revela capaz de fazer da mesma maneira”.

Estas palavras preencheram-me, por diversas vezes, o espírito durante a visualização de Downtown 81 (2000), de Edo Bertoglio. E lembrei-me destas afirmações puramente pela história da sua produção, uma longa série de infelizes acontecimentos de um projecto, originalmente intitulado “New York Beat Movie”, que, pouco depois do término das suas filmagens, viu-se impedido de aceder aos seus registos sonoros (incluindo as gravações dos diálogos) no seguimento da insolvência de um financiador italiano do filme. Novamente, remete-se para as circunstâncias técnicas e financeiras salientadas por Maya Deren.
Foi apenas em finais da década de 1990 que Edo Bertoglio conseguiu reunir os materiais para concretizar a montagem final, tendo o filme sido exibido, pela primeira vez, no Festival de Cannes de 2000. Nessa altura, Jean-Michel Basquiat (o protagonista de Downtown 81, ainda apartado da fama que hoje é reconhecida) já havia falecido, a paisagem nova-iorquina que lhe serviu de cenário estava profundamente alterada e manifestações musicais como o punk ou o latin disco encontravam-se em sereno desuso.

No entanto, o tempo (ou, se preferirem, esse “anacronismo”) transformou Downtown 81 num fascinante objecto que, embora assuma o género da comédia dramática e com narração em off pelo próprio Basquiat, acaba por trilhar um caminho de inusitado documentarismo. Aqui, revela-se o bas-fond de uma Nova Iorque decadente, sem relampejo de postal turístico, devoluta de progresso socioeconómico, mas a fervilhar de actividade cultural, e distante das extremas transformações que aquela cidade conheceria ao longo de duas décadas.
O nosso guia para esta realidade é Jean-Michel Basquiat, intérprete de si mesmo, que nos conduz pelas ruelas e becos do East Village, por prédios em ruína e pejados de graffiti (aos quais Basquiat imprimirá a sua marca por via da tinta do spray), estúdios de gravação onde se consumia fita magnética com composições punk de qualidade duvidosa e clubes nocturnos cujos palcos eram tomados de assalto por Kid Creole ou Suicide. Downtown 81 revela-se, portanto, uma singular cápsula do tempo, de evidente valor documental, e as atribulações da sua produção, ironicamente, converteram-no numa raridade que importa resgatar sem receios.

Além disso, o protagonismo de Jean-Michel Basquiat – cunhando, assim, as origens de um dos percursos artísticos mais sui generis dos anos 80 em celulóide – permite também ao filme enveredar por breves mas geniais momentos de surrealismo: só por aquele surpreendente e inesperado cameo de Debbie Harry (a.k.a. Blondie), na pele de uma fada madrinha dos “desgraçados” da vida, já valerá a pena (re)descobrir esta Nova Iorque segundo Basquiat e, sobretudo, aquela declaração de cinema, conforme Maya Deren, encerrada em Downtown 81.