É a obsessão do herói que eu gosto, a obsessão de apanhar aquele tipo. Dirty Harry tinha uma existência solitária, não tinha uma vida privada com que se preocupasse. Só queria saber da vítima, alguém que ele nem conhecia. Dirty Harry via sucumbir tudo à sua volta. Somos ensinados a caminhar com cautela e a não interferir no politicamente correcto. Isso dava connosco em doidos. O filme desafiava isso.
Clint Eastwood, The Eastwood Factor (Richard Schickel, 2010)
Na primeira cena de True Crime (Um Crime Real, 1999), um médico examina Frank Beechum (Isaiah Washington) na Prisão Estadual de San Quentin (Califórnia), com vários funcionários presentes, incluindo o director da penitenciária. Curtíssima cena, modelo económico apreendido por Eastwood com o padrinho Don Siegel, que termina com a tirada do médico: “saudável como um cavalo”. Estamos no dia de execução de Frank, no fim do século XX, mas aquela frase faz-nos regressar ao dobrar do século anterior, onde se situa Sergeant Rutledge (Sargento Negro, 1960) de Ford, mas também poderia empurrar-nos para uma América esclavagista, o modo de Eastwood assumir sem equívocos a herança, uma comunidade que fabricou instituições racistas.

Uma boa parte das sequências seguintes dão a conhecer Steve Everett (Eastwood), pelas acções do próprio ou através de comentários dos outros personagens. Vemo-lo a seduzir uma jovem mulher, deixando passar a informação de que é casado, um prenúncio de um homem de moral duvidosa que pouco depois encontramos na cama com a esposa do chefe da redação do jornal onde trabalha, em Oakland. Essa personagem feminina, quando Eastwood se solta do leito, dá mais uma deixa reveladora: “será que detecto uma hostilidade pela autoridade?”. Descrito como um homem obcecado pelo trabalho, indiferente a pressões, fiado apenas no seu julgamento, que acabou desterrado em Oakland (cidade de média dimensão, ao largo de San Francisco Bay), chutado de um jornal importante de Nova Iorque, no fim de um rol de desafios ao sistema politico e judicial, um libertário escudado na procura da verdade. Estes indícios e acções, em que os fins justificam os meios, um questionamento do status quo dentro do sistema, indiferente a pressões, empurra-nos para uma associação com Dirty Harry, que o sobe e desce do carro desbotado de Everett pelas ruas de Oakland evidencia, numa aproximação manifesta à topografia de San Francisco (disposta do outro lado da baía). Mas, se o anseio pela ambiguidade herdada de Ford e outros grandes de Hollywood mostrará ao longo do filme que Everett não é apenas uma variação de Harry Callahan, a princípio parece-nos um sucedâneo envelhecido, um Eastwood a chegar aos 70 anos, um corpo com os primeiros sinais de fadiga, que pouco depois, em Blood Work (Dívida de Sangue, 2002), cederia a um coração frágil, colapsado perante uma vedação que o separava da perseguição a um criminoso.

O esmero de Eastwood em descrever esta máquina de matar começa a prender a atenção do espectador, e encontra uma equivalência na minúcia de Ford no registo dos procedimentos do julgamento do sargento Rutledge.
Eastwood guardará mais para a frente os contornos do processo que condenou Frank, mas mantém o espectador ligado e empático, na presunção de que a única culpa de Frank Beechum é a de ter estado no sítio errado à hora errada, tal como o Sargento Negro de Ford, que Eastwood parece replicar nos enquadramentos do seu condenado negro, ao colocá-lo de queixo erguido, num ligeiro contrapicado, a atribuir robustez e dignidade ao personagem. O director da prisão descreve, então, a Frank como será o seu último dia, a derradeira visita da mulher e da filha, os procedimentos até à execução da pena, incluindo o método a utilizar, com a ressalva de que só se concretizará um minuto após a meia-noite, pois até lá o telefone pode tocar, uma chamada do Governador ou do Procurador de Justiça podem deter o processo até ao ultimo instante. O esmero de Eastwood em descrever esta máquina de matar começa a prender a atenção do espectador, e encontra uma equivalência na minúcia de Ford no registo dos procedimentos do julgamento do sargento Rutledge. Toda esta informação vertida sobre Frank, como um direito inalienável, parece conferir humanismo ao director da prisão, se comparado com os guardas e demais funcionários, que executam e comentam as tarefas com a mesma ligeireza dos participantes de um bando num western, como peças anódinas de uma maioria que decidira pelo enforcamento de um presumível culpado num ermo. A máquina quer-se infalível, e para isso sucedem-se os testes, ensaiam-se os telefones de onde pode chegar uma nova milagrosa, descreve-se em detalhe o processo de execução: uma primeira injecção de um sedativo (que adormece o condenado), para depois inocular o cocktail letal; o procedimento que substituiu a cadeira eléctrica, que procura tornar o acto de matar mais humano, um absurdo que procura aliviar a culpa dos executores, ao dispor de dois botões que despoletam o sistema e que são disparados por duas pessoas, de forma a não identificar o autor da liquidação. Uma máquina complexa, adensada para resolver problemas, como a herança da segregação racista, mas que descobrimos que na sua eficácia implacável, se tornou com o tempo labiríntica e desumana, um dispositivo desconchavado, que produz e executa sentenças injustas, que transfere para a máquina a validação da verdade, como o detentor de mentiras, no qual Frank não passou. Na última visita da família, a máquina é testada de forma peculiar: a filha do condenado desenha uma paisagem para oferecer ao pai, mas falta-lhe a cor verde, para pintar um prado; o dispositivo é activado pelo pranto da criança, com um dos guardas a perguntar à esposa de Frank o lugar onde estacionou, para poucos minutos depois chegar a boa noticia: o lápis de cor verde fora encontrado.

Estas intervenções, com mais ou menos barulho, parecem interessar a Eastwood para reafirmar a sua vontade libertária e de confronto com o politicamente correcto
Associamos Ford a Eastwood neste conjunto de textos, os dois partilham o valor da ambiguidade, na garantia de um território de liberdade para o artista e na recusa do politicamente correcto. Da televisão e da série western Rawhide, emitida no fim dos cinquentas, Eastwood viu-se chegado ao deserto de Almeria e aos Spaghetti de Sergio Leone, onde foi o rosto de homens sem nome e sem moral. Nos escombros dos grandes estúdios plantava-se a Nova Hollywood, disparada por Bonnie & Clyde (Bonnie e Clyde, 1967), de Arthur Penn, e Easy Rider (1969), de Dennis Hopper, eram os sessentas do sexo, drogas e violência, onde o conservador Eastwood não tinha lugar; criou, então, para si e para os seus cúmplices a Malpaso, produtora oásis que lhe possibilitou o melhor de dois mundos: liberdade criativa e diálogo com as majors na distribuição dos seus filmes. Em 1971, Clint assinou a primeira realização – Play Misty for Me (Destinos nas Trevas, 1971), ano mágico que teve, também, duas associações a Siegel: o primeiro Dirty Harry (A Fúria da Razão, 1971) e The Beguiled (O Estranho Que Nós Amamos, 1971), em que Eastwood é um soldado unionista acolhido com afectos pelas noviças de um convento no Mississippi, que acaba amputado de um membro pela madre Geraldine Page. É uma filmografia, neste arranque de prestações atrás e/ou à frente da câmara, de uma coerência inatacável, personagens que surgem de um passado indefinido mas dotadas de honra, espectros destinados a ajustes de contas, como um íman da violência em que Harry Callahan é o paradigma, mas também disponível para assumir uma História de sangue e de brutalidade, em que a vontade de punir encontra uma simetria na disponibilidade para o masoquismo, um sugadouro de culpa, como Annie Leibovitz plasmou em 1980. Mas é também, talvez na contracorrente do movimento Nova Hollywood, uma negociação com a Hollywood clássica, até no privilégio conferido ao western e às suas tangentes, que exemplificamos com Breezy (Ontem ao Fim do Dia, 1973), a peça mais fora do catálogo Eastwood deste período, love story entre o clássico William Holden e a hippie underage Kay Lenz, encontro de dois mundos que disputa a felicidade com uma sociedade moralista e preconceituosa. Em paralelo com o percurso artístico, Eastwood apresentou pontuais posições politicas, como o apoio a Romney em 2012, expresso na convenção republicana (o discurso perante a cadeira vazia de Obama…) e com destaque para a eleição como mayor de Carmel, pequena cidade dependurada no Pacífico, espécie de refúgio do cineasta. Estas intervenções, com mais ou menos barulho, parecem interessar a Eastwood para reafirmar a sua vontade libertária e de confronto com o politicamente correcto, e que encaixam no permanente desafio da separação entre o homem e a obra, que conheceu um bom exemplo com Million Dollar Baby (2004): “Muitas pessoas, depois de verem o filme, julgaram-me a favor da eutanásia. É claro que não sou a favor. Mas o drama é testado até ao último extremo. O que faríamos naquela situação? Vemos um homem que se destrói a si e à sua alma envolvendo-se nisso”.

Frank Beechum fora condenado há seis anos pela morte de Amy, uma jovem mulher grávida, que lhe devia 96 dólares de uma reparação do automóvel. A condenação sustentou-se em duas testemunhas, as duas caucasianas: uma mulher que viu Frank a fugir pelas traseiras da loja de conveniência e um contabilista que encontrou o acusado debruçado sobre o corpo ensanguentado de Amy. Com um histórico de pequenos roubos e posse de droga, Frank estivera preso, tendo depois refeito a sua vida, com um casamento e a participação numa comunidade religiosa. Condenado, então, com provas circunstanciais, foram-lhe negados todos os recursos e apelos, inclusive de comutar a pena em perpétua. Enquanto que junto aos portões da penitenciária há populares que exibem cartazes relembrado Amy e que afirmam o anacronismo de apoio à matança de um homem, Frank arrasta algemas e correntes na sala que partilha com a mulher e a filha, supera essa humilhação e começa a assumir-se como um porta-voz da comunidade afro-americana quando a câmara de Eastwood aponta o céu por cima de um janelão: depois da morte, irá para um sitio melhor, com mais justiça.

A Steve Everett encomendam uma peça de interesse humano, uma crónica dos últimos dias de um condenado à morte, habilitando-o com um seat for the show, lugar da execução que Eastwood filmará como um espéctaculo macabro, uma feira de atrocidades, uma cortina que se abre no contra-campo de um corpo frágil, vergado. Nas horas que antecedem a execução, Everett começa a investigar, activa o faro, e sucedem-se as acções erráticas, como um passeio com a filha, transformado em speed zoo, que termina com a queda da criança, perante os olhares de quem os rodeia. Começamos a olhar para Everett de outro modo, como um reservatório do vício, a quem exigem a assunção da culpa e a contrição: com o casamento em farrapos, a mulher recebe-o com um olhar reprovador e uma quase histeria perante o rosto da filha marcado por pensos rápidos; na redacção do jornal, enquanto prevarica perante a proibição de fumar, furta-se do arrependimento que o chefe de redação lhe procura impor pelo adultério da mulher. No último dia de Frank, um padre, associado ao sistema prisional, assedia o condenado, força-lhe a confissão, mas Frank repudia-o, como faria com o diabo. Portanto, ainda antes do encontro de Everett com Frank, já olhamos para os dois homens como uma parelha, cada um no seu contexto a tentar escapar a uma comunidade moralista, à inevitabilidade da culpa.

A horizontalidade da câmara de Eastwood esboça uma relação de confiança entre os dois homens, um encontro de quinze minutos em que a simetria negociada com as grades que os separam não impede que Everett cumprimente Frank e com ele partilhe um cigarro. Se a boa fé do protagonista de Eastwood é inequívoca, há uma largura que coloca os homens em cenas diferentes: Frank contrasta a desumanização que o cerca, pergunta pelo estado de Michele, a jornalista que sofrera um acidente e indica a Everett a sua fé como o caminho para um mundo melhor depois da morte; o jornalista diz ao condenado que não quer saber de Jesus Cristo, da justiça deste e do outro mundo, mas que o seu faro, a única coisa que tem na vida, lhe diz que foi cometido um erro. Frank reafirma a inocência e Everett pergunta-lhe porque fugiu, ao que o condenado responde que passou toda a sua vida a fugir: ele é um descendente do sargento Rutledge, ainda sob o legado de Lincoln.
Com o avançar das horas, o protagonista começa a ceder, o encanto da culpa passa a pesar mais que a sua recusa, e a primeira penitência é no lúgubre domicílio conjugal ao lado do pranto da esposa. O espectador deseja acreditar em Everett, mas a dúvida adensa-se, a denúncia do sistema racista e a salvação de Frank podem ser apenas um caminho para a sua redenção, para um scoop jornalístico, o possível restauro do matrimónio e talvez o leitor perdoe a revelação de que a coisa desagua em tempo de natal. Quando a personagem de Eastwood consegue junto de James Woods, o editor do jornal, a anuência para dar corda à sua obsessão por mais algumas horas, a sua capacidade de acumular a culpa exibe-se na nomenclatura: irão todos contemplar a sua crucificação. Esta tirada relembra-nos a primeira despedida do Eastwood actor e da sua persona, com funeral de caixão aberto em Gran Torino (2008), no diálogo de Walt Kowalski com um jovem padre, que pauta o filme, que o organiza e resolve. O sacerdote procura Kowalski no dia do funeral da mulher, Dorothy, que lhe terá pedido para olhar pelo marido e para lhe possibilitar a confissão, mas Eastwood hostiliza-o, reencaminha-o para o rebanho. O padre persevera e como uma aparição passa a tentar o velho solitário em lugares mais ou menos prováveis, e se a princípio Walt se afirma capaz de carregar o remorso, onde se inclui a participação na Guerra da Coreia e outras acções menores mas que dependeram do seu livre arbítrio, a sedução do alívio da culpa oferecida pela confissão triunfa e possibilita o acto sacrificial, a redenção obtida por linhas tortas. Gran Torino não exonerou Eastwood, ainda houve The Mule (Correio de Droga, 2018), um mundo perfeito que se extingue, mas deixaremos isso para outra crónica.

Já tínhamos adiantado, no texto sobre o Black Lives Matter de Ford, a necessidade de exibição da prova material para facultar o triunfo da verdade. Uma caçada policial, como uma representação do sistema e da sua cegueira, persegue um Eastwood a conduzir embriagado que grita de modo infantil “we go fast”: as suas aptidões são questionáveis e falíveis, mas fazem dele humano, mesmo que dado ao vício, ou também por isso. Eastwood tem-nos mostrado a necessidade de heróis, principalmente desde as trevas que sucederam ao rebentamento da bolha das torres gémeas, heróis humanos que desafiem as doutrinas do nosso tempo. No final do dia, nota máxima para a ambiguidade do cineasta, pois Everett é ainda a figura idealista, garantia de humanismo e lucidez, num paralelo com o jornalista de The Man Who Shot Liberty Valance (O Homem Que Matou Liberty Valance, 1962), o magnifico Edmond O’Brien, que encontra numa garrafa de whisky a coragem para acolher Jimmy Stewart e o livro da lei, e opor-se às pulsões e à brutalidade de Lee Marvin.