O mais difícil é começar. Antes: o mais difícil é escolher um nome. Tantos possíveis e todos parecem falhos. Depois vem o começo do texto, seja qual for o assunto, seja qual for o escopo escolhido. Como começar o primeiro de uma série de textos com tema semelhante, embora amplo?
O nome então veio de um dos meus filmes portugueses preferidos: Recordações da Casa Amarela (João César Monteiro, 1989). Porque tudo, de alguma forma, é recordação, já que tudo é aprendizado, experiência vivida. Ao mesmo tempo, o pensamento é vivo, molda-se conforme o tempo nos ensina e nos marca.
A primeira crônica então será sobre a minha relação com a cinefilia, tema principal da coluna, o que abrange crítica, história do cinema e estética. Amplo, decerto. Melhor assim. Por relação, quero dizer: como ela nasceu, como se desenvolveu, o que entendo por cinefilia.
E então começo pelo fim. Cinefilia, para mim, é a condição básica para o exercício crítico. Não a cinefilia de boutique, que vai atrás apenas dos filmes badalados ou do que aparece nas plataformas de streaming. Tampouco a cinefilia Mubi, que entende o cinema a partir de uma curadoria ora inspirada, ora questionável (por dar a impressão que quaisquer 30 filmes valem a pena, desde que não sejam muito comerciais). Muito menos, evidentemente, a cinefilia Marvel, que agora está em polvorosa com a chegada do streaming da Disney.
Cinefilia de verdade, a meu ver, é amar os filmes, mas não só. É ter curiosidade de arqueólogo, é querer ir atrás daquele filme esquecido dos anos 1930 (o que seria de Jean Grémillon, hoje reabilitado, sem esse espírito?). É, sobretudo, querer entender o que está por trás dos filmes, o específico cinematográfico: decupagem, mise en scène, montagem.
Eu amava os filmes na minha adolescência. Mas não tinha essa curiosidade. Não posso nem dizer que entrei no autorismo pela porta dos fundos, como o Tag Gallagher. Eu simplesmente via filmes de terror ou de aventura, sem me importar com quem os realizava. Via Jaws (O Tubarão, 1975) e depois queria ver todas as sequelas com a mesma empolgação. Eu mal percebia que entre o filme original e o quarto longa da série havia um abismo estético.
Nesse sentido, o início da minha cinefilia não se deu quando vi meu primeiro filme em cinema (Robin Hood, dos estúdios Walt Disney), quando ficava maravilhado com as imagens coloridas na tela gigante de um velho e bom cinema do centro de São Paulo, enquanto meu irmão, dois anos mais novo, perguntava para meus pais, de dois em dois minutos, se faltava muito para acabar. Nem quando vi um filme sozinho no cinema pela primeira vez – HouseSitter (Como Agarrar um Marido, 1992) de Frank Oz.
Deu-se provavelmente com Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses, 1950), visto na Sala Cinemateca com um amigo de faculdade, ou El Angel Exterminador (O Anjo Exterminador, 1962), visto em VHS. Foi vendo esses dois filmes, por volta de 1990, que tive a comichão e passei a querer me aprofundar em cinema, conhecer melhor esses diretores e entender os filmes sob uma perspectiva histórica.
Em Billy Wilder encontrei uma crueldade que batia com minhas inquietações com a sociedade e o mundo. Em Luis Buñuel encontrei um irmão de alma, alguém que tinha quase a mesma perspectiva de vida, o mesmo gosto por passagens secretas e jogos, alguns dos mesmos prós e contras que reencontrei elencados em sua autobiografia, Meu Último Suspiro.
Depois de meses, veio After Hours (Nova Iorque Fora de Horas, 1985) de Martin Scorsese, que me fez querer ver tudo que esse homem tinha feito até então – e ele ainda estaria por fazer mais: Cape Fear (O Cabo do Medo, 1991), The Age of Innocence (A Idade da Inocência, 1993), Casino (1995). E veio Fellini, irmão de alma de Buñuel. E Ford, Hawks e outros americanos. E Limite, os filmes de Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha. E Manoel de Oliveira. Tantos outros.
É a partir da vontade de ver filmes, de pensá-los e discuti-los que esse amor pelo cinema se alimenta. É por isso que Douchet chamou a crítica de a arte de amar. Porque só com esse amor se pode realizar boas críticas. E só com críticas se pode defender esse amor, atacando tudo que o ameaça: os maus filmes, os aproveitadores, os oportunistas, os carreiristas.
Penso na imagem do crítico (ou da crítica) como anjo exterminador de falsidades e afetações, “monstro de inocência e rigor”, como queria Mourlet, artista também criador, como dizia Oscar Wilde, ou alguém comprometido(a) com a auto exposição, segundo Robin Wood.
Na cinefilia, meus heróis não são só Buñuel, Wilder, Scorsese, Oliveira, Ford ou Mizoguchi. São também Oscar Wilde, Jean Douchet, Robin Wood, João César Monteiro, Susan Sontag, Gilda de Mello e Souza, Antônio Cândido… Todos os que renovaram em mim, sempre, esse amor, essa busca pelo cinema e pelo livre pensar.