O cinema português vive um período estranho, desde logo, desempenhando um papel de estranha relevância (inédita?) nas salas comerciais. Olhamos para os filmes em cartaz e vemos, em semanas consecutivas, mais cinema português do que estávamos habituados. Parece-nos, por isso, importante responder a estes tempos de excepcionalidade com o dado desta presença proeminente do cinema falado em português nas nossas salas, que, como sabemos, neste momento vão procurando resistir e sobreviver.
Assim, de Junho a Novembro (caso não se fechem as salas, como na Alemanha, França e Itália) passaram, ou prevê-se que passem, pelos ecrãs das salas comerciais mais de duas dezenas de títulos portugueses. Nunca, em menos de seis meses, haviam estreado tantos filmes nacionais em tão pouco tempo, e talvez nunca tivessem as salas estado tão despidas de público como agora. A estratégia das grandes distribuidoras, com a Nos Audiovisuais à cabeça, é garantir a rotatividade dos títulos (que é o seu modelo de negócio) e por isso, na impossibilidade de estrear os títulos norte-americanos das majors como sempre fizeram, viram-se para o cinema português, “oferecendo” um número de ecrãs inauditos. E, expectavelmente, a contrario do que se passou noutros países europeus, não houve “surpreendentes” sucessos nacionais. A indiferença, infelizmente, tem sido a reação generalizada para muitos destes filmes, com uma excepção: Listen (2020) de Ana Rocha de Sousa.
No entanto há que não esquecer todos os outros: A Story From Africa, Faz-me Companhia, Surdina, Ruby, Cães Que Ladram Aos Pássaros, Dia de Festa, Patrick, Zé Pedro, A impossibilidade de estar só, Golpe de Sol, Alice, Nova Iorque, Anteu, Ordem Moral, Os Conselhos da Noite, O Fim do Mundo, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Um Animal Amarelo e As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra (juntamente com outras três curtas-metragens de Gabriel Abrantes, algumas delas que já haviam tido distribuição comercial). E em breve estrearão Amor Fati, Capitão Fasto em Sol Posto, O Nosso Cônsul em Havana, Bem Bom e Irregular. E aguardam data de estreia filmes como Prazer, Camaradas!, Serpentário, Suzanne Daveau, A Metamorfose dos Pássaros, A Arte de Morrer Longe, Vencidos da Vida, Vádio, Sombra, Longe da Estrada, entre tantos mais.
Chamámos cinco walshianos a destacarem, cada um deles, um trio destes títulos, celebrando os filmes, contra o turbilhão mercenário que o trata como betume. Viva o cinema português!
- O Fim do Mundo de Basil da Cunha
- Patrick de Gonçalo Waddington
- A Ordem Moral de Mário Barroso
Se, terminado o confinamento, o ritmo de reabertura das salas de cinema foi titubeante, o mesmo não se poderá dizer da cadência de estreias de filmes portugueses. Do conjunto de filmes estreados nos últimos meses, destacaria três títulos que têm em comum deixarem transparecer a enorme paixão dos seus autores pela história que contam, pelas suas personagens, pelos seus actores. Em primeiro lugar, O Fim do Mundo (2019), de Basil da Cunha, ópera urbana de (in)justiças poéticas, história de um jovem que regressa ao bairro em que cresceu. Também de regressos nos fala Patrick (2019), de Gonçalo Waddington, em tons mais sombrios – o semblante carregado de Patrick é também o semblante do filme (embora, curiosamente, a imagem que nos ficou gravada na memória seja de uma enorme imensidão branca, de uma criança que fita Patrick no final do filme). Se nestes dois filmes temos protagonistas que, apesar de jovens, lidam já com o peso do seu passado, em Ordem Moral (2020), Maria Adelaide pretende emancipar-se de um passado de insatisfação, desagrilhoar-se (ousadia que, como veremos, acaba por ter o resultado oposto). O filme, com argumento de Carlos Saboga, tem momentos fulgentes. Queríamos mais momentos desses neste filme, queremos mais momentos desses no cinema português.
Daniela Rôla
- O Fim do Mundo de Basil da Cunha
- Patrick de Gonçalo Waddington
- A Ordem Moral de Mário Barroso
(Por ordem de preferência)
O meu destaque maior vai para duas obras perfeitamente despretensiosas, mas sentidas e repletas de (boas) ideias de cinema. O Fim do Mundo é um olhar sobre uma comunidade que quase não tem expressão no espaço público, mas nem por isso o realizador, o já experiente Basil da Cunha, alimenta discursos pré-formatados de denúncia ou “vitimizantes”. Basil decide filmar pessoas e as suas circunstâncias – cinema nascido no coração das gentes da Reboleira, nesse “fim do mundo” que, afinal, também é nosso, também somos nós. O filme de Gonçalo Waddington é uma adulta incursão na longa-metragem, obra ora noctívaga e tempestuosa, ora diurna e melancólica inspirada vagamente no caso trágico do desaparecimento de Rui Pedro, mas que evita a todo o custo os tropos do “docu-drama” [o contrário absoluto do mais recente, dramaticamente histérico e muito desarticulado, Listen (2020) de Ana Rocha de Sousa, realizadora que, por sinal, também começou no campo da interpretação]. Um pouco como Basil, Waddington sabe filmar pessoas que sofrem e dar-nos a viver as suas circunstâncias. Há uma melancolia nos dois filmes assente num dispositivo formal muito burilado – no caso de Basil, a raiar a magistralidade em certos momentos, qual espécie de Jean Rouch em plena suburbia lisboeta. O filme de Mário Barroso tem uma grande personagem no centro, interpretada por uma actriz admirável. Mas a energia que vem do caso de Maria Adelaire (Maria de Medeiros) vai sendo sugada pelo avanço triturador da história – Mário Barroso é rigoroso e elegante como um Manoel de Oliveira [o contrário do filme recente de Botelho, O Ano da Morte de Ricardo Reis (2020), talvez o seu filme mais preguiçoso, baço e anti-oliveiriano, o pior filme português que vi depois do confinamento], mas não tem o pace (o “toque”) de um Lubitsch que esta personagem pedia para este filme, deixando-se enredar, lá para o fim, na narrativa histórica mais avulsa.
Luís Mendonça
Não consigo escolher um mínimo de três filmes para recomendar, do cinema português que vi deste período pós-confinamento.
O filme em título integra o programa “Quatro Contos de Gabriel Abrantes” (quatro curtas-metragens de Gabriel Abrantes, filmadas entre 2015 e 2019) que chegou às salas no final de Outubro. Abrantes (n. 1984) é alguém que desafia as definições de cineasta ou realizador. É mais justo chamar-lhe artista visual, que umas vezes se expressa por via das artes plásticas, mas que é cada vez mais conhecido pelas suas obras cinematográficas. Se quisermos ir mais fundo nesta classificação assente no seu trabalho, Gabriel Abrantes é um artista pela sensação de liberdade criativa e criadora que percepcionamos nas suas obras, e daqui para a frente é apenas de cinema e deste conjunto de quatro curtas que falaremos. Telegraficamente. Nos filmes de Gabriel Abrantes coabitam as dimensões apolínea e dionisíaca, e confesso a predilecção por aqueles em que a segunda se sobrepõe à primeira, como no caso de Freud Und Friends (2015), fantasia docemente perversa onde Abrantes personifica variações disparatadas que poderiam ser de si próprio. Segue-se A Brief History of Princess X (2016), curta dissertação jocosa sobre a peça de Constantin Brancusi, e os equívocos que gerou ao longo dos tempos. Depois, Os Humores Artificiais (2016), espécie de comédia romântica subversiva e delirante sobre os amores de um robô por uma indígena do Brasil. Por último, Les Extraordinaires Mésaventures de la Jeune Fille de Pierre, que faz a síntese do Abrantes apolíneo e cândido, variando no subgénero do filme de uma noite no museu, que se estende também politicamente para fora dele. Programa feliz que desafia o conforto dos nossos modelos adquiridos.
Ricardo Gross
- Faz-me Companhia de Gonçalo Almeida
- Anteu de João Vladimiro
- Quatro Contos de Gabriel Abrantes
Tendo visto grande parte dos filmes portugueses que estrearam nos últimos seis meses nas salas portuguesas, o meu desejo não se prende tanto em destacar aqueles que me parecem melhores, antes chamar a atenção para os que certamente cairão no esquecimento (por não terem, simplesmente, sido vistos). O lugar de destaque vai, por isso, para Faz-me Companhia (2019) de Gonçalo Almeida, o realizador do divertido Thursday Night (2017) – aquele dos cães-fantasmas. Esta sua estreia na longa-metragem, que havia passado, em 2019, pelo MOTELx, revela a capacidade do realizador construir atmosferas tensas e misteriosas com apenas uns fumos e uma luzes coloridas (Roger Corman ficaria orgulhoso), associando isso a uma construção de personagens inteligente e madura que compreende os dramas da identidade através do cinema de género. Depois, Anteu (2019), curta-metragem de João Vladimiro, que o cinema Trindade exibiu, durante uma semana, em sessões singulares (só a curta, sem que esta seja um “complemento” de uma longa). Se a atitude da distribuição é de louvar, o filme é possivelmente um dos objectos mais estimulantes que vi nos últimos anos: uma viagem primitiva e inebriante a um universo onírico-ruralista. Por fim, destaco a estreia do pacote “Quatro Contos de Gabriel Abrantes”, pela proposta auto-curatorial e porque uma sessão destas poderá ajudar qualquer espectador imbuído pelo típicos preconceitos sobre o que é o “cinema português”, a perceber a pluralidade de olhares e a encontrar um cineasta que trabalha os códigos do mainstream a partir de uma perspectiva autoral (e porque Os Humores Artificiais e Princess X são pequenas grandes obras-primas).
Ricardo Vieira Lisboa
- Ruby de Mariana Gaivão
- Cães Que Ladram Aos Pássaros de Leonor Teles
- Dia de Festa de Sofia Bost
Em ano atípico para a “comercialização” do cinema português, será inevitável realçar, do mesmo modo, uma das estreias mais inusitadas de filmes na nossa língua dos últimos anos. Sob o mote “Três Realizadoras Portuguesas”, a exibição em sala das curtas-metragens Ruby (2020), Cães Que Ladram Aos Pássaros (2020) e Dia de Festa (2020), agregadas em sessões conjuntas, providenciou a oportunidade de observar cinema no feminino e – feliz coincidência! – inteiramente rodado em película de 16mm. A referência ao formato analógico das curtas não deve ser lida, no presente destaque, como mera curiosidade de produção. Aliás, o filme de 16mm revela-se de esmerada associação aos próprios temas e ambientes que Mariana Gaivão, Leonor Teles e Sofia Bost formularam em cada um dos seus títulos. O impressionismo da luz serrana matinal de Ruby, a intimidade urbana das relações afectivas de Cães Que Ladram Aos Pássaros ou a história de um “país real”, em tom quase documental, de Dia de Festa, são manifestações que, do ponto de vista formal, salientam três jovens visões para o cinema português e, independentemente dos tempos de pandemia, deveriam encontrar sempre projecção no grande ecrã.
Samuel Andrade