On the Rocks (2020), o último filme de Sofia Coppola, é um filme com pedigree. Não, não se trata daquilo que estão a pensar, mas de uma genealogia muito própria, feita de cenários e de ritmos de cidade. Conhecemos Laura (Rashida Jones) no dia do seu casamento com Dean. Não será preciso mais do que um breve instante para passarmos do idílio romântico do dia do casamento para a amálgama de tarefas, obrigações e contrariedades que compõem o dia-a-dia do casal no momento presente. Os anos passaram, nasceram duas filhas. Dean vive absorvido pelo seu trabalho e, face às ausências crescentes e alheamento do marido, Laura começa a farejar um caso amoroso, acabando por tentar encontrar algum tipo de aconselhamento (ou consolo) junto do pai, Felix (Bill Murray), que lhe fala por telefone do outro lado do Atlântico para lhe dizer: pensa como um homem, se te parece que ele está a ter um caso, é porque ele está a ter um caso.
Se há algo de tipicamente Sofia Coppola neste filme, será, mais uma vez, o enorme afecto que a realizadora demonstra pelas suas personagens, algo que percorre a generalidade dos seus filmes.
Laura é uma escritora em fase de bloqueio criativo, cujo dia se divide entre rotinas: ir levar as filhas à escola, tratar da casa, agendar as diferentes tarefas que compõem a vida do casal. Não parece haver nada de muito entusiasmante na vida de Laura. Felix regressa a Nova Iorque, respondendo às inquietações que a filha havia partilhado com ele naquele telefonema inicial. Aquilo que Felix traz também à vida de Laura é exactamente o entusiamo que parecia faltar-lhe. Há nele uma irresponsabilidade atraente, cativante. É aquilo de que Laura sente falta na sua vida, feita de horários, rotinas e tarefas a cumprir. E, apesar de Laura se mostrar bastante incomodada pelo comportamento de sedutor incurável e encantatório do pai, há uma enternecedora cumplicidade entre ambos, que fica singelamente resumida no assobio que vão partilhando do tema “Laura”, composto por David Raksin para o filme de Otto Preminger. Essa foi, afinal, a canção que esteve na origem do nome de Laura.
Sedutor nato, Felix é o tipo de pessoa que, depois de ser parado pela polícia por conduzir em excesso de velocidade, é capaz de manipular a conversa e gerar uma empatia tal que acaba por ter esses mesmos polícias a empurrarem-lhe o carro. Sempre pronto a dispensar qualquer tipo de trivialidade que encaixe no momento.
Falávamos de genealogias. Esta poderia ser uma delas (pais e filhas), como também a forte ligação deste sedutor incorrigível e um pouco canalha de Bill Murray, face a um outro pai impossível de odiar por muito que se tente, o Royal Tenenbaum desempenhado por Gene Hackman em The Royal Tenenbaums (Os Tenenbaums – Uma Comédia Genial, 2001), de Wes Anderson. Mas teremos também que invocar aquela que será talvez a ascendência mais notória em On the Rocks e que está intimamente ligada à cidade que lhe serve de pano de fundo. Há aqui um intenso perfume a Woody Allen, nas ruas, na música, no Dry Martini que Laura e Felix partilham no Bemelmans Bar do Hotel Carlyle, com a melancolia e inocência do mural de Ludwig Bemelmans a pairar sobre as suas cabeças [relembre-se, é este o bar em que Bobby Short costumava tocar piano – é ele que avistamos numa das cenas de Hannah and Her Sisters (Ana e as Suas Irmãs, 1986) – e onde tantas vezes o próprio Woody Allen tocou o seu clarinete].
Tentando apurar até que ponto é real a infidelidade de Dean, Laura e Felix irão dar início a um trabalho de detective tosco, não muito diferente da dupla Woody Allen e Diane Keaton em Manhattan Murder Mystery (O Misterioso Assassínio em Manhattan, 1993), procurando arranjar provas que confirmem as suspeitas de Laura quanto ao comportamento de Dean. E igualmente aqui, tal como no filme de Woody Allen, é a viagem que importa, mais do que o resultado. É uma segunda oportunidade que é dada àquela relação pai-filha, também ela “on the rocks”.
Se há algo de tipicamente Sofia Coppola neste filme, será, mais uma vez, o enorme afecto que a realizadora demonstra pelas suas personagens, algo que percorre a generalidade dos seus filmes. Embora Felix seja uma pessoa com defeitos quanto baste – um pai ausente, que não poupou as filhas ainda jovens aos efeitos da sua infidelidade e que não resiste a qualquer mulher que se atravesse no seu caminho -, Laura deixa-nos ver, apesar de todos os seus repetidos protestos, que há muito para amar no pai. Na verdade, atrevemo-nos a dizer que esta terá sido justamente uma das razões para o fracasso do anterior The Bling Ring (Bling Ring: O Gangue de Hollywood, 2013), filme que pressupunha algum desprezo pelas personagens que estavam à nossa frente. Sofia Coppola tinha uma história para comentar, mas parecia não ter conseguido encontrar a linguagem certa para aquilo que queria dizer-nos.
Igualmente presente em On the Rocks está uma particular marca de água do cinema de Sofia Coppola, com elementos da sua história pessoal que se entrelaçam com a história do filme, num já habitual jogo de alter ego. Não será coincidência a escolha de Rashida Jones, uma actriz com um percurso pessoal não muito diferente do da própria Sofia Coppola, também nascida no seio de uma família do meio artístico (neste caso, musical), sendo filha do produtor musical Quincy Jones e da actriz Peggy Lipton.
On the Rocks é também filho de Somewhere (Algures, 2010), um filme que, ainda que se ocupando generosamente das inquietações da adolescência, olhava já também para os trilhos da idade adulta. Na personagem de Stephen Dorff está um olhar para o momento da vida em que, sendo o balanço de descontentamento, é demasiado tarde para recomeçar com a mesma frescura da juventude. Não significa, necessariamente, um “falhar a vida”, mas antes um inescapável comprometimento com as escolhas que foram sendo feitas ao longo dos anos vividos. Continua a ser possível condicionar a vida que ainda resta (e este “ainda resta” é parte da inquietação deste meio de caminho), mas já não é possível criar uma história diferente. Por outro lado, há uma serenidade possível: porque as grandes definições tiveram que ser feitas mais atrás, o amadurecimento significa também encontrar o melhor resultado com as variantes disponíveis. De certo modo, fazer as pazes com os anseios, incertezas e frustrações da juventude.
É neste ponto da vida que se encontra Laura. O trabalho de cuidar da casa e das filhas é um trabalho improdutivo, ou antes, um trabalho em que o produto final não é visível e, por isso, se torna um trabalho frustrante. Não há resultado palpável que se possa exibir e reclamar o mérito que lhe é inerente. Dean poderá ser um óptimo pai, mas isso é a sua ocupação de tempos livres, uma actividade sempre condicionada a haver tempo para tal. Enquanto que Laura tem no trabalho de cuidar das filhas uma ocupação a tempo inteiro. Trata-se daquilo a que poderíamos chamar uma crise dos 39, paradoxalmente a idade limite apontada por Felix (que, como já vimos, é um especialista em todas as questões femininas) como sendo a idade em que a mulher está em ponto de rebuçado, no máximo da sua completude e do seu poder de atracção.
Dean, por seu lado, está a viver a experiência excitante de construir algo, de tornar real uma ideia, ver o seu projecto a crescer. E Laura ficou excluída desta excitação. Ela sente ciúmes desse entusiamo, de ver algo crescer como resultado do seu trabalho. Mais do que ciúme de uma outra mulher (uma possibilidade de traição que ela própria reconhece como altamente inconsistente), trata-se do ciúme de uma vida mais gratificante, no momento em que o seu trabalho de criação (o livro que tenta escrever) se encontra numa fase de bloqueio.
Tudo isto se corporifica de forma particularmente réussie na breve sequência passada no restaurante, quando o casal janta logo após mais uma viagem de trabalho de Dean, que implicou que ele tivesse estado ausente no dia de aniversário da mulher. Há um desconforto de quem já se conhece bem demais para ainda ser capaz de produzir conversa de first date, fingir mais do que o parco interesse suscitado, fazer-se atraente face ao outro. Dean acaba por começar a olhar para o telemóvel e a responder a mensagens, Laura começa a lançar assuntos da rotina familiar. E, quando pensamos que iremos testemunhar o acto romântico inesperado que salva a noite (ou melhor, quando Laura acredita nessa possibilidade), acabamos desolados com a falta de rasgo e o tédio de ser adulto acomodado.
Ainda que, durante quase todo o filme, o foco pareça incidir, não tanto sobre a relação “on the rocks” do casal Laura-Dean, mas sobre a relação entre pai e filha, será impossível a Laura não encontrar no seu próprio casamento ecos dos aforismos que Felix vai lançando. O medo resume-se facilmente: tornar-se uma pessoa maçadora, sucumbir às rotinas e obrigações que esvaziam a vida de criatividade e entusiasmo. “What happened to you? You used to be fun”. – diz-lhe Felix num momento de especial crueldade. Laura receia que Dean se comporte como Felix, que abandonou a mulher quando nasceram as filhas, porque deixou de encontrar na companheira a adoração e arrebatamento que existiam anteriormente, sentindo que tinha perdido a sua cúmplice. O “castigo” de Felix, que acaba vivendo rodeado de filhas e netas, reproduz de forma acrescida a maldição lançada ao herdeiro de Kiloran em I Know Where I’m Going! (Sei Para Onde Vou, 1945) – “He shall be chained to a woman to the end of his days and he shall die in his chains.”
Finalmente, cabe a cada um seguir a sua própria aventura, cuidando das suas nódoas negras sentimentais, porque tudo acaba resumido a uma questão (falsamente) simples – “We all just want to be loved.”