Mikio Naruse não é um cineasta desconhecido dos cinéfilos portugueses – basta recordar que, em 2009, a Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema lhe dedicou uma retrospectiva. Ainda assim, não será exagero notar que a sua obra é menos exibida e debatida do que a de outros nomes do dito cinema japonês “clássico” que são frequentemente mencionados quando se fala dele: Mizoguchi, Ozu, Kurosawa. Tal como Ozu, Naruse também é um cineasta associado ao género dito shomin-geki, ou seja, dramas de pessoas comuns. No entanto, talvez mais do que qualquer um dos outros cineastas, foi autor de um cinema sobre mulheres lutadoras. Onna ga kaidan o agaru toki (Quando Uma Mulher Sobe as Escadas, 1960) é um dos seus filmes mais conhecidos e um exemplo paradigmático dessa forte ligação ao feminino. Segundo a breve sinopse da Cinemateca, foi o único filme de Naruse que teve distribuição comercial em Portugal. Será possível revê-lo no grande-ecrã dia 26.
Este texto contém spoilers.
Hideko Takamine, actriz que participou em vários filmes de Naruse, é a protagonista de Onna ga kaidan o agaru toki, e importa referir que foi uma colaboradora importante de Naruse nos retoques dados a vários argumentos. A profundidade que imprime à sua personagem, Keiko (a.k.a. Mama), é nada menos do que indispensável para o filme. O facto de Keiko ser a narradora, em voz off, reforça a ideia de que o filme procura transmitir uma subjectividade feminina – embora, ao contrário de outros filmes de Naruse, o argumento seja de um homem (Ryūzō Kikushima, que trabalhou bastante com Kurosawa).
Takamine é aqui Keiko, uma viúva na casa dos 30 que trabalha como bar hostess em Ginza, zona de comércio de luxo em Tóquio. O filme leva o espectador até ao seu mundo e ao de outras mulheres como ela. O seu trabalho – mais bem pago, é-nos dito, do que o de outras profissões “diurnas” abertas a mulheres – consiste em acompanhar clientes masculinos, convencê-los a beber, conversar com eles e providenciar-lhes uma presença decorativa, consolando-lhes o ego e validando o seu estatuto social privilegiado. Sabemos que muitos destes clientes são casados e que os fregueses ideais são ricos. Keiko diz-nos também que há diferentes tipos de mulheres no negócio – algumas saem do serviço com os clientes – ou seja, vendem mais que copos, conversa e aparência. Prostituição não é a profissão delas, mas a fronteira é ténue e é várias vezes ultrapassada.
O dilema que enfrenta na sua rotina de “subir as escadas” para o bar onde detesta trabalhar pode ser lido como uma referência quase irónica à sua situação: quanto mais sobe as escadas, mais cai no abismo sem saída da sua circunstância.
Keiko não está no fundo da escala, mas também não consegue elevar-se como gostaria. O dilema que enfrenta na sua rotina de “subir as escadas” para o bar onde detesta trabalhar pode, aliás, ser lido como uma referência quase irónica à sua situação: quanto mais sobe as escadas, mais cai no abismo sem saída da sua circunstância. Para as mulheres da noite de Ginza só parece haver duas saídas: ou casam com um dos clientes ou tornam-se patroas, abrindo o seu próprio bar. Nenhum desses rumos é ideal nem garante completa liberdade. Keiko segue a segunda opção, procurando angariar fundos entre os frequentadores do bar, mas adivinhamos que preferia a primeira, enamorada que está de um dos clientes, Fujisaki (Masayuki Mori). Acaba, porém, sem bar nem companheiro, enganada tanto pelo homem que amava como por outro, Sekine (Daisuke Katō), com quem aceita casar-se só para descobrir que é um charlatão já esposado.
Keiko está numa posição de relativa superioridade nos dois bares onde a vemos trabalhar – daí ser tratada como mama-san. Contudo, ela não é patroa de si mesma, e os seus movimentos são vigiados por Komatsu (Tatsuya Nakadai), o manager do estabelecimento que fora também o seu recrutador para o ramo. Komatsu é uma personagem no limiar entre o mundo masculino dos clientes e fornecedores e o mundo feminino das bar hostesses que supervisiona. É a personagem masculina mais interessante do filme e um peculiar duplo de Keiko. Ambos escondem o que realmente sentem e agarram-se às soluções pragmáticas possíveis para conseguirem navegar o mundo em que se movem. Tal como Keiko ama Fujisaki, também Komatsu está secretamente apaixonado por Keiko, e a ilusão desses afectos virá a desfazer-se praticamente em simultâneo. Antes disso, enquanto visitam uma possível localização para o bar que Keiko planeava abrir e Komatsu demonstra os movimentos rotineiros que faria atrás do balcão, ambos simulam esperança num futuro melhor que não irá concretizar-se como imaginavam. Eventualmente, Komatsu revelar-se-á um bruto não muito diferente dos homens a quem cobra dívidas.
Gravitando em torno de Keiko, encontramos outras mulheres que lutam à sua maneira por ficar por cima (à tona?) num mundo em que as opções são poucas. Uma, Yuri (Keiko Awaji) fora outrora subalterna de Keiko, mas abriu o seu próprio bar, que agora lhe faz concorrência. O seu êxito é, porém, composto de ilusões que depressa se estilhaçam: a vida de sucesso que projecta é uma miragem alicerçada em dívidas que acabarão com a sua morte acidental e a depredação financeira da sua família. Uma outra mulher, a jovial colega de Keiko, Junko (Reiko Dan), é igualmente importante. Impulsiva e determinada, tem menos dúvidas – e, é sugerido, menos princípios – e acaba por consegue atingir mais rapidamente o objectivo de abrir o seu próprio bar. Fica, todavia, a sugestão de que o sucesso de Junko é tão frágil como fora o de Yuri, e poderá bem acabar da mesma forma infeliz.
Embora os humanos do filme tenham sempre primazia sobre os espaços em que habitam, estes, descortinados em planos relativamente breves, são fundamentais. Onna ga kaidan o agaru toki é uma película urbana, cujas paisagens exteriores e alguns planos de interiores evocam a agitação, oportunidades e crueldades da vida citadina – com um tom que traz à mente ora um certo cinema mudo (incluindo produções asiáticas em torno dos desafios das “mulheres modernas”) ora exemplos neo-realistas mais próximos cronologicamente deste filme. Certas cenas têm igualmente alusões ao cinema noir. Há mesmo referências que podem ser encaradas como piscadelas de olho a outras obras, como o perfume de que Keiko gosta remetendo para Black Narcissus (1947), de Michael Powell e Emeric Pressburger, ou um néon que facilmente associamos a Le Notti di Cabiria (1957) de Fellini.
Keiko move-se por ruas onde automóveis seguem o seu caminho, apartamentos onde o luxo convive com a solidão e, no centro de tudo, clubes onde homens de negócios se cruzam com mulheres que vivem à noite. Anúncios em néon nos diferentes alfabetos japoneses e no ocasional inglês, iluminam as backstreets por onde circulam fornecedores de diversos serviços. Também aparecem subúrbios, incluindo no bairro onde Keiko encontra a mulher de Sekine, com uma fábrica ao fundo. É um mundo de sombras e luz artificial, de bulício e desolação, de frustração e resiliência. É também um mundo de jazz. Movimentos são centrais para o filme – começando pelo movimento que lhe dá título, o de Keiko subindo as escadas– e a banda sonora de Toshiro Mayuzumi em muito contribui para dar esse ritmo de quotidiano citadino. O formato panorâmico é também, particularmente, eficaz na criação dessa sensação de constante fluir. Não por acaso, o mundo de prazeres citadinos do período Edo é conhecido como “mundo flutuante” (ukiyo) e personagens como Keiko têm óbvios ecos das gueixas de então.
Naruse não romantiza o mundo dos bares de Ginza nem o fosso económico e de género que os sustém. O realizador – que cresceu pobre – tem uma preocupação especial com a luta pela subsistência diária. No filme está sempre presente o espectro da pobreza e como a necessidade de dinheiro se liga a diferentes formas de opressão. Dos homens do mundo empresarial com o poder de emprestar o dinheiro para Keiko abrir o seu negócio em troca de favores sexuais, ao seu irmão (Masao Oda), que lhe pede emprestado o que tanto lhe custou a ganhar para resolver os problemas judiciais e acudir a necessidades médicas familiares.
Ainda que estruturas sociais as constrinjam de diferentes maneiras, as mulheres em Onna ga kaidan o agaru toki têm agência e têm voz. Procuram ora impor limites ao (ab)uso a que estão sujeitas ora transcender esses limites e contrariar as fracas probabilidades de alguma libertação. Vemos isso em Yuri, em Junko e até mesmo na mãe de Keiko (Sadako Sawamura), que intercede pelo filho, incapaz de sustentar a família. Mas vemos isso sobretudo em Keiko, cuja subida de escadas para o trabalho que odeia é um acto, não de acomodação, mas de resistência contra a destituição que a espera se não o fizer. Ela prossegue num meio cheio de barreiras, tentando jogar com as cartas que tem para conseguir abrir o seu próprio bar e, assim, vir a suprimir alguns dos graus de dependência que a controlam.
A ambiguidade da situação de Keiko pode também ler-se no guarda-roupa. A sua insistência em usar quimonos, contrastando com as modas diferentes das jovens colegas e competidoras, pode ser interpretada como conservadorismo e resignação, mas também como uma forma de resistência individual contra as expectativas dos outros.
Essa determinação digna de Keiko em lutar sozinha e não ficar a dever o seu sucesso ao patrocínio de homens é particularmente evidente numa das cenas finais, quando a vemos na estação de comboios devolvendo as acções que Fujisaki lhe dera depois da noite de paixão sem futuro. É significativo que ela não entrega o envelope a Fujisaki, mas à sua mulher, juntando uma prenda para o filho dele. Agora, é ela quem rejeita e quem dá. Mesmo que, por momentos, fique para trás na plataforma, numa imagem de solidão algo Hopperiana, Keiko depressa retoma o seu movimento em direcção às escadas, altiva como as árvores que resistem à inclemência do clima. Sem saída, mas não vencida. A vida continua.
Quando uma Mulher Sobe as Escadas passa quinta-feira, dia 26 de Novembro, às 20h na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema.