Dono de um charme inconfundível, e do sotaque escocês mais famoso do mundo, o carismático actor nascido em Edinburgh tornou-se célebre pelas seus interpretações como James Bond, no entanto, os walshianos que lhe prestam homenagem escolheram outros papéis para o recordar, tal a riqueza da sua filmografia ao longo das décadas, tendo trabalhado com realizadores tão diversos como Alfred Hitchcock, John Huston, Brian De Palma, Steven Spielberg, John McTiernan, Sidney Lumet, John Boorman ou Gus Van Sant. Presença imponente e sempre misterioso, Sean Connery será recordado como um dos actores mais importantes da sua geração.
É difícil escolher um Connery pela carreira abastada em momentos memoráveis (mesmo que se insista em recordá-lo pelos dois ou três papéis mais icónicos) como o são o abismal noir The Offence (O Delito, 1973), o visceral filme de prisão The Hill (A Colina Maldita, 1965) ou o glacial anti-épico Krasnaya palatka (A Grande Odisseia, 1969). Sim, sim. Podem excluir o Hitchcock, o Huston e o De Palma e ainda assim não restarão dúvidas: não faltaram excelentes filmes a Connery, faltou foi terem-se tornado mais conhecidos. No entanto, opto por refugiar-me num dos mais populares pela razão inevitável: a da ligação afectiva que tenho com ele. Afinal, não tinha mais de 8 ou 9 anos quando, numa sessão caseira da SIC, foi exibido o Indiana Jones and the Last Crusade (Indiana Jones e a Grande Cruzada, 1989). Nessa tarde televisiva passada na companhia dos meus pais, quando Henry Jones, Sr. entrou no ecrã para atacar com um (falso) vaso da dinastia Ming a nuca do eterno herói de chicote e chapéu fedora, a minha mãe perguntou ao meu pai se aquele homem era o Sean Connery. O meu pai confirmou rapidamente a suspeita. Eu era apenas um miúdo, mas aquela breve troca de palavras em dez segundos levou a que o “cavalheiro extraordinário” fosse o primeiro actor cujo nome memorizei. E foi também naquela tarde que passei a admirar tudo o que ainda hoje, quase duas décadas depois, admiro nele: o sorriso confiante, o carisma magnético, o charme resistente ao passar dos anos… e a voz, acima de tudo aquela voz tão distintiva, simultaneamente calma e ressonante, que me dava vontade de pagar nem que fosse só para ouvi-lo a ler uma coluna das páginas amarelas (e ainda mais se fosse da letra “S”).
Sir Sean Connery era um dos últimos a possuir essa característica cada vez mais rara: a de ser um actor cuja palavra-chave que o define é “personalidade” (e não “versatilidade”), como o também o foram, entre outros da época áurea de que ele é o mais legítimo herdeiro, os muito grandes Bogart e Mitchum. Não é por acaso que os menciono na mesma frase. Nos três encontramos a mesma presença imponente, o mesmo sentido de humor sardónico, mas também (e que não se menospreze este ponto) o mesmo sentido de dever inatacável. Foi por essa probidade palpável, amadurecida numa retórica incisiva de valor e disciplina, que, a partir de certa altura na sua carreira, Connery acabou quase sempre por interpretar o papel de mentor: a personagem secundária que ensina ao protagonista a sua sabedoria e código moral, frutos de anos de experiência e dezenas de erros, tornando-se para ele o guia que o levará a transcender as suas inseguranças e a compreender as suas responsabilidades. Alguns deles? Um polícia incorruptível de Chicago, um escritor reclusivo do Bronx, um espadachim imortal da Escócia, um dragão de meio-coração de um universo medieval fantasioso. É perfeitamente plausível não se gostar de todos os filmes com Connery, mas, por causa dessa personalidade íntegra que tem tanto de sapiente como de espirituosa, acho dificílimo não se gostar de Connery em todos os filmes. Morreu-nos o mentor, ficam-nos os ensinamentos. “Here endeth the lesson.”
Duarte Mata
Filme de charneira de Hitchcock – ainda com uma presença masculina descendente da figura de Cary Grant, mas também anunciando a perturbação que estaria presente em filmes da fase tardia –, Marnie (1964) surge na carreira de Sean Connery do seu desejo de trabalhar com Alfred Hitchcok e quando começava a tomar forma a fama decorrente dos filmes da saga 007. Apesar da fama crescente, o actor não foi poupado ao prévio tratamento típico de Hollywood, porque ninguém é perfeito a ponto de não ter algo a necessitar de correcção – neste caso, as sobrancelhas foram retocadas, a linha capilar ajustada. O seu Mark é um caçador, deslumbrado com a sua presa Marnie (Tippi Hedren), fugidia e misteriosa, o que quase parece ser uma piada deliberada, já que Sean Connery, enquanto James Bond, vive perpetuamente acossado por todas as mulheres do planeta. Em Marnie, torna-se um caçador frustrado, atraído por uma mulher que apenas lhe devolve repugnância (“I’ve caught something really wild this time, haven’t I? I’ve tracked you and caught you and by God I’m going to keep you.”). A frigidez de Marnie não obsta a que neste sex-mystery encontremos aquele que será talvez o mais belo beijo filmado por Hitchcock [o que não é dizer pouco, se tivermos presente o beijo de meio-fundo que Cary Grant e Ingrid Bergman partilham em Notorious (Difamação, 1946)]. A voz de Mark envolve Marnie com efeito hipnótico, os seus lábios aproximam-se do rosto dela e percorrem-no lentamente até chegar à boca, por entre relâmpagos que rasgam a janela. Tudo apimentado pelo facto de estas “actividades” decorrerem numa tarde de Sábado, em período de prestação de trabalho suplementar, o que só reforça o lado kinky do filme.
Daniela Rôla
The Man Who Would Be King (O Homem Que Queria Ser Rei, 1975), de John Huston, foi o filme que juntou os amigos Sean Connery e Michael Caine no grande ecrã a fazer as vezes dos já então desaparecidos Clark Gable e Humphrey Bogart, dupla que o realizador tinha em mente nos anos 50, quando tentou arrancar pela primeira vez com o projeto. Não vou aqui especular sobre o que seria se esse desígnio inicial tivesse ido para frente, mas talvez Pauline Kael tenha razão quando diz, no texto para a The New Yorker, que “Connery é um Danny muito melhor do que Gable jamais teria sido”. Roubo-lhe as palavras: “A sua vitalidade pode torná-lo o mais intensamente masculino de todos os atores ingleses; aquela densa, retumbante voz de escocês transforma a língua inglesa – abafa as arestas cortadas e humaniza o idioma.” Este podia ser um elogio feminino embevecido, se não estivéssemos familiarizados com o estilo desenvolto de Kael. No fundo, o que ela afirma com acuidade é o poder da presença masculina de Connery, que vai muito para lá da qualidade James Bond. O seu Daniel Dravot, ex-soldado lunático e vigarista que parte com o irmão de armas, igualmente sonhador, para uma terra bárbara na intenção de se tornarem reis, é das personagens mais fascinantes do currículo (e a favorita do próprio). Um homem com um entusiasmo místico, cujo ego insuflado não deixa de burilar na expressão um acanhamento ridículo.
Baseado no conto homónimo de Rudyard Kipling, The Man Who Would Be King é, só por si, um título que cai bem a Sean Connery, ou à ideia de grandeza que ele nos suscita (no cinema foi Agamemnon, Ricardo Coração de Leão, Artur…), mas acaba por não ser de todo aí que reside a graça do seu papel. Perante o apelo da aventura que Huston tão admiravelmente soube extrair da letra de Kipling, Connery, nos seus cânticos que exprimem a alegria da jornada com Caine, é a figura exemplar da folie humaine – também folie de grandeur –, o rei-deus embusteiro que morre com o gosto da proeza alcançada, ligado a este mundo só pela voz do amigo que não deixa de cantar por ele. Belíssimo buddy movie. De resto, o rei coroado tinha que ser Connery, embora a acender o cigarro um ao outro os cúmplices sejam homens iguais.
Inês N. Lourenço
Consigo imaginar que uma das coisas que atraíram Sean Connery para interpretar Barley, um pequeno editor britânico amigo dos russos, que os serviços secretos ingleses e americanos usarão como espião contra a vontade deste, foi a possibilidade de contrariar a imagem de James Bond que sempre se lhe colou como se fosse a primeira pele. O heroísmo de Barley mede-se pela decência dos seus actos, e até a traição final à pátria é feita em nome do amor, em nome de Katya (Michelle Pfeiffer) que Barley dirá que ama ao ponto dela se tornar na sua nova pátria. Recuando ao momento anterior àquele em que os dois se encontram pela primeira vez, Katya pede ao telefone a Barley que dê alguns elementos que o descrevam (ele vira já Katya numa foto que o levará a comentar que se trata da resposta soviética à Vénus de Milo…). Barley dirá que ela deve procurar por alguém que se assemelha a uma cama desfeita e que leva um saco pela mão. Tom autodepreciativo que condiz com o charme do homem que sempre agiu pela sua consciência e pelo seu coração. Barley toca jazz, e no filme é dobrado pelo extraordinário Branford Marsalis, solista ao serviço de uma banda-sonora lindíssima composta por Jerry Goldsmith. A decência é um valor muitas vezes referido nos diálogos que Tom Stoppard elaborou com base no livro de John le Carré. Este filme tinha tudo para dar certo, era só preciso não estragar a qualidade de todas as partes. Resultou sóbrio, romântico e antiquado. Com uma nota de extrema beleza trazida por Pfeiffer no apogeu da sua imagem e do seu talento, onde Connery virá a descobrir um amor verdadeiro, adulto e altruísta.
Ricardo Gross
Para um actor com background e notoriedade provindos da sua “encarnação” no agente 007 (figura que, desde a sua forma literária imaginada por Ian Fleming, era o espelho dos mecanismos e das tropelias de espionagem da Guerra Fria), revelou-se natural que o carisma de Sean Connery adquirisse, no thriller de contornos políticos The Hunt for Red October (Caça ao Outubro Vermelho, 1990), o corpo e espírito de Marko Ramius: o experiente capitão soviético, de um submarino ultra-secreto e “topo de gama”, que desafia a ideologia da sua nação ao desertar para os Estados Unidos da América.
Entre as várias qualidades do filme, a presença de Sean Connery em The Hunt for Red October – personagem altivo mas sem vestígio de arrogância, em pleno controlo das circunstâncias e num gesto de protagonista sempre à frente dos demais, naquele que foi um dos momentos altos da sua filmografia – denota a imagem mais perene que o actor imprimiu na minha cinefilia. Por mais que James Bond o tenha definido publicamente, irei sempre recordar o vulto de Connery ao longo das décadas de 1980 e 1990, ou seja, o sujeito veterano, musculado mas de delicado sex appeal, com o sotaque escocês mais famoso do mundo, mentor e/ou figura paterna dos que o rodeiam e uma fleuma que lhe conferia distinto charme humano, mas capaz das ocasionais “explosões” de violência e fúria raramente gratuitas. Na sua carreira, pode ter faltado “quilate” a muitos dos títulos que protagonizou, mas (e digo-o sem reticências) Sean Connery era a definição viva do substantivo “ícone”.
Samuel Andrade