Por esta altura, o leitor já devia estar avisado: os críticos têm os seus realizadores favoritos. E têm os seus realizadores-fetiche, as suas apostas pessoais, as suas “taras e manias” que, no fundo, podem conferir mais personalidade a este exercício, por vezes vão e inconsequente, que é escrever sobre cinema. Ti West foi, durante muito tempo, uma aposta minha. O minimalismo dos dois primeiros filmes que me chegaram aos olhos deixou-me estarrecido e, em certos momentos, em perfeito choque dada a ousadia do gesto ou, melhor dizendo, a potência dessa ousadia, ou, melhor ainda, a potência desse gesto. Falo de Trigger Man (2007) e The House of the Devil (2009).

O primeiro era uma espécie de Man Hunt (Feras Humanas, 1941) que era “só osso”, obra de terror reduzida ao seu conceito, sobre a típica situação quase parabólica em que o caçador se torna caçado. A ousadia passava por transformar os “tempos mortos” em “tempos de morte”, em que se pressente até ao infinito uma espécie de ameaça aguda que, a qualquer momento, irá atravessar os corpos, estejam eles onde estiverem – para o caso, através de uma bala furtiva vinda de… não se sabe bem onde. The House of the Devil é provavelmente o mais brilhante sucedâneo de Halloween (1978), de John Carpenter – esqueçam lá os malabarismos hipsters do confuso David Gordon Green… Trata-se de um filme de terror sem sangue, um “quase” filme de terror, ou seja, um objecto propositadamente manco – isto é, treslendo em toda a linha as receitas do género, não avançando sobre elas, mas recuando porque “avançar é recuar” – que apenas explora a paranóia do espectador de cinema, ela em si mesma material mais do que suficiente para se aguentar a hora e meia de um puro suspense, de um “what if?” metafísico que entretém e espicaça a inteligência. A dado ponto, interrogamo-nos: será isto mesmo um filme de terror ou o resultado de um horror movie que, na realidade, apenas (pré-)existe na nossa cabeça?
Não sei ao certo se esta atitude de desafio às normas instituídas do género pode ser atribuída à proveniência do seu realizador. É que Ti West aparecia vindo da cena indie norte-americana, sendo próximo de algumas figuras importantes desse meio como Joe Swanberg, Adam Wingard e Greta Gerwig. West aparecia, estava a dizer, com o intuito de, do ponto de vista dramático, humanizar o género do terror, conferindo outra atenção – outra “graça”, apetece até dizer – às personagens e, ao mesmo tempo, desafiando os lugares-comuns associados ao género – por exemplo, a ideia de que ao terror tem de estar associada uma bateria de efeitos ou que o medo tem como melhor aliado o “susto pelo susto”. Terror descarnado na sua linguagem, mas humanizado por via de uma escrita cheia de ternura e bom humor? Era mais ou menos isso. Verdade seja dita: no zénite de tudo isto esteve – e está – The Innkeepers (Hóspedes Indesejados, 2011), obra ainda hoje subestimada que foi, na realidade ou aparentemente, o canto do cisne deste realizador que nunca mais se encontrou desde aí (realizou mais duas longas, um filme de terror found footage pouco criativo e um western caído, sem punch), estando hoje remetido para o papel de realizador-tarefeiro ao serviço da trituradora indústria/moda das séries televisivas – que, sendo por norma exercícios de escrita criativa para guionistas demasiado espertos, nada têm que ver com cinema, isto é, com esse esforço teorizante que se consubstancia numa tapeçaria de imagens-sons tão inteligente quanto provocadora.
Em The Innkeepers, filme que agora revisito com o sabor amargo a toda uma promessa que não se cumpriu (posso acrescentar: “ainda”?), West não se assume como um típico suspense builder, mas, antes, e muito mais inteligentemente, como alguém focado na dimensão dramatúrgica dos seus filmes híbridos. Isto é, West investe tudo o que tem na ambientação do espectador ao espaço e às personagens, estas últimas tratadas com o rigor e a profundidade que reconhecemos mais facilmente em paragens que não as do género do terror. Ou seja, West acredita que, para se fazer um filme de terror – se calhar até mais: para se fazer um filme -, o cineasta tem de se afirmar como um criador de personagens, tem de nos fazer “acreditar” nos seus gestos, no modo como cada uma delas age e reage no espaço, ou melhor, na maneira como elas “matam o tempo” – West não é chato, tem é o dom de transformar aqueles que são, para a maioria, “tempos mortos em cinema” em tempos de uma assinalável vivacidade ou mesmo graciosidade cinemática.
West não constrói suspense, muito pelo contrário, reprime-o ao máximo, porquanto o suspense já está na nossa cabeça, mais do que construído e desconstruído, mastigado e processado, antes da sessão começar.
O filme começa naquilo que poderíamos designar por “um início à maneira de Ti West”: não sabemos ao certo onde estamos, ou melhor, seguimos a apresentação dos sítios, das pessoas e das rotinas, mas não estamos cem por cento certos de que isto seja, ou se venha a revelar…, um verdadeiro filme de terror. É um filme de terror que mente? Mente a mentira do drama e da comédia, fazendo como manda a lei de Howard Hawks – como é mesmo: filmar o drama como se fosse comédia e filmar a comédia como se fosse drama? West conhece a lição hawksiana e aplica-a com mestria.
Com efeito, se isto fosse “apenas” uma obra de terror, pensa o espectador, não passaríamos grande parte do filme a assistir, inebriados, a uma comédia politica ou sociologicamente apimentada (A ghost story for the minimum wage, lê-se no cartaz – lemos nós, produtos da geração precária par excellence -), sobre dois jovens que trabalham num hotel decrépito. Assim, somos apresentados a uma rapariga luminosa (Sara Paxton) e ao seu amigo quirky (Pat Healy) que, pelas impressões amistosas que trocam entre si e com os poucos clientes, vão mostrando ter poucas ou nenhumas perspectivas de futuro, tanto para a sua vida profissional como até para a sua vida pessoal.
A solidão marca, desde logo, a narrativa. A dupla de protagonistas é confrontada, várias vezes, com a sua frustrante – ainda que comoventemente benigna e honesta – existência, nem que seja, desde logo, porque os dois estão num emprego a prazo, num hotel que, em breve, dará lugar a um parque de estacionamento – e albergando, até lá, uma actriz has been, uma mãe e um filho em fuga de um pai qualquer, imaginamos, destemperado e, mais para o fim, um idoso que tem “ataques de nostalgia”. Tudo é lúgubre, mesmo que da protagonista – que maravilhosa descoberta é Sara Paxton e… por onde anda hoje? – só emane jovialidade, uma energia lubitschiana e uma beleza triste que nos faz, de novo o verbo…, “acreditar” nela – e ela reage sempre como nós reagiríamos e não como reagiria uma daquelas barbies americanas dos típicos slasher movies, a quem desejamos o pior dos destinos nas mãos do Papão de serviço. Enfim, The Innkeepers faz da sua longuíssima, lentíssima, exposição, em jeito de “comédia social”, com momentos de humor físico no limiar do slapstick finamente teatralizado – a cena do despejo do lixo é antológica -, a grande matéria-prima do horror, um horror que – já era assim em The House of the Devil – vem sempre “a seguir”, quando menos se espera – ou quando já, por desistência, o espectador pensa que caiu redondo no “filme errado”, leia-se, no melhor dos “filmes errados”.

Apesar disso, The Innkeepers não demora muito a encenar jump scares, alguns delirantes, porque perfeitamente MacGuffinianos – que assustam porque havia alguém que expressamente “não queria assustar”… Sustos? Não-sustos, sustos temperados por gargalhadas e suspiros (ai, a precariedade…). O filme tem igualmente jogos de foras-de-campo que pertencem ao universo do (melhor) cinema de terror. Isso é verdade, mas enquanto cada um de nós é “todo ouvidos” (a utilização do som aqui dava outra crítica…) às histórias de assombrações ligadas àquele hotel, que dizem estar assombrado, enquanto tudo nos é “depositado” em doses pequenas, estamos entregues ao namoro pelas personagens e o nosso organismo, muito confuso, responde a elas não com “medo de morte”, mas com risos abertos, respeitosos e compreensivos, provocados pela forma como estas ocupam o tempo. Afinal, ele e ela estão ali para “matar o tempo”.
À medida que o tempo passa, o riso vai transformando-se em medo, medo nosso… pelas personagens, tudo para, no fim, o nosso coração, que já batia demasiado depressa, sair disparado do corpo, para ser endossado às nossas mãos trementes. Largará o espectador o seu próprio coração nos minutos finais?
Em The Innkeepers, surge uma interrogação – a hospedagem também é filosófica? – que West desenvolve em cima da “tese” avançada por The House of the Devil: e se esta ideia de um “filme-de-terror-que-não-se-parece-com-um-filme-de-terror” constituir o terror que nos aflige a todos nós, espectadores que procuramos no cinema apenas a confortável confirmação das nossas expectativas em vez de as (querermos) vermos desafiadas? The Innkeepers acrescenta esta interrogação, na medida em que o terror age sobre 80% do filme como um dispositivo para o drama, isto é, e recorrendo à origem grega da palavra dráma, o terror – a promessa do terror – é a força que faz as personagens agirem e reagirem – porem-se em movimento – no espaço, isto é, constituirem-se como personagens de corpo inteiro, quebradiço e cómico.
Na senda de alguns dos maiores writer directors, de Lubitsch a Tarantino, passando, claro, por Howard Hawks, aqui as personagens movimentam-se com as pernas, mas sobretudo com a língua: falam, divagam com palavras, passeiam “no vazio” do seu próprio discurso (aparentemente) estéril, e, com isso, pouco ou nada “adiantam” em matéria de plot – que plot, se isto é um naco de vida?
Portanto, Ti West está alinhado com os melhores no que diz respeito à disposição dramática do terror nas suas histórias potencialmente nada terríficas e, exactamente por isso, aterrorizadoras. Ele não constrói suspense, muito pelo contrário, reprime-o ao máximo, porquanto o suspense já está na nossa cabeça, mais do que construído e desconstruído, mastigado e processado, antes da sessão começar. Não é preciso construir ou destruir o que construído ou destruído já está. A solução está na terceira via: não em construir suspense, mas sim em construir outra coisa qualquer. A comédia no caso de The Innkeepers ou “os eighties como filme de época” em The House of the Devil. Ou mesmo o thriller abúlico, pós-Fritz Lang, em Trigger Man. O MacGuffin (também) está aí: enquanto estamos a ver uma coisa que não encaixa nas nossas expectativas mais imediatas, vemo-nos detidos no deciframento de onde esta coisa nos pode conduzir… e sempre com receio – no meu caso, perfeito êxtase – perante a hipótese de não irmos ter a lado nenhum.
Este divertidíssimo impasse – um jogo “em suspenso”, mais do que “em suspense” – está presente nestes primeiros filmes de Ti West. Depois, a “escrita de câmara” tornou-se não abúlica ou reduzida ao osso; simplesmente amorfa ou esquálida, sem a mesma riqueza dramatúrgica, sem gestos, palavras e personagens que verdadeiramente “impactassem” e nos fizessem sentir cúmplices do drama. Sem esse factor humano, sem a ousadia fílmica que costumava estar subjacente a todos estas indagações provocadoras mas despretensiosas, Ti West não mais me conseguiu extasiar. Posso ao menos acalentar a esperança de um grande comeback lá para o dia de São Nunca à Tarde? Bem, até lá, o melhor é mesmo “matar o tempo” a rever o que de bom – muito bom – ele já fez no campo do terror.
The Innkeepers está disponível na plataforma de VOD nacional, Filmin.