Stop Making Sense (1984), de Jonathan Demme, fixava o concerto dos Talking Heads aquando da digressão do álbum Speaking in Tongues, donde saiu o sucesso Burning Down the House. No entanto, a primeira canção que aí se ouvia era, nem mais nem menos, Psycho Killer onde David Byrne, sozinho em palco com uma guitarra e um leitor de cassetes, faz uma interpretação esgotante da canção. Demme filmava-lhe os pés caminhando, sapato branco, calça larga. Daí dava-nos o artista, cenário despido, palco esventrado, tudo à mostra – quem diria que o distanciamento brechtiano chegaria ao pop-rock dos anos 1980? Essa era a primeira pista de um filme-concerto que estava mais próximo de uma peça de teatro filmada, ou da dança contemporânea vista pelo cinema. Em Stop Making Sense tudo trabalha a favor dessa ideia de grande espectáculo de… palco.

Agora, em 2020, passadas quase quatro décadas, Byrne é um artista a solo e um sexagenário de cabelos totalmente brancos (“a white man of a certain age”). E assistindo a David Byrne’s American Utopia (2020), realizado por Spike Lee, já estamos longe das performances convulsivas do Byrne trintão do filme de Demme, essa figura esganiçada que saltitava, imparável, numa explosão de energia frenética e contagiante. Stop Making Sense era a estranha fusão entre os dois meios (cinema e música): a repetição do celulóide fixava as presenças enquanto essas mesmas presenças pareciam quebrar a fixidez do meio fílmico, extravasando os seus limites, manifestando-se naquele ali e agora. É essa dinâmica entre o cinema e o bicho de palco suado e excêntrico (que era Byrne) que faz de Stop Making Sense um objecto ainda fresco (passados todos estes anos). Porém, se Byrne envelheceu e já não é esse animal selvagem de ego inflamado (literalmente, recorde-se a sequência da cabeça gigante), a forma de o filmar permaneceu idêntica.
A dimensão humanista do espetáculo é o que de mais tocante nele acontece.
Lee encara este concerto com o mesmo anonimato de Demme, revelando-se o seu olhar aqui e ali, num ou noutro enquadramento, numa ou noutra opção de montagem (sendo que, quase sempre opta pelo óbvio: se a letra refere Deus, Lee faz um plano picado em movimento ascendente que filma Byrne de braços abertos a olhar o alto; se o músico fala em conexões Lee opta por fazer um splitscreen, partilhando o espaço visual; se na coreografia a banda se inclina para a direita, também a câmara fará um ângulo mimético, etc…). Ou seja, no essencial ambos os realizadores se apagam (como deve ser, diga-se) diante da dramaturgia musical Byrne. Como em Stop Making Sense, o cinema de American Utopia está na plateia a assistir (refasteladamente sentado, a bater palmas e a cantar os refrões). Só que, ao contrário de 1984, quando aquilo que interessava estava muito além das potencialidades das imagens em movimento, isto é, a fisicalidade de um artista em estado de graça, agora, em 2020, há uma atitude quase displicente em Bryne, uma certa auto-ironia encapotada por uma persona desconfortável e embaraçada com a atenção que está a receber (“I am what I am”). Por isso, talvez, Lee reencontre o mesmo “interesse” pela ligação do(s) músico(s) ao chão através de inúmeros planos dos pés de Byrne e restante banda (reforçado, agora, por todos estarem descalços), ou pelo despojamento cénico que caracterizava o filme-concerto de Demme.
Contudo, em American Utopia, esse despojamento consubstancia-se num “entendimento filosófico” (se assim se lhe pode chamar) do que é/deve ser a música para o cantautor. Já o concerto vai avançado quando David Byrne chama a atenção para aquilo que já se havia tornado óbvio para todos os que assistiam ao espectáculo (e para todos os que, agora, assistem ao filme): a dezena de músicos-bailarinos que o acompanha está em palco sem qualquer tipo de cabos, fios, ou condutores. Aliás, o palco é preenchido apenas por eles, com os seus corpos descalços (de fato cinzento – “I’m an ordinary guy”), pelos instrumentos que envergam junto ao corpo e por um trabalho de iluminação de constrói e reconstrói atmosferas, jogos de ilusionismo, escalas de relevância, esquadrias de composição e tudo o mais que se possa imaginar. Byrne chama-lhe “liberating” e acrescenta “quando estava a preparar este concerto quis eliminar do palco tudo, com excepção do que é realmente importante: vocês e nós” e de facto esse é o elemento mais interessante do filme, ou melhor, do concerto.
Essa dimensão humanista do espectáculo é o que de mais tocante nele acontece. Algures entre a TED Talk, a stand-up comedy e o comício político, David Byrne’s American Utopia é um filme-concerto que começa com uma pano que sobe, construído o espaço cénico (um cubo de luz cinzento), e termina com esse mesmo pano desaparecendo completamente, abrindo o cubo ao palco inteiro, e depois ao teatro (e depois ainda, à cidade). Essa abertura ao “opposite side” é total e, além de ideológica, é, acima de tudo, formal, cristalizada na encantadora citação do poema dadaísta de Kurt Schwitters – pura forma – em que se usa o ” nonsense to make sense of the nonsense of the world”. Porque, como explica o cantor quando se refere a um cover de Everybody’s Coming To My House por um coro escolar de Detroit, “eles mudaram tudo sem alterar nada”. Algo que Spike Lee não soube nem quis fazer.
David Byrne’s American Utopia foi o filme de abertura do festival Porto/Post/Doc, onde teve a sua estreia nacional. Agora terá uma curta passagem pelo circuito comercial na sala do Cinema Ideal, em Lisboa.