Apetece começar por dizer que é um gesto corajoso e intelectualmente estimulante o de lançar nas salas portuguesas um filme com filosofia dentro, de três horas e vinte, como quem lança um filme de Natal. Se é verdade que o ano é atípico, que se aproveite essas anomalias para esticar a corda, dando ao espectador de cinema o estatuto de ser pensante que não se assusta com o adjetivo – sabe-se lá o que significa em cinema – difícil. E nem deixa de ser verdade que a sexta longa metragem de Cristi Puiu é, na sua literalidade, um filme de Natal. Um latifundiário, Nikolai, que junta em Malmkrog, a sua casa na Pensilvânia, alguns convidados – um general e sua mulher, um político, uma jovem condessa – nas férias natalícias, rodeados de neve e do fim do ano (e do século XX) que se anuncia.
Puiu decide adaptar o livro War, Progress, and the End of History (1900) do filósofo russo Vladimir Solovyov, mas fá-lo como se fosse mais uma das suas personagens: montando um exercício de ensaio, repetição, corta e cola do texto, pouco preocupado com a certeza da mensagem filosófica, mas mais no duelo que o pensamento impõe a quem a ele se dedica. Claro que isto fez parte do processo mas não está no filme pois Mamlkrog é um filme clássico e depurado, bem distante das deambulações físicas de Viorel [o protagonista de Aurora (2010)] – as deambulações aqui são feitas, quase todas, pela palavra – e talvez já mais perto da observação familiar de Sieranevada (Sierra-Nevada, 2016).
Tal como os argumentos se enrodilham mais e mais na suspeita e na incerteza, também esta é uma travessia da claridade à progressiva escuridão. Um desconfinar-se lento no interior do próprio pensamento.
Os diálogos ou conversas são os acontecimentos centrais desta obra que procura inquirir alguns dos temas que ocupavam a intelligentsia na passagem do século. Entre eles: o decandentismo do ideal militarista; a guerra e a violência como boas ou más; a oposição entre o bem e o mal; a supremacia civilizacional; o europeísmo como conceito e utopia; a natureza da educação versus a submissão religiosa; os ensinamentos da bíblia e as intenções de Cristo; a ressurreição para todos como utopia – O Anticristo de Nietzsche, de 1895, é uma obra que paira sobre todo o filme. Neste suceder de argumentos e desconstruções o interessante é que Puiu nos dá um filme de acção, onde as palavras surgem como clímax, onde terá de haver pausas para silêncio e reflexão, onde o acto de escutar é tão fundamental como o de aparar ou defender um soco no boxe.
Mas não se pense que por estas razões Mamlkrog é um filme desleixado de uma certa materialidade das coisas. Pelo contrário, tal como os argumentos se enrodilham mais e mais na suspeita e na incerteza, também esta é uma travessia da claridade à progressiva escuridão. Um desconfinar-se lento no interior do próprio pensamento. Como se escuta a dada altura: “a nossa doutrina precisa de coerência”. Não por acaso começamos num plano aberto da neve fora da propriedade e terminaremos num plano de janela fechado, com os convidados mencionando esses dias cada vez menos claros, essa limpidez imperfeita que não saberão se é dos olhos que começam a falhar ou da terra ele mesma que envelhece. Muitas vezes ao longo do filme, Puiu filmará as suas personagens de costas, olhando o lá fora (também por isto, e não apenas pela crítica à burguesia tão só, este é um filme buñieliano a quem lhe extirparam uma ironia mais imediata). Como se esperassem algo. A vinda de um novo século, novas ideias para afugentar o pessimismo e a incerteza, um lá fora que rima com 2020, numa condição de fechamento que hoje não podemos deixar de ver reflectida.
Mas temos ainda um lá fora cá dentro, tão ou mais interessante. É que, de certa maneira, a horda de criados que ora surge com um bolo, ora se enfurece entre os seus pelo desleixo com quem trabalha, são uma espécie de lado b desta conversação. Como se Puiu metesse na mesma casa Manoel de Oliveira e Albert Serra e nos mostrasse essas camadas de interacção, entre palavras e gestos, trabalhando a mesma inquietação.
O pessimismo da literatura russa – em especial Dostoievski, mas também o huis clos das peças de Tchekhov – passou para o filme. Assim como Puiu cita a importância de My Dinner with Andre (1981) de Louis Malle, também temos em Malmkrog a decadência de Il gattopardo (O Leopardo, 1963) – e que filme hoje tão adequado a resgatar também o ocaso da relação dos filmes com a sua história -, além das já referidas scéances mágicas do nosso Oliveira ou as razões renoirianas de todos os envolvidos. Como se ouve a dada altura, cito de memória, desculpem se imprecisa, “ignorar os antepassados é como achar que nascemos das cegonhas”. E que precisados estamos de ser resgatados dessas cegonhas.